Proposta de Bolsonaro para repaginar o Bolsa Família cria mais problemas que resolve. Pulveriza recursos e complica a gestão do benefício – logo, gera custos desnecessários. Ampliar gastos sociais, como feito com o Auxílio Emergencial, é resposta
O Programa Bolsa Família (PBF) é considerado por especialistas, nacionais e internacionais, extremamente eficiente para enfrentar a pobreza e as desigualdades de renda. Contudo, diante do agravamento da fome e da miséria em decorrência das consequências da pandemia da covid-19 urge ampliá-lo, aumentando o número de beneficiários e elevando os valores dos benefícios, entre outras medidas.
Em vez de caminhar nessa direção, a de fortalecer o que está dando certo, o governo federal resolveu inventar um programa que é uma espécie de colcha de retalhos de transferências de renda, o Auxílio Brasil. Ao desmontar o PBF e pôr no lugar diversas pequenas transferências para distintos públicos, a iniciativa irá resultar na dispersão de recursos e não vai resolver a pobreza, tampouco os demais problemas que pretende solucionar.
O programa Bolsa Família, uma história de sucesso
O Programa Bolsa Família (PBF), instituído em 2004, é um mecanismo de transferência de renda condicionada destinado a famílias em situação de vulnerabilidade social.
A seleção das famílias beneficiárias é feita por meio do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Atualmente, são elegíveis famílias com renda familiar mensal per capita de até R$ 89,0 para a extrema pobreza, e de até R$ 178,0 para a pobreza.
As condicionalidades do PBF são nas áreas de saúde e educação com o monitoramento de ações tais como o calendário vacinal, o exame pré-natal para gestantes e a frequência escolar dos estudantes.
O programa conta com dois tipos de benefícios: o fixo, no valor de R$ 89,00, que é concedido a famílias em situação de extrema pobreza e, o benefício variável, de R$ 41,00, outorgado a famílias pobres que contam com crianças e adolescentes de 0 a 15 anos, gestantes ou nutrizes, sendo que cada família pode receber até 5 benefícios variáveis. Com isso, a média mensal de benefícios por família é de R$ 189,00 e são atendidas pouco mais de 13 milhões de famílias com um orçamento anual da ordem de R$ 30,0 bilhões, o que representa algo em torno de 0,5% do PIB do Brasil.
O PBF é reconhecido nacional e internacionalmente como um programa de sucesso no combate à pobreza e, também à desigualdade de renda.
Os limites do Bolsa Família diante da crise
O que os dados evidenciam é que diante do agravamento da crise econômica em decorrência da pandemia da covid-19, tanto a cobertura quanto os valores dos benefícios do PBF são insuficientes para impedir o empobrecimento da população brasileira.
Daí a implementação do Auxílio Emergencial que chegou a alcançar, em 2020, mais de 60 milhões de pessoas com benefícios até seis vezes superiores aos valores médios do Bolsa Família. Dados produzidos pelo Ibre/FGV revelam que o Auxílio Emergencial no valor de R$ 600,00 por mês contribuiu para que a extrema pobreza no Brasil chegasse ao seu nível mais baixo da história recente, 2,3%. Como a maior parte dos recursos do Auxílio se destinou a compras de alimentos, o impacto desse programa na diminuição da fome foi inegável.
Os benefícios do Auxílio Emergencial não param por aí. O programa foi fundamental para diminuir as desigualdades de renda: ainda segundo o Ibre/FGV, o índice de Gini caiu mais de 3% entre maio e agosto de 2020.
Outro impacto extremamente alvissareiro do Auxílio é ter resultado no combate às desigualdades de gênero e raça. Com efeito, estudo publicado pelo Made/USP mostra que no caso de domicílios chefiados por mulheres negras, o Auxílio Emergencial de R$ 600,00 mais do que compensou a perda da renda do trabalho em decorrência da covid-19. E mais: antes da pandemia a renda per capita dos domicílios chefiados por homens brancos era 2,5 vezes superior à renda per capita dos lares chefiados por mulheres negras. Com o Auxílio Emergencial, essa razão caiu para 2.
E experiência de mais de 15 anos de implementação do Bolsa Família associada à do Auxilio Emergencial nos ensina que para contribuir com o combate à pobreza e as desigualdades de gênero e raça que caracterizam o Brasil é preciso preservar o PBF efetuando ajustes, essencialmente aumentado a cobertura e o valor dos benefícios.
O Auxílio Brasil na contramão do bom senso
Mas, o que faz o governo do presidente Jair Bolsonaro? Ignora as evidências e lança um programa que se anuncia ineficiente e pouco exequível.
Sabe-se pouco sobre o Auxílio Brasil: a proposta enviada pelo Executivo ao Congresso Nacional não deixa claro quantas famílias serão atendidas, quais valores serão pagos ou como o programa será financiado e nem como as condicionalidades serão verificadas, entre outras questões. Contudo, as informações disponíveis possibilitam afirmar que trata-se de programa que dispersa recursos e não resolve os problemas que pretende sanar.
O Programa Auxílio Brasil (PAB) é um programa de transferência de renda condicionada composto por: (a) três modalidades básicas de benefícios – para a primeira infância, para gestantes, crianças e adolescentes e para superação da extrema pobreza – e (b) seis auxílios complementares, que podem se somar ao benefício básico, auxílio esporte, bolsa de iniciação científica júnior, auxilio criança cidadã, auxílio inclusão produtiva rural, auxílio inclusão produtiva urbana e benefício compensatório de transição.
Os problemas do PAB são inúmeros, mas destacamos dois para evidenciar a baixa efetividade do seu desenho.
O primeiro tem a ver com a pulverização de ações, o desperdício de recursos e o encarecimento da gestão do programa. O Bolsa Família está ancorado em duas políticas públicas universais que são a saúde e a educação. A comprovação das condicionalidades é feita por redes de serviços públicos descentralizas e com alta capilaridade, presentes nos municípios onde habitam os beneficiários do programa, que são o SUS e a rede de educação pública.
Já o Auxilio Brasil distribuirá benefícios que não contam com institucionalidades sólidas como contrapartida. Assim, por exemplo, quem irá verificar se as crianças estão em creches privadas adequadas? Quem irá verificar se os estudantes se destacam em atividades de iniciação científica ou em competições esportivas? Quem irá verificar o que a pessoa que habita as cidades está promovendo como empreendimento? Quem irá verificar se o agricultor familiar está doando sua produção?
O custo gerencial da inclusão desses cinco novos benefícios irá encarecer o programa, pois a implantação de sistemas de monitoramento das condicionalidades requer a alocação de recursos expressivos tanto nas áreas federais responsáveis pelas políticas – de educação infantil, esporte, geração de emprego e renda e promoção da agricultura familiar – quanto nos municípios, especialmente na gestão do CadÚnico e no monitoramento das famílias.
O segundo problema diz respeito a uma multiplicidade de auxílios que isoladamente não serão suficientes para resolver os problemas que pretendem enfrentar resultantes do desmonte das políticas de educação infantil, de emprego e renda, de promoção da agricultura familiar e de esportes, entre outras.
Assim, por um lado, não se resolve o problema da pobreza porque há desvio de foco para outras carências sociais e econômicas. E, por outro, tampouco se solucionam essas carências com transferências de renda que, dada a limitação de recursos imposta pelo Teto de Gastos que o governo e seus aliados defende, não deverão ser muito grandes.
No final das contas, essa multiplicidade de objetivos, com pequenos aportes setoriais, acaba por pulverizar esforços e recursos e não resolve definitivamente nenhum problema. O Auxilio Brasil é contraproducente. Um capricho de governantes incompetentes preocupados com as eleições.
O necessário fortalecimento do que dá certo
O que a experiência e a literatura, nacional e internacional, recomendam é aprimorar o que vem dando certo. Nesse sentido, é preciso aperfeiçoar o Bolsa Família e para tal faz-se necessário ampliar a cobertura do programa para atingir um número maior de famílias empobrecidas, aumentar os valores dos benefícios que não são reajustados desde 2018, conceder rendas proporcionalmente maiores para as famílias chefiadas por mulheres, melhorar o CadÚnico e fortalecer o Sistema Único de Assistência Social (Suas).
Por Nathalie Beghin, do Inesc
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