Presidente vai enfrentar primeira comissão de inquérito que tem como alvo sua gestão. Outras administrações souberam controlar CPIs a seu favor, mas instalação de colegiado chega em hora complicada para o atual governo
“CPI a gente sabe como começa, mas não como termina”, diz um axioma em Brasília que costuma ser atribuído ao ex-senador Jorge Bornhausen ou ao ex-deputado Ulysses Guimarães. Nesta semana, pela primeira vez em mais de dois anos de mandato, o presidente Jair Bolsonaro vai passar a enfrentar a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tem como objeto seu governo. O tema: a gestão do Planalto durante a pandemia.
A CPI chega em momento difícil para Bolsonaro, que enfrenta um cenário econômico caótico, uma interminável crise sanitária, índices de popularidade em queda e uma relação tumultuada com sua recém-expandida base de apoio no Congresso. Pesquisa Datafolha de março mostrou que 54% dos brasileiros reprovam desempenho de Bolsonaro na pandemia – apenas 22% aprovam. O país também passa pelo pior momento da pandemia, registrando regularmente marcas de mais de 3 mil e até 4 mil mortes por dia, com diversas cidades enfrentando o colapso das suas redes hospitalares.
O presidente reagiu com virulência à instalação da CPI, distribuindo, por exemplo, ataques ao STF. Bolsonaro costuma explorar episódios em que está sob pressão para energizar sua base radical e transferir a culpa de seus fracassos a outras forças políticas, mesmo quando tais reações podem ter alto custo político.
Segundo o pedido apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o objetivo da CPI é “apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados”.
O Brasil ultrapassou no sábado a marca de 350 mil mortes por Covid-19 apenas 17 dias após cruzar a linha de 300 mil. Em pouco mais de um ano de pandemia, o governo se notabilizou por minimizar o perigo, sabotar medidas de distanciamento social, promover curas ineficazes, evitar articular uma política de enfrentamento nacional, além de promover paranoia sobre supostos riscos de vacinas e demonstrar desinteresse em garantir imunizantes para a população.
Em janeiro, um estudo conjunto da USP e da ONG Conectas Direitos apontou que o governo colocou em prática uma “estratégia institucional para propagar o coronavírus no país”. No mesmo mês, um instituto australiano apontou que nenhum país do mundo lidou de forma tão ruim com a pandemia do novo coronavírus como o Brasil.
No caso de Manaus, existe a suspeita de que o Ministério da Saúde decidiu não agir para impedir o colapso do sistema de saúde da cidade em janeiro, mesmo sabendo dos problemas de antemão.
A instalação da CPI
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), disse no último sábado (10) que vai realizar na próxima terça-feira a leitura em plenário do requerimento de criação da CPI da Pandemia, marcando oficialmente a instalação do colegiado.
A leitura do ato deve mostrar que o Senado está cumprindo a determinação do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, que na última quinta-feira (8) mandou Pacheco instalar a comissão de inquérito atendendo a um mandado de segurança apresentado por dois senadores. Pacheco vinha resistindo a instalar a CPI, mesmo com a oposição reunindo o número de assinaturas necessárias para a instalação da comissão. Até o momento, o requerimento reúne 32 nomes, mais do que os 27 necessários.
A ordem de Barroso, por sua vez, não foi inédita. Em outras ocasiões, o STF também determinou a instalação de CPIs que reuniam assinaturas necessárias diante da resistência de presidentes do Senado e Câmara alinhados com o Planalto. Em 2005, a CPI dos Bingos só foi instalada após senadores da oposição recorreram ao STF. O mesmo ocorreu em 2007 na Câmara com a CPI do Apagão Aéreo e em 2014 com a CPI da Petrobras.
Em todas essas ocasiões, ministros do STF destacaram que a investigação parlamentar é um direito constitucional à disposição das minorias no Legislativo. O plenário do STF deve julgar na próxima quarta-feira a decisão de Barroso. A tendência, segundo vários veículos de imprensa, é que a decisão seja mantida.
Base mais frágil no Senado
Acuado pela crise persistente e os problemas de sua família na Justiça, Bolsonaro tratou de reconstruir pontes com o Congresso, em especial com a Câmara, Casa que tem prerrogativa de abrir um eventual processo de impeachment. O Planalto se envolveu diretamente nas eleições dos presidentes das duas Casas, o senador Pacheco e o deputado Artur Lira (PP-AL). Embora a articulação, que selou uma aliança mais ampla com o Centrão da Câmara, tenha afastado num primeiro momento o risco da abertura de um impeachment, as relações ainda continuam tumultuadas, com o bloco exigindo mais espaço no governo e uma gestão mais eficiente da pandemia.
Já no Senado, embora Pacheco ainda demonstre alinhamento com Bolsonaro – exemplificado por sua resistência em instalar a CPI -, a base do governo na Casa é mais frágil. Ao contrário da Câmara, não há um “Centrão” amplo no Senado que concentre demandas de parlamentares por cargos e verbas. Essa maior fragilidade foi justamente exposta pela CPI. A oposição não conseguiu articular movimento similar na Câmara, mas foi bem-sucedida no Senado.
Nos últimos meses, a Casa também entrou em choque aberto com o Planalto, especialmente em relação à política externa de Bolsonaro, chegando a rejeitar um embaixador indicado pelo governo para um posto em Genebra. Foi apenas a terceira rejeição do tipo na história da Casa. Apenas governos enfraquecidos como a segunda administração Dilma Rousseff (2015) e Jânio Quadros (1961) haviam sofrido derrotas similares em indicações para postos diplomáticos.
Senadores também fizeram campanha aberta pela saída de Ernesto Araújo do Itamaraty. Bolsonaro cedeu nesse ponto, mas ainda não abriu espaço para o Senado no governo. Não há nenhum ministro senador, ao contrário do que ocorre com deputados. A instalação da CPI deve aumentar o poder de barganha de senadores nas articulações com o Planalto.
As armas do governo
No momento, o Planalto trabalha para tentar convencer alguns senadores a retirarem suas assinaturas do requerimento para a criação da CPI para garantir que não haja o mínimo necessário. Segundo o regimento do Senado, parlamentares podem retirar assinaturas até a meia-noite do dia em que o requerimento de instalação da CPI for lido em plenário – o que está previsto para terça-feira.
Caso essa manobra não seja bem-sucedida, senadores governistas já atuam para atrasar o início dos trabalhos da comissão, tentando convencer algumas bancadas a não indicarem representantes para a CPI.
A comissão é composta por 11 titulares e 7 suplentes. Não há normas que estabeleçam um prazo-limite para que blocos e partidos indiquem seus representantes. Não é incomum na história do Congresso que CPIs oficialmente criadas nunca sejam efetivamente instaladas. Caso isso ocorra, resta à oposição recorrer ao STF. Em 2005, senadores alinhados com o governo Lula executaram essa tática para a postergar o início da CPI dos Bingos. Parlamentares da oposição acionaram o Supremo, que determinou que o presidente do Senado indicasse nomes para a comissão.
Outra ferramenta que o governo pode usar é pressionar os senadores a expandirem o escopo das investigações, incluindo a gestão de estados e municípios, diluindo assim o foco no governo. Na sexta-feira (9), Bolsonaro já fez um questionamento nesse sentido. Um dos senadores que apresentou o pedido ao STF para a instalação da CPI, Alessandro Vieira (Cidadania-SE), já manifestou ser favorável a essa ampliação, afirmando que a iniciativa acabaria “com as desculpas” de Bolsonaro contra a instalação da comissão.
Em governos anteriores, a tática clássica para enfraquecer uma CPI era assegurar o controle dos cargos mais importantes da comissão – a presidência e a relatoria. No entanto, o governo Bolsonaro tem menos presença no Senado para garantir esse cargos. Até aqui, além disso, o governo vem enfrentando problemas na articulação política para garantir uma base sólida e confiável no Congresso.
Se essas armas falharem, analistas acreditam que o governo pode apostar em táticas diversionistas, como ocorreu ao longo da CPMI das Fake News, em que testemunhas alinhadas ao governo aproveitaram o palco para distribuir ataques e mentiras, tumultuando as sessões.
Os riscos
CPIs têm poderes de investigação similares aos de autoridades judiciais, incluindo determinar diligências, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, requisitar de órgãos e entidades da administração pública informações e documentos, requerer a audiência de ministros, tomar depoimentos de autoridades federais e solicitar os serviços de autoridades policiais. No passado, CPIs obtiveram informações importantes por meio de depoimentos e quebra de sigilos. Ao encerrar os trabalhos, a CPI pode enviar as investigações e conclusões ao Ministério Público, resultando em desdobramento judiciais.
Caso seja realmente instalada, a CPI deve convocar os antigos responsáveis pela política de Saúde do governo Bolsonaro: os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello – o último já é alvo de um inquérito no STF por causa da gestão relapsa do governo na crise em Manaus. Teich e especialmente Mandetta hoje são críticos do governo. Pazuello, por sua vez, que atuou como um cumpridor de ordens de Bolsonaro em seus dez meses de gestão, demonstrou nervosismo quando pressionado por senadores em uma audiência em fevereiro. A CPI também pode jogar mais luz sobre a falta de empenho do governo em negociar a compra de vacinas ao longo de 2020 e a insistência do Planalto em promover curas ineficazes.
Paralelamente, a CPI pode erodir a relação frágil de Bolsonaro com o Congresso. No momento, o governo e os parlamentares protagonizam embates sobre o Orçamento deste ano. Bolsonaro tenta vetar trechos do texto aprovado no Legislativo, que supera em mais de R$ 30 bilhões o limite do teto de gastos. Caso seja aprovado dessa forma, o Orçamento pode configurar crime de responsabilidade – o mesmo motivo que provocou a queda de Dilma Rousseff.
As negociações para tentar cortar o valor bilhões em emendas parlamentares do Orçamento voltaram à estaca zero por causa da CPI, que aumentou o poder do Senado na articulação. A disputa também colocou o Congresso em choque com o ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi acusado pelos parlamentares de tentar se eximir da sua participação no desenho do texto.
Para embolar ainda mais, Bolsonaro já demonstrou que pretende iniciar uma nova ofensiva contra o STF, algo que o Congresso quer evitar. Bolsonaro reagiu agressivamente à decisão de Barroso que determinou a instalação da CPI, acusando o ministro de fazer “politicalha” e fazendo ataques pessoais à sua biografia. O presidente ainda tentou reavivar velhas bandeiras da sua base de extrema direita, como o impeachment de ministros do Supremo.
Na mesma semana, ele criticou a decisão do Tribunal que autorizou estados e municípios a restringirem cultos e missas presenciais durante a fase mais aguda da pandemia. Bolsonaro vinha evitando fazer ataques diretos ao STF desde meados de 2020, quando seu antigo “faz-tudo” Fabricio Queiroz foi preso.
Mesmo com a CPI pairando, Bolsonaro também continua a demonstrar que não pretende adotar uma mudança profunda de rumo na gestão da pandemia. Um dia após Barroso ter concedido o mandado de segurança para a instalação da CPI, o Planalto veiculou em suas redes sociais uma campanha para incentivar o uso de máscara e o distanciamento social contra a disseminação do coronavírus. O timing das peças publicitárias não passou despercebido, já que nos últimos meses o presidente havia desestimulado publicamente o uso de máscaras.
No entanto, a mudança de tom mal durou 24 horas. No sábado, Bolsonaro foi a uma igreja sem usar máscara e voltou a criticar medidas de distanciamento social.
Mas nas últimas semanas há sinais de que a paciência do Congresso em relação ao tema está se esgotando. Nofinal de março, o presidente da Câmara, Arthur Lira, ameaçou se afastar do governo caso o Executivo não mudasse sua abordagem de combate à pandemia. “Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar”, disse Lira. “Tudo tem limite.”
Histórico
Algumas CPIs tiveram profundo impacto na política brasileira. Em 1992, a CPI que investigou o Esquema PC Farias causou profundo desgaste ao então governo de Fernando Collor. A comissão forneceu um palco para os acusadores do presidente, que enfrentava suspeitas de se beneficiar de um esquema de corrupção para financiar seus gastos de luxo.
Sob pressão, o círculo do presidente chegou a apresentar à CPI documentos forjados que tentavam dar um verniz de legalidade ao dinheiro. Mas a farsa foi logo revelada e a CPI concluiu que o presidente tinha ligações com o esquema. O relatório final da comissão acabou embasado o bem-sucedido pedido de impeachment de Collor. No ano seguinte, a CPI do Orçamento levou à cassação de seis parlamentares. Em 2005, a instalação da CPI dos Correios elevou a pressão sobre o deputado Roberto Jefferson, que acabou revelando em uma entrevista o funcionamento do esquema do Mensalão.
Mas o poder das CPIs entrou em declínio a partir do final dos anos 2000. Em 2013, a cientista política Argelina Figueiredo apontou num estudo que as CPIs no Congresso haviam perdido sua eficácia e se tornado instrumentos de governo, com membros da base aliada ocupando sucessivamente cargos importantes nas comissões. A própria instalação e prorrogação de CPIs de pouco impacto político também passou a ser uma forma de impedir a criação de colegiados que poderiam se debruçar sobre temas mais espinhosos – na Câmara, apenas cinco CPIs podem funcionar simultaneamente. Mesmo assim, algumas CPIs ainda tiveram impacto localizado. O ex-deputado Eduardo Cunha foi cassado por mentir à CPI do Petrolão sobre suas contas na Suíça.
O declínio das CPIs também coincidiu com o início de um papel mais ativo da Polícia Federal, do Judiciário e do Ministério Público em investigações envolvendo políticos, especialmente após a eclosão da Operação Lava Jato em 2014. Já a instalação da CPI da pandemia ocorre em um momento totalmente oposto, com a PF e a Procuradoria-Geral da República alinhadas com o governo e demonstrando pouca inclinação para investigar irregularidades cometidas pelo governo na gestão da crise sanitária.
DW – Brasil
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!