Anitta provoca a Bossa Nova e mostra ao mundo um Brasil com churrasco, piscinão de Ramos e corpos diversos. Lá, mulheres não são “cheias de graça”: são gostosas. Como novo clipe reverbera décadas de produção musical – e a situação do país
A Garota do Rio não é a “coisa mais linda, mais cheia de graça“. Ela não se desloca num barquinho que vai e vem ao cair da tarde. Ela não lança um olhar discreto que inspira o “se voltar vou atrás” e tampouco “tem este mar no olhar“. Ela não é branca, magrinha, nem “anda bem devagar que é pra não se cansar“.
Ela é quente, não hesita em se apresentar como gostosa, rejeita o lugar de modelo com roupas finas nas passarelas ou formas perfeitas nas praias e ostenta suas “grandes curvas”. E, sobretudo, quer mostrar que vem de um lugar que, quem amou e ama a “Garota de Ipanema” e a Bossa Nova, não conhece. Ou só conhece pelo sofrimento e pela tragédia estampados nos jornais.
Não se trata de subestimar a importância poética, melódica e harmônica da Bossa Nova para a cultura brasileira e para a cultura universal. Nossos gênios musicais contemporâneos (Chico, Caetano, Gil, Edu Lobo, mas também Milton, João Bosco, Guinga, Lenine e tantos outros) são herdeiros diretos do que fizeram Tom Jobim, Carlos Lyra, Bôscoli, Menescal e Marcos Valle. No prefácio ao maravilhoso songbook de Edu Lobo, Tom Jobim sentencia: “eu te saúdo, em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Na cultura ocidental, Brasil e Estados Unidos têm a música popular de maior profundidade e sofisticação.
Não se trata, tampouco de subestimar a capacidade que a música popular brasileira sempre teve, desde o que hoje se considera o primeiro samba (“Pelo telefone“, de Donga e Mauro de Almeida, gravado em 1916), de denunciar o arbítrio, as desigualdades, o racismo e mesmo o machismo, como em “Golpe errado” de Geraldo Pereira, na linda interpretação de Ciro Monteiro. Maria Moita de Carlos Lyra e Vinícius é um outro exemplo de denúncia da submissão feminina e, ao mesmo tempo, contra a opressão de classe.
Mas o clipe de Anitta vai além disso. Ele é muito mais que a acusação fundamental em torno do lugar subalterno, sofrido, oprimido, esmagado em que a mulher — e sobretudo a mulher negra — vive. Wilson Batista, denunciando a moça que “parecia uma tocha humana rolando pela ribanceira, a pobre infeliz teve vergonha de ser mãe solteira” ou Nelson Sargento se insurgindo (na linda voz de Paulinho da Viola) contra o “falso moralista” que “até vedete você diz não ser artista” exprimem este drama, exposto igualmente nas mulheres de Atenas de Chico Buarque ou no quanto “este cara tem me consumido” de Caetano Veloso.