Setor quer enfiar commodities na merenda, arrasando princípios do PNAE como a alimentação saudável e a valorização da cultura local. E tenta invadir também a sala-de-aula e formar gerações menos críticas à devastação que opera
Em 2021, vimos a boiada tentar passar com toda a força nas escolas brasileiras. O agro – que diz produzir alimentos, mas produz commodities para exportação ou para alimentar o gado, enquanto 19 milhões de brasileiras e brasileiros passam fome – enriquece cada vez mais à custa da segurança alimentar e nutricional da população brasileira, da preservação do meio ambiente, da nossa saúde e da nossa soberania alimentar.
Setores do agronegócio têm visto as escolas como um solo fértil para gerar lucro, de olho no orçamento bilionário do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que fornece refeições diariamente a todos estudantes da educação básica da rede pública de ensino. Também elegeram essa frente para disseminar a ideia – entre educadoras e educadores, estudantes e suas famílias – de que o agro é a solução para a alimentação no Brasil.
No ano passado, entraram na pauta de votação do Congresso Nacional projetos de lei (PLs) que propõem a oferta obrigatória de alimentos como leite fluido e carne suína nas escolas da rede pública, a fim de favorecer grandes produtores desses alimentos e garantir votos eleitorais aos parlamentares autores desses projetos. São os PLs n.º 3.292/2020, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), e n.º 4.195/2012, do deputado Afonso Hamm (PP-RS).
Essas propostas afrontam as diretrizes do Pnae, como o respeito aos hábitos alimentares e à cultura local dos estudantes, e desfavorecem agricultores e agricultoras familiares que têm prioridade no fornecimento de alimentos ao Pnae, sobretudo de povos indígenas, comunidades tradicionais e de assentamentos da reforma agrária. O Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) elaborou notas técnicas sobre os riscos inerentes a essas e outras iniciativas legislativas em tramitação. É importante ressaltar que são agricultoras e agricultores familiares que alimentam o Brasil, que abastecem as escolas com comida de verdade, que preservam o solo, a natureza e a biodiversidade, contribuindo para nossa saúde e para a saúde do planeta.
Livros didáticos
Além de interferir na alimentação que é servida nas escolas públicas, o agro quer influenciar o currículo da educação básica e o conteúdo dos livros didáticos das escolas públicas e privadas.
Movimentações nesse sentido já existem há muitos anos. No estado de São Paulo, por exemplo, desde 2001 a Associação Brasileira do Agronegócio em Ribeirão Preto (Abag/RP) desenvolve o Programa Educacional “Agronegócio na Escola” em diversos municípios da região, e contou, inclusive, com a parceria da Secretaria de Educação do estado durante alguns anos.
No ano passado, a investida nas escolas se intensificou com o lançamento do movimento autointitulado “Todos a Uma Só Voz” que coloca o agronegócio como “elemento fundamental para o futuro do Brasil” no contexto de crise relacionada ao vírus Sars-CoV-2. Os fundamentos são apresentados em publicação com o sugestivo título de “O Agro para estudantes: 10 temas para tornar o ensino mais atrativo”, que, de partida, consolida a ideia propagada mais fortemente nos últimos cinco anos de que o setor é tudo: é a única cadeia produtiva relacionada a agricultura e pecuária, é tudo o que se origina no campo e está presente em tudo.
Para quem dedicou algum tempo para compreender as origens e as consequências da crise sanitária provocada pela covid-19, o conteúdo e o tom da referida campanha assustam tanto pela ousadia quanto pelo cinismo. Por um lado, é possível reconhecer que a forma de produzir do agronegócio está fortemente relacionada às causas da atual emergência sanitária. Por outro, pode-se constatar que o setor lucrou muito no contexto da chamada “coronacrise”. Cabe ainda destacar a atuação estratégica dos movimentos populares do campo e da cidade na doação de alimentos, fundamentando iniciativas solidárias que anunciam que outros sistemas alimentares são possíveis e, sobretudo, fundamentais.
Outro movimento, intitulado “De Olho No Material Escolar”, tem promovido articulações estratégicas. Formado pelo grupo “mães do agro”, conta com o apoio de parlamentares e foi recebido pelo Ministério da Educação (Mec) e pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) quando pediu que o conteúdo “distorcido”, “ideológico”, “preconceituoso” seja revisado nos livros didáticos. A própria ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que crianças são “mal ensinadas” sobre o tema, em entrevista a uma rádio de Cuiabá repercutida pelo jornal Valor Econômico. E a conversa com o ministro da Educação rendeu bons frutos para o movimento, que comemorou, em suas redes sociais, a inclusão de representantes na comissão de avaliação do material do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
No entanto, a visão supostamente “distorcida” que os livros apresentam traz à tona questões urgentes e necessárias ao debate para uma educação libertadora e que deve promover o pensamento crítico. Temas como desmatamento, violações de direitos de grupos vulnerabilizados – indígenas, povos e comunidades tradicionais, assentados da reforma agrária, mulheres camponesas –, trabalho escravo e uso de agrotóxicos devem estar presentes no debate em sala de aula.
Ainda em 2021, houve um caso de censura com uma professora de geografia de uma escola estadual no município de Bonito, no Mato Grosso do Sul, em que ela foi filmada por uma estudante, sendo acusada de “menosprezar o agronegócio”. O caso envolveu o prefeito, o vice-prefeito da cidade e a polícia.
Cabe ressaltar que uma das diretrizes do Pnae é a inclusão da Educação Alimentar e Nutricional (EAN) no processo de ensino e aprendizagem, que deve perpassar pelo currículo escolar, seguindo os princípios estabelecidos no Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas, como a sustentabilidade social, ambiental e econômica, e a abordagem do sistema alimentar, na sua integralidade. Isso quer dizer que a escola precisa trabalhar as relações econômicas e sociais envolvidas com a alimentação e presentes em todas as etapas dos sistemas alimentares, abordando questões sobre ética, justiça, equidade e soberania. E, segundo o marco de referência, “as ações de EAN precisam abranger temas e estratégias relacionadas a todas estas dimensões de maneira a contribuir para que os indivíduos e grupos façam escolhas conscientes, mas também que estas escolhas possam, por sua vez, interferir nas etapas anteriores do sistema alimentar”.
A inclusão da produção agroecológica e camponesa na alimentação escolar tem papel transformador e estratégico não apenas pela criação de mercado institucional, mas, sobretudo, pelo seu potencial pedagógico, por propiciar aos estudantes da rede pública o acesso à alimentação adequada e saudável e por valorizar a cultura alimentar local.
Entre 2019 e 2021, a Articulação Nacional de Agroecologia (Ana), o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e muitos outros parceiros desenvolveram uma pesquisa-ação em nove territórios de todo o país sobre a inserção de alimentos agroecológicos no Pnae. O estudo mostra a diversificação dos cardápios, com variedade de frutas, verduras, legumes da estação e produzidos na região, por isso mais frescos. Tais alimentos são recomendados pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde, para compor a base da alimentação. Juçara, murici, cajá, pequi, umbu, cupuaçu, cumbaru e babaçu são alguns dos alimentos da sociobiodiversidade e de grande valor nutricional que passaram a ser consumidos – in natura ou como ingredientes de biscoitos, pães, mingaus – pelas alunas e alunos das escolas públicas dos territórios pesquisados. Destaca-se o protagonismo de grupos de mulheres agricultoras e de comunidades tradicionais no fornecimento desses itens. A pesquisa também mostrou que ainda são muitos os desafios para que os produtos da agricultura familiar cheguem até os pratos nos refeitórios escolares. Há casos em que os cardápios adotados pelas redes estaduais e municipais desconsideram essa diversidade produtiva e sua sazonalidade. Além disso, observa-se a falta de apoio logístico para transporte e armazenamento desses alimentos e de assistência técnica por parte do poder público.
A coerência e a responsabilidade apontam a importante tarefa de não apenas tomar conhecimento destas iniciativas para denunciá-las, mas sobretudo anunciar que, mesmo num cenário desumanizante e produtor de fome, brotam diferentes formas de resistência e sobrevivência que anunciam que outros sistemas alimentares são absolutamente possíveis e necessários.
A atuação da sociedade civil em defesa da soberania alimentar e do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas no Brasil apontou caminhos para pensar o papel do Estado na promoção de formas mais justas, sustentáveis e adequadas de produzir alimentos. Mesmo com os duros ataques ao campo das políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional, a pandemia revelou a importância que teve o investimento público no fortalecimento das estratégias locais de produção.
A ofensiva do agronegócio tende a aumentar. É preciso proteger o ambiente escolar contra essas investidas, seja no material didático, na alimentação fornecida às crianças e adolescentes, em publicidade, em eventos ou atividades. Também é fundamental a mobilização da sociedade civil organizada em defesa do Pnae e suas diretrizes, para que essa política possa cada vez mais abastecer as escolas com alimentos da produção agroecológica e contribuir, assim, para a construção de sistemas alimentares mais saudáveis, justos e sustentáveis.
Por fim, é realístico convidar cada educadora e educador – seja professora, agrônoma, nutricionista, agricultora e outros profissionais envolvidos com a educação e a alimentação escolar – a realizar leitura aprofundada do material didático que chega às escolas, a fim de previamente identificar suas contradições e as (nem tão sutis) armadilhas contidas em seus slogans. Como alertou Paulo Freire décadas atrás no livro Extensão ou Comunicação?, é fundamental que se reflita criticamente sobre esse fazer educativo compreendendo que “um ponto de apoio visual é um ponto de apoio visual, nada mais. Tanto pode ser usado como um recurso para ‘domesticar’, como pode servir para propósitos libertadores”. Continuar este movimento de compreensão, diálogo, denúncia e anúncio é essencial.
Por Vanessa Manfre, Juliana Casemiro, Vanessa Schottz e Morgana Maselli no Le Monde Diplomatique Brasil
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