A difícil busca pela genealogia negra no Brasil: história apagada e memórias resgatadas

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Escravidão, migração e traumas sociais dificultam o resgate de ancestralidades, mas iniciativas acadêmicas e familiares resistem.

A herança invisível da escravidão

AGÊNCIA PÚBLICA – No Brasil, traçar a genealogia de pessoas negras é um desafio marcado pelo apagamento sistemático de memórias e documentos. Enquanto a escravidão beneficiou elites econômicas e políticas, deixou como legado para a população negra a perda de identidades e histórias familiares.

Esse processo de silenciamento histórico começa com o tratamento impessoal dado às pessoas escravizadas, frequentemente mencionadas apenas pelo primeiro nome ou por alcunhas em registros oficiais. Mesmo hoje, com 55% da população brasileira se identificando como preta ou parda, o país enfrenta dificuldades em preservar e valorizar a história e cultura dessa parcela majoritária da sociedade.

Educação e memória: um longo caminho pela frente

A inclusão da história e cultura africana no currículo escolar, obrigatória desde 2003 pela Lei 10.639, ainda é uma promessa em muitos municípios. Pesquisa recente revelou que 70% das secretarias de educação fizeram pouco ou nada para implementar esses conteúdos.

A professora Hebe Mattos, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ressalta que, apesar de avanços na historiografia sobre a escravidão, a narrativa dominante continua coisificando pessoas negras, limitando-se a registros como inventários e processos criminais. Segundo ela, a tradição oral e a memória coletiva são indispensáveis para resgatar histórias apagadas.

Apagamento e resistência: os desafios da genealogia negra

Os processos de migração, miscigenação e desenraizamento agravaram o apagamento de memórias genealógicas. Para famílias negras, a escravidão não só desfez laços familiares como também dificultou a transmissão de histórias. Como explica a professora Marley Antonia Silva, do Instituto Federal do Pará, “o silêncio sobre memórias coletivas é uma escolha do presente”.

Ela destaca que a construção da memória negra depende de coletividades e da resistência cultural. Em Belém, por exemplo, histórias de figuras como Mariana e Generalda, que lutaram por sua liberdade no período colonial, só são conhecidas graças a redes de apoio e a preservação oral por comunidades locais e movimentos negros.

Histórias de resistência que transcendem o apagamento

Em um esforço pessoal para reconstruir sua genealogia, a professora Nilma Teixeira Accioli descobriu a história de sua tataravó Margarida, escravizada em Angola e trazida para o Brasil, onde conheceu Gonçalo, do Congo. Durante sua pesquisa, Nilma descobriu que Margarida havia trazido consigo uma semente de tinhorão, que se tornou um símbolo da resistência e união familiar.

“Todo mundo da família tem a semente da batata do tinhorão. É como se a presença de vó Margarida e de vô Gonçalo estivessem sempre com a gente”, conta Nilma. Para ela, a valorização da ancestralidade é essencial para o reconhecimento pessoal e social.

Construindo um futuro ancorado na memória

A busca pela genealogia de pessoas negras no Brasil não é apenas uma questão de documentos, mas de memória coletiva e identidade. Como aponta a professora Marley Silva, o Estado, a imprensa e as instituições de ensino têm a obrigação de preservar essa história. Projetos como o “Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos”, liderado por Hebe Mattos, mostram que o resgate é possível, embora desafiador.

“Descobrir a ancestralidade é descobrir a si mesmo”, conclui Nilma Teixeira Accioli. E, em um país que ainda luta para reconhecer sua diversidade e seu passado, esse resgate é essencial para construir um futuro mais inclusivo e consciente.

 

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