PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Novos desempregados recolhem, em carros ou kombis, papelão, plástico e latinhas. Muitos também são uber. Condomínios os priorizam, excluindo os “maltrapilhos”. Carroceiros reclamam: “para o pobre não sobra nada, nem lixo”
Passava das 14 horas da quarta-feira (20), quando Edmilson Bueno do Nascimento retornou a um dos galpões localizados na Vila das Torres, em Curitiba, puxando um carrinho carregado com materiais recicláveis. É ali que ele vende o que recolhe das ruas. Nascimento é o que em Curitiba se chama de carrinheiro, o catador autônomo que coleta os recicláveis e os transporta num carrinho de estrutura metálica que chega a carregar mais de 200 kg, puxados no muque, faça chuva, faça sol. Mas a quarta-feira não fora boa: em oito horas de trabalho, Nascimento coletara 122 kg de papelão e de plástico, percorrendo pouco mais de 9 km. O cansaço só não era maior que a frustração: pela terceira semana consecutiva, tinha perdido a disputa para os “motorizados” – como os carrinheiros se referem a catadores que utilizam peruas, caminhonetes ou carros para fazer as coletas. Um motorizado tinha passado antes pelos condomínios de classe média onde Nascimento costumava recolher os materiais, o que fez com ele precisasse andar mais para encher o carrinho.
Catadores motorizados já existiam em Curitiba, mas aumentaram consideravelmente ao longo da pandemia e em decorrência do desemprego e da crise econômica. Nascimento lotava fácil dois carrinhos por dia. Agora o dia acaba e ele mal encontra materiais para uma única viagem, que lhe rende entre 60 e 70 reais por dia. “Quando a gente chega num ponto, os ‘motorizados’ já passaram e levaram tudo. Os síndicos têm dado preferência a eles. Eles vão de carro, bonitinhos. Nós [os carrinheiros] andamos maltrajados. É um serviço sujo. Ninguém quer saber da gente”, lamentou Nascimento. “O síndico de um prédio onde eu catava no [bairro] Cristo Rei tá fugindo de mim faz três semanas. Não tem coragem de falar que tá passando tudo para os ‘motorizados’. Pra gente, tá cada vez pior. Parece que nós somos o lixo”, acrescentou.
Aos 42 anos de idade, Nascimento mora sozinho no próprio galpão onde os recicláveis são armazenados. Aluga um quartinho de 6 m², em que há apenas um colchão de espuma, um fogareiro elétrico e poucos pertences pessoais – e onde ele precisa “ficar esperto” para manter os ratos afastados. Paga 400 reais mensais de aluguel, o que faz com que invariavelmente passe “aperto”, principalmente no início do mês, quando tem que pagar pelo cômodo. Como se não bastasse, Nascimento não tem nem o próprio carrinho: precisa emprestá-lo do dono do galpão, em troca de vender a ele tudo o que catar nas ruas. Em alguns casos, catadores chegam a pagar 15 reais pelo aluguel dos equipamento sem o qual não conseguem trabalhar. “Antes da pandemia, eu cheguei a tirar 2,5 mil [reais] por mês. Agora, mal dá pra comer. Na pandemia, fiquei em dificuldade, quase entrei em desespero”, contou, cabisbaixo.
Do outro lado da rua, Priscila Almeida Paula Barbosa, de 39 anos, também tem precisado andar mais para conseguir encher o carrinho. “Antes, eu ficava só aqui nos bairros do lado. Agora, tenho que ir até o Cabral ou o Ahú [bairros a 6 km dali], senão não dá”, contou. Solteira, ela tem quatro filhos e mantém, sozinha, as finanças da casa. O impacto da redução do volume de material coletado se faz sentir na despensa da família. “Cortamos até a bolacha das crianças. Fruta virou um luxo. Vivemos com o básico do básico. Depois que ‘explodiu’ [o número de] os motorizados, ficou muito difícil. Só quem puxa carrinho é que sabe. Eu cato [recicláveis] desde os 13 anos. Nunca teve uma época tão dura assim”, disse.
Primeira capital brasileira a implantar um programa de coleta seletiva de lixo – ainda em 1989 –, Curitiba recicla cerca de 22% do lixo que produz, segundo a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA), com base em dados de 2020. Isso corresponde a 11 mil toneladas por mês, das quais 9 mil são recolhidas por catadores. As outras 2 mil toneladas são coletadas por caminhões da prefeitura e destinadas a 40 associações nas quais 900 pessoas atuam na separação do material, vendido ao programa Ecocidadão. De acordo com o Anuário da Reciclagem 2021, a renda mensal média de quem coleta materiais recicláveis na região Sul é de 1.256 reais.
“Percebemos claramente que mudou o perfil dos catadores nos últimos anos. Tem o carrinho de tração humana – chamemos assim. Mas aumentaram muito os veículos automotores, alguns em boas condições, outros em péssimas, com uma ‘gaiola’ adaptada no teto para recolher. Eu atribuo esse aumento à crise, à pandemia e aos preços atrativos dos recicláveis”, disse Edelcio Marques dos Reis, diretor do Departamento de Limpeza Pública da SMMA. A secretaria prepara um edital para fazer um censo de catadores.
A 2,5 km do Centro, a Vila das Torres nasceu na mais antiga área favelizada de Curitiba. Hoje está urbanizada e regularizada, mas a vulnerabilidade social é constante para as cerca de 1,2 mil famílias que, segundo a associação de moradores, vivem na comunidade. No total, 990 famílias são beneficiárias de programas sociais vinculados ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da Vila das Torres. Destas, 402 também recebem o Auxílio Gás. A associação de moradores estima que 70% das famílias – são 6,2 mil moradores – vivem da coleta ou da reciclagem, de forma autônoma, em galpões ou em cooperativas. Em algumas ruas, há carrinhos de coleta parados na frente de todas as casas, e muitas têm galpões improvisados como depósitos. Montes e montes de materiais recicláveis chegam a se acumular às margens de algumas vias.
Ainda no início da pandemia, a comunidade lançou a campanha SOS Vila Torres, capitaneada pela Paróquia São João Batista e pelo Grupo Marista. Na ocasião, eram distribuídas pouco mais de cem cestas básicas por mês. Mas a situação das famílias de catadores, muitas sem trabalho durante o isolamento social, fez com que o programa fosse ampliado. Agora são mais de 2,5 mil cestas, também destinadas a outros bairros com grande volume de trabalhadores informais da coleta de recicláveis. O projeto também oferece cursos profissionalizantes – como de informática, de mecânico e de balconista – e organiza mutirão de empregos. No último deles, realizado no início de abril, 52 pessoas foram contratadas.
“Nos tentamos dar o peixe, que é o alimento; dar a vara de pescar, que é o trabalho; e o lago, que é estimular a cidadania. Essa ação tenta romper esse ciclo que os mantém na reciclagem, de forma quase hereditária. O que mais se vê aqui são catadores que são filhos de catadores. Famílias inteiras. E a situação delas piorou com o aumento descontrolado dos ‘motorizados’, que, por sua vez, são pessoas que também estão sofrendo na crise. É o vulnerabilizado em disputa com o vulnerabilizado”, definiu o padre redentorista Joaquim Parron.
“O carrinheiro sai perdendo nessa corrida, mas é um efeito da crise, infelizmente”, opinou o presidente da Associação de Moradores da Vila das Torres, Valdemilson Osório de Campos, o Tanaka. “Mas é bom deixar claro: os ‘motorizados’ não estão de sacanagem. São pessoas que trabalhavam em outras áreas e que ficaram desempregadas. O cara tem um carro, engata uma carretinha e sai catar [materiais recicláveis]. É a lei da selva. É cada um defendendo o seu”, resume.
Um exemplo desse fenômeno é Jorge, um desempregado de 37 anos que pediu para não informar seu sobrenome por receio de retaliação de carrinheiros. Morador do bairro Hauer, ele era dono de uma pequena loja de roupas que não resistiu à pandemia e fechou as portas em fevereiro do ano passado. Sem ocupação, ele até pensou em se tornar motorista de aplicativo, mas seu carro – um Celta de duas portas, ano 2007 – está fora das especificações exigidas. Segundo Jorge, a reciclagem foi sua “última opção”: ele alugou uma carretinha de um vizinho, que engata em seu automóvel para fazer as coletas. Hoje, está acostumado à rotina de “motorizado”. “Tem dia que chego a fazer três viagens, puxando 200 ou 250 kg em cada uma. Em um dia bom, descontando a gasolina, dá pra tirar uns 200 ou 250 [reais]. A reciclagem foi o jeito que encontrei pra pagar as contas e garantir o leite da minha filha”, afirmou. “Trabalho direitinho, consegui alguns condomínios bons, que deixam [o material] separado. Se encontrar com carrinheiro, dá treta. Elas xingam, não aceitam. Eu entendo o lado deles, mas tou trabalhando também”, disse.
Outro “motorizado” – que também falou sob condição de anonimato – perdeu o emprego de garçom em um hotel em maio de 2020. Até tentou recolocação profissional, mas não conseguiu e passou a engrossar o contingente de mais de 12 milhões de desempregados do país. Hoje concilia a coleta dos materiais com as corridas que faz como motorista de Uber. Graças a isso ele pôde manter em dia as parcelas do financiamento de seu carro, um Renault Kwid. “Quando o movimento do Uber tá caindo, eu corro em casa, engato a carretinha e saio catar [recicláveis]. Quando eu termino de encher, dá o tempo certinho em que começa a voltar o horário de pico do Uber. Estou ganhando um pouco mais que antes”, disse. “O pessoal do comércio e de condomínio prefere que a gente recolha [os materiais]. Eu sei que eles [os carrinheiros] reclamam. Fazer o quê? É do jogo. A gente foi empurrado a isso”, acrescentou.
A concorrência desigual faz com que muitos carrinheiros sonhem em ter o próprio carro. Na Vila das Torres, William Jeferson, de 28 anos, comprou uma Kombi usada quando o número de “motorizados” começou a afetar mais significativamente o trabalho de quem já vivia da reciclagem. O veículo, no entanto, foi apreendido em uma blitz da Polícia Militar (PM). De lá para cá, ele perdeu outras duas peruas em circunstâncias parecidas. No início de abril, comprou outra Kombi por 4 mil reais, de forma parcelada. Ele sabe que o veículo está com o licenciamento atrasado e não está em condições adequadas de rodar conforme a legislação, mas prefere arriscar.
“É isso ou ficar empurrando carrinho e perigando passar fome. Vou fazer o quê? Tem que comer. Faço quantas viagens der. Até três por dia”, resumiu. “Agora tenho que fazer dinheiro para pagar essas dívidas. O ruim é que a PM e a Setran [Secretaria Municipal de Defesa Social e Trânsito] não podem ver catador, que já vêm atrás para aprender. É uma presepada”, disse.
Perto dali, José Schafka, de 46 anos, sorri, orgulhoso. Após 24 anos trabalhando como carrinheiro, ele conseguiu comprar um caminhão baú, da marca Iveco Daily. Agora, ele consegue recolher o dobro de materiais que catava com o carrinho, mas saindo para as coletas três vezes por semana – às segundas, quartas e sextas-feiras. Além disso, não precisa vender aos galpões intermediários do bairro: pode negociar diretamente com as empresas recicladoras, ganhando mais pelo quilo.
“Aqui na vila, os galpões pagam 30 centavos pelo quilo de papelão. Eu separo tudo aqui e levo direto na empresa que faz a reciclagem, onde me pagam 45 centavos pelo quilo. E tem a vantagem de conseguir pegar sucata, que não vale a pena pegar de carrinho, porque faz muito volume”, exemplificou. “O caminhão representa uma liberdade. O pessoal [os carrinheiros] reclama, fala de concorrência desleal. Mas tá todo mundo lutando pelo seu. Eu puxei carrinho a vida inteira pra ter meu caminhão”, justificou.
Sem expectativa de comprar um carro nem alternativa de trabalho, Edmilson Bueno do Nascimento, o catador solitário do primeiro parágrafo, persiste na corrida pelos recicláveis. No feriado da quinta-feira passada (21), acordou às 5 horas, mais cedo que de costume, numa última tentativa de vencer a corrida com os “motorizados”. Deixou a Vila das Torres quando ainda estava escuro, puxando o carrinho “emprestado” pelo dono do galpão. Mais uma vez, se desapontou. Catadores a bordo de carros ou peruas já tinham passado por outros dois condomínios em que ele costumava recolher os materiais recicláveis. “Não tem como ganhar deles [dos motorizados]. Pra gente, que é ainda mais pobre, não sobra nada. Nem lixo”, disse.