A pedra de Edward Said contra o colonialismo

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
O destacado intelectual palestino Edward Said faleceu neste dia em 2003. Para Said, o intelectual deveria ter compromisso político com suas teses – e as dele demoliam o arcabouço ideológico que sustentava o imperialismo no Oriente Médio.

No dia 7 de julho deste ano, uma articulista do periódico americano Newsweek publicou uma estranha “homenagem” a Edward Said, chamando-o de “profeta da violência política nos Estados Unidos”. O texto, repleto de clichês pejorativos contra muçulmanos – embora Said viesse de uma família de cristãos protestantes – acusava o crítico literário palestino, apontado como uma “super-estrela da esquerda radical”, de “niilismo intelectual” e de “manipular os estudantes para que eles se engajassem em violência política”. O que leva a articulista da Newsweek arremeter contra Said é um incidente na fronteira entre Israel e Líbano, no ano de 2000, quando o intelectual foi fotografado arremessando uma pedra contra uma torre de vigia israelense. A pedra de Said contra Israel seria um prenúncio dos protestos confrontacionais que tomaram as ruas das grandes cidades dos Estados Unidos nos últimos tempos. 

O texto da Newsweek é horroroso, mas ao mesmo tempo serve como um bom pretexto. Pensar Said como um profeta de mobilizações massivas como as do Black Lives Matter é de fato inspirador, mesmo que a sua figura não seja explicitamente reivindicada nos protestos. Há um curioso detalhe esquecido nesse evento. Desde 1991, Edward Said lutava contra uma leucemia crônica, que acabou abreviando a sua vida em 2003. Um homem enfermo, nos seus últimos anos de vida, lançando uma pedra contra uma estrutura militar de um poderoso exército de ocupação é o pretexto perfeito para falar sobre o que significava ser um intelectual para Said.

A pedra de Rosetta e o orientalismo

Atrajetória de vida de Edward Said, como intelectual de origem árabe palestina, marca sua obra profundamente. Ao estudar os cânones da “literatura ocidental”, Said pode experimentar como seu espaço de “não-ocidental” era constantemente demarcado. No fundo, uma questão o inquietava: enquanto árabe, os seus pares anglo-saxões só lhe permitiram escrever sobre a cultura árabe? Esse era um mundo acadêmico em que, diante do contexto de Guerra Fria, as universidades norte-americanas viram proliferar os chamados “area studies”, ou os “estudos de área”, campos multidisciplinares que se debruçavam sobre uma região ou país estrategicamente importante para os EUA. Dessa forma, muitos intelectuais ao redor do mundo foram atraídos pelas universidades norte-americanas, tornando-se especialistas.

Said sabia que, por muitos anos, muitos intelectuais europeus e norte-americanos se sentiam seguros para falar sobre a cultura árabe, reconhecidos como especialistas no tema – os chamados “orientalistas”. Os estudos “do Oriente”, afinal de contas, eram uma tradição antiga em grandes universidades como Oxford, Cambridge, Sorbonne etc. Museus como o Museu Britânico e o Louvre incorporavam a memorabília e os artefatos dos mais diferentes povos e impérios ao redor do globo. Diante disso, o que cabia aos árabes, ao adentrarem o espaço acadêmico norte-americano, era somente falar da cultura árabe, legitimando a posição dos “especialistas”? Na esteira dessas reflexões, a questão primordial para Said era: afinal, o que permitia que o Ocidente tivesse tamanha primazia sobre os estudos do chamado “Oriente”?

Com base nessas reflexões e mergulhando na crítica literária ocidental, Said lança em 1978 a sua principal obra, O Orientalismo, uma reflexão devastadora sobre como o chamado Ocidente construiu uma noção de “Oriente” que, em última instância, serviu para construir e referendar a posição de dominação imperialista de países como Inglaterra, França e EUA. O imperialismo, por sua vez, não pode ser entendido somente em sua dimensão econômica, mas também cultural: o domínio sobre diferentes povos, a acumulação de riqueza, a espoliação de sociedades e impérios tradicionais, tudo isso veio acompanhado de uma imensa quantidade de novos “especialistas” que se davam o direito de dizer o que pensavam os chineses, os indianos, os árabes, enquanto saqueavam suas riquezas e exploravam sua mão-de-obra. Esse caráter duplo do imperialismo, econômico e cultural, pode ser visto na dominação inglesa em Bengala, já no final do século XVIII: o início do imperialismo britânico na Índia, que culminou na morte de 10 milhões de bengaleses por fome, foi marcado também pela impressionante proliferação de traduções inglesas sobre textos clássicos do hinduísmo. Dessa forma, os primeiros orientalistas que surgiram no Ocidente nasceram tendo de omitir os brutais crimes que os ingleses cometiam em abundância na Índia.

Não se trata de mero detalhe que a narrativa de Said dê ênfase na famosa pedra de Rosetta. A estela de pedra que traduzia hieróglifos das pirâmides e dos templos do Egito antigo para o grego, foi capturada pelos franceses, na conquista napoleônica na região. Com a derrota das tropas de Napoleão, o artefato foi levado para o Museu Britânico, em 1802, onde se encontra até hoje. Para Said, o roubo dessa relíquia foi um divisor de águas, pois permitiu que, por meio do saque e da pilhagem, o Ocidente pudesse estudar o Oriente como um “objeto”, definindo-o de forma restrita e singular, segundo seus próprios interesses. No final das contas, era como se agora o Ocidente pudesse contar a própria história desse outro não-ocidental, dizer como era sua história, sua cultura, sua língua e seus costumes. Em outras palavras, não eram apenas as riquezas que estavam sendo saqueadas, mas a própria história dos povos do chamado “Oriente”.

Dessa forma, o século XIX viu as universidades europeias se tornaram centro de produção do que Said chamou de “orientalismo”, o estudo sistemático sobre o outro “Oriental”, convertido agora em objeto da ciência moderna europeia. A produção desse discurso era tanto causa como efeito do imperialismo ao longo dos séculos XIX e XX, na medida em que legitimava e validava ideologicamente o papel dominante das potências capitalistas ocidentais.

Ao afirmar que o “Oriente” é uma construção ocidental amparada na dominação imperialista – e que tem como propósito justamente embasar um campo de estudos cujo enfoque era legitimar essa relação – Said escandalizou parte do mundo acadêmico anglófono. Para muitos deles, era inaceitável que seu “amor” pelo saber sobre as sociedades e culturas do “exótico Oriente” pudesse ser questionado. Por trás dessa sensibilidade afetada, estava a recusa em reconhecer, de onde se falava sobre o outro, ou dito de outra maneira: de reconhecer privilégios, omissões e até mesmo a cumplicidade com os crimes do imperialismo. A recusa em aceitar que o saque das metrópoles à história das colônias havia sido determinante na construção de todo um campo de conhecimento era uma prova cabal do quanto o argumento de Said foi certeiro.

por Fernando Pureza | Publicado originalmente na Jacobin Brasil 

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