Apontamentos sobre o crime de violência psicológica

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Com redação ambígua e pouco clara, artigo 147B dá margem a diversas interpretações
No dia 28 de julho de 2021, entrou em vigor a Lei 14.188/21. Ela introduziu o art. 147B ao nosso Código Penal. O artigo tipifica a violência psicológica praticada contra a mulher.  A conduta proibida é assim descrita:
“Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.”
A pena prevista é a seguinte: “reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave”.
As finalidades da Lei 14.188/21 são louváveis. Trata-se de uma violência grave, que pode causar danos significativos. É exatamente por isso que consideramos que o Congresso Nacional deveria ter dado um tratamento mais sério e técnico ao tipo de violência psicológica.
O tipo penal traz duas condutas alternativas: a) Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento; b) Causar dano emocional à mulher que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação;
Vamos analisar uma de cada vez. A primeira é absolutamente vaga e imprecisa. A descrição parece-nos fazer uso inadequado da língua portuguesa o que dificulta a compreensão dos limites da conduta proibida. O que devemos entender por dano emocional? Como é possível aferi-lo? Notem que não basta a constatação do dano emocional, é necessário que prejudique perturbe o pleno desenvolvimento da vítima. Quem perturba o pleno desenvolvimento já não o prejudica? Parece-nos que perturbar está contido no sentido de prejudicar embora não o esgote. Não seria melhor que o tipo assim previsse: “causar dano emocional à mulher que a prejudique ou perturbe seu pleno desenvolvimento”? O vocábulo pleno é desnecessário à construção da conduta proibida. Se a conduta fosse descrita da forma a seguir, a incidência do tipo seria a mesma: causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu desenvolvimento.
O tipo penal deve ser claro e preciso. Isso significa, dentre outras coisas, não fazer uso de palavras desnecessárias. Graciliano Ramos comparou o escritor às lavadeiras de Alagoas. Deve-se retirar do texto todas as palavras desnecessárias à construção do sentido, assim como as lavadeiras retiram a água das roupas que lavam, batendo-as nas pedras do rio. O conselho que um dos maiores estilistas da língua portuguesa deu aos escritores vale para o legislador. 
A segunda hipótese de conduta proibida é um delito formal que tem, em sua estrutura, um certo conteúdo material. Continua sendo imperiosa a verificação do dano emocional. Não é necessário que prejudique e (!!!) perturbe o pleno desenvolvimento da vítima. Basta que o sujeito ativo tenha a finalidade, ao causar o dano emocional, de degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões da vítimaAo que tudo indica, o que se chama de fim, na verdade, é meio para o resultado dano emocional. O sujeito ativo causa dano emocional ao degradar ou controlar ações, comportamentos, crenças e decisões, valendo-se de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir. Não o oposto.
Essa segunda hipótese de conduta proibida, por sua vez, prevê uma série de outras condutas alternativas. O dano emocional deve ter como objetivo degradar ou controlar. A degradação ou controle pode recair sobre ações, comportamentos, crenças e decisões. O vocábulo ação não compreende a omissão. Isso porque, quando o Código Penal fez menção à omissão, o fez expressamente (art. 13 do Código Penal). Comportamento pode compreender ação e omissão. Ou se exclui o vocábulo ação, permanecendo o comportamento. Ou se substitui o vocábulo comportamento por omissão.
Distorções
A ameaça não veio acompanhado do adjetivo grave. Dito isso, qual a diferença entre ameaça e chantagem? Aquele que humilha a vítima não a constrange? Como se demonstra o dano emocional causado com o fim de, por manipulação, controlar decisões? Aqui parece claro que, o que se tem como fim, na verdade é meio.
A interpretação sistêmica do art. 147B do Código Penal também é um problema. O dano a saúde mental também é elemento da lesão corporal. O art. 129 do código penal descreve a seguinte conduta proibida: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem” (negritamos). A saúde, a que se refere o tipo, pode ser física ou mental. Sempre que houver dano emocional não haverá um prejuízo a sua saúde mental? E se a resposta for positiva, a conduta nunca se enquadrará no art. 147-B, mas sim no crime de lesão corporal, descrito no art. 129, §9º do código penal. Isso porque o crime de violência psicológica só se verifica se não constituir em crime mais grave.
O tipo penal em análise é aberto, confuso, mal redigido e será de difícil aplicação no caso concreto. O legislador parece ter querido punir o autor de agressões físicas, verbais e restrições da liberdade que, reiteradas, causem dano psicológico à vítima. Melhor seria se tivesse tratado a questão em dois tipos penais. Um contra a honra e outro contra a liberdade individual. Vejamos o esboço de uma sugestão.
O crime contra a honra poderia ser assim tipificado:
Injuriar, difamar ou caluniar, de forma habitual, mulher por razão da condição do sexo feminino: pena (tem que ser maior que a de calúnia acrescido do aumento da continuidade delitiva) § único: se a conduta for praticada com a finalidade de controlar ações, crenças ou decisões a pena é aplicada em dobro.
Trata-se de um tipo formal. Não é necessário a comprovação de dano emocional para que se diga que a conduta é típica. O tipo é fechado. As expressões que se poderia adjetivar de vagas não o são porque já definidas em outros artigos do Código Penal.
O crime contra a liberdade individual poderia ser assim previsto:
Constranger mulher, por razão de sua condição do sexo feminino, de forma habitual, mediante violência ou ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena (maior do que a reservada ao constrangimento acrescido do aumento reservado à continuidade delitiva). § único: se a conduta for praticada com a finalidade de controlar ações, crenças ou decisões a pena é aplicada em dobro.
Nota-se que, na sugestão aqui esboçada, foi suprimido o adjetivo grave que acompanha a ameaça no crime de constrangimento ilegal. Isso abre um pouco o tipo penal, fazendo com que incida sobre conhecidas violências psicológicas sem, no entanto, violar o princípio da determinação taxativa.
As sugestões, aqui postas, têm como objetivo demonstrar ao leitor a péssima qualidade da redação posta no art. 147B do Código Penal. Precisamos continuar a discutir a tipificação da violência psicológica. Todavia, isso deve ser feito com base em premissas técnicas que permitam a construção de um tipo penal que, com segurança jurídica, leve à punição de tão graves ações. O art. 147B do Código Penal é mais um triste exemplo de populismo penal.
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!
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