A gastronomia dos tiranos

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Os chefs dos ditadores: uma história de comida e terror. Ditador africano feroz, o ugandense Idi Amin traça um franguinho

Uganda. Idi Amin corre por seu palácio com a jugular latejando e o punho erguido: “Se acontecer alguma coisa com ele, eu mato todos vocês!!!”. É um dos ditadores africanos mais ferozes da história, e está ameaçando diretamente aos seus cozinheiros. O filho do tirano, um glutão irremediável, exagerou no pilaf da sobremesa, uma espécie de arroz doce, e por isso está sentindo uma forte dor de barriga. A paranoia do envenenamento do seu filho leva Idi Amin à loucura.

Em uma tentativa desesperada de salvar a própria pele, Otonde Odera, o chef de confiança do ditador, passa a mão no garoto e o leva correndo ao médico. Arrisca tudo; sabe que não tem mais nada a perder. O doutor pressiona o abdômen inflamado do jovem paciente. Silêncio. Suor frio. De repente, o filho de Amin solta um peido ensurdecedor que alivia seu incômodo e, de passagem, salva a vida de toda a equipe de cozinha. Sim, salvos por um pum.

Essa é uma das muitas histórias que Witold Szablowski narra no livro Jak nakarmić dyktatora (“como alimentar um ditador”, inédito no Brasil). Para escrevê-lo, o jornalista polonês percorreu o planeta entrevistando os cozinheiros de alguns dos ditadores mais brutais do século XX, ninguém menos do que Saddam Hussein, Pol Pot, Idi Amin, Enver Hoxha e Fidel Castro. Um timaço de opressores, filtrado pelo prisma de seus chefs pessoais, os que viram, alimentaram e suportaram os monstros em sua mais estrita intimidade.

Alguns relutaram. Abu Ali, o cozinheiro de Saddam, por exemplo, demorou três anos para dar a entrevista. “O mais complicado foi encontrar estes chefs e convencê-los a falarem. Todos tinham sobrevivido cozinhando para tiranos porque souberam manter a boca fechada durante anos e décadas. Superado esse entrave, foi tudo mais fácil, e, surpreendentemente, revelaram-se como magníficos contadores de histórias”, afirma Szablowski. Talvez por isso, o jornalista cede a maior parte do protagonismo a esses cozinheiros ―alguns mais lúcidos que outros, por razões óbvias de idade―e só inclui a sua própria voz quando é preciso situar o leitor ou descrever o contexto histórico e social em que os opressores agiram.

Eis uma conclusão a posteriori: era preferível trabalhar a poucos metros do reator de Chernobyl do que ser o cozinheiro pessoal de um ditador. Os chefs deste livro são sobreviventes e, apesar de terem gozado de muitos privilégios, passaram vários anos submetidos a uma pressão inimaginável, em permanente equilíbrio sobre uma impossível corda-bamba: por um lado, foram as pessoas de maior confiança dos ditadores, manipularam sua comida, e a saúde dos chefes de Estado dependia em grande parte deles. Por outro, viveram sob a constante ameaça de serem executados: um ingrediente equivocado, uma indigestão ou uma suspeita infundada podia resultar em uma morte certa (e com toda probabilidade horrível). Curiosamente, alguns deles, como o cozinheiro de Saddam Hussein, ainda professam uma lealdade cega ao ditador.

“Era uma situação estranha. Estes chefs não passavam fome nem penúrias enquanto seu povo morria de fome, mas ao mesmo tempo podiam ser executados por exagerarem no sal”, afirma Szablowski. O nível de sacrifício, lealdade e entrega também era extremo: não tinham horários, estavam sempre submetidos às decisões de seus superiores e, se fosse necessário, se deslocavam com os ditadores a esconderijos e inclusive zonas de conflito. “Estes chefs pagaram um alto preço. A cozinheira de Pol Pot morreu no ano passado de câncer de estômago, o que não deixa de ser simbólico, dado o esforço que fez por esconder a verdade sobre o que Pol Pot fez e por enganar a si mesma. Por outro lado, há cozinheiros que sofrem quadros de estresse pós-traumático, como os soldados que estão na frente de combate”, comenta Szablowski.

Além de histórias curiosas e receitas ―que também há― o relato sobre as interações entre cozinheiros e ditadores gera os momentos mais interessantes do livro. Tece-se uma relação de dependência/confiança/desconfiança/terror/admiração que causa vertigem. “É uma relação estranha. O chef é como a mãe do ditador, quem o alimenta, quem está sempre por lá. E quando falamos de relações longas, como a do cozinheiro Erasmo Hernández com Fidel Castro, que estiveram juntos por 50 anos, o chef desenvolve uma admiração e amizade, embora nunca seja íntima, pois um ditador nunca permitiria isso. Inclusive alguns se apaixonam pelo ditador, como a jovem Moeun de Pol Pot. Na verdade, os ditadores são bons psicólogos e entendem que precisam tratar bem seus cozinheiros se quiserem comer bem”, afirma Szablowski.

Chef Erasmo Hernández: Fidel Castro gostava de cozinhar o próprio espagueteChef Erasmo Hernández: Fidel Castro gostava de cozinhar o próprio espaguete

Outra conclusão pós-leitura: os ditadores comiam como imperadores, enquanto seu povo caçava ratos e outros bichos para se alimentar. Nada de novo no horizonte. Mas o que comiam? Saddam Hussein amava a sopa de peixe de Tikrit, com peixe gorduroso e legumes, e não fazia cara feia para um kafta (basicamente, um espetinho de carne moída de vaca e cordeiro). A salada de mamão de Pol Pot tinha que ser no estilo tailandês, ou ele nem provava. Fidel Castro era louco por massa e, segundo conta o livro, fazia questão de cozinhar pessoalmente seu espaguete. Amava sopa de legumes e de vez em quando se deixava tentar por um cordeiro com mel ou leite de coco. Outra paixão do ditador cubano eram os lácteos e, sobretudo, os sorvetes: podia engolir baldes inteiros. Foi ele, aliás, quem ordenou a construção da conhecida sorveteria Coppelia, em Havana.

Uma das dietas mais inquietantes era a do tirano albanês Enver Hoxha. O líder comunista tinha sofrido um grave enfarte, era diabético e precisava seguir uma dieta rigorosa, sem jamais ultrapassar 1.200 calorias por dia. Com tão escassa margem e a pressão constante dos médicos, seu cozinheiro, cuja identidade não é revelada, tinha que fazer malabarismos para alimentar aquele sujeito hiperativo, de um metro e oitenta, sem que passasse fome. Se a frágil saúde de Hoxha o traísse e o ditador morresse, seu chef sabia que o próximo a ir para baixo da terra seria ele.

O caso de Enver Hoxha é também um fascinante relato sobre como a comida pode influenciar o estado de ânimo das pessoas, inclusive ditadores, por mais animalescos que sejam. O albanês foi um psicopata com uma sinistra conta de cadáveres no armário, entre eles seus colegas de colégio e seu cunhado. Mas o cozinheiro de Hoxha soube moderar o tirano em seus momentos de cólera com deliciosas sobremesas que elaborava com adoçante artificial. Muitas vidas inocentes foram salvas graças a esse herói anônimo que mitigou os instintos assassinos do genocida com sua destreza confeiteira.

“A vida dele com certeza foi salva. Hoxha chegou ao poder matando todos os seus amigos, inclusive tinha matado o chef anterior, que foi acusado de atentar contra sua vida. O cozinheiro que entrevistei no livro sabia que se não fizesse algo não tardaria a seguir o mesmo caminho. Então precisou aprender a cozinhar a comida favorita de Hoxha, do jeito que o ditador mais gostava. Virou um cozinheiro insubstituível para salvar não só a vida de muitos inocentes, mas também a sua própria. É uma história incrível”, diz Szablowski.

Mão na massa

Zsablowski: ‘Cozinheiros trabalhavam para tiranos sob a ameaça de perder a vida’Zsablowski: ‘Cozinheiros trabalhavam para tiranos sob a ameaça de perder a vida’

Ao ler Como alimentar um ditador, impressiona ver os delírios aos quais são submetidos os serviçais delirantes de um opressor. Se Saddam não gostasse de um jantar, obrigava os cozinheiros a pagarem do seu bolso os ingredientes utilizados ―embora todos os anos desse um carro de luxo a todos eles. O cozinheiro de Idi Amin recebeu um substancioso aumento salarial no dia em que uns ingleses disseram ao ditador, anglófilo reconhecido, que seu chef cozinhava como um branco. O cozinheiro de Hoxha compartilhou mesa com o genocida e sua família em uma exclusiva ceia de Réveillon, graças às delícias do seu sheqerpare, uma bolacha tradicional albanesa que encantou o dirigente.

Através destas histórias e receitas, Witold Szablowski não só se pergunta o que come um ditador, mas também como diabos alguém alimenta um tirano sem morrer por causa disso. Como esses cozinheiros se viraram para atender aos caprichos ou estritas necessidades culinárias dos autocratas em situações de enorme pressão. Como chegaram até lá. Como, através da comida, viraram confidentes dos homens mais temidos de sua geração: o duro trabalho de alimentar o terror e viver para contar. (Oscar Broc para La Vanguardia)

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