Em livro devastador, executivo francês narra pressões políticas, policiais e judiciais que EUA exercem contra seus concorrentes. Relato evoca fatos ocorridos no Brasil e sugere: será preciso ação ousada (inclusive reestatizações) para reconstruir país
Este texto é uma resenha de:
Arapuca Estadunidense, de Frédéric Pierucci e Matthieu Aron
Traduzido e publicado no Brasil pela Editorial Kotter
É raro um depoimento, por parte de um executivo de uma grande corporação multinacional, no caso a Alstom, gigante francês do nuclear, de energia e transportes, detalhar como funcionam o que chamamos curiosamente de “mercados”, e que na realidade envolve guerra entre os grandes grupos, com uso aparelhado do Judiciário, com envolvimento profundo dos governos, e um conjunto de comportamentos que raramente afloram na mídia ou nas pesquisas. Somente uma pessoa de dentro, e em nível elevado de responsabilidade, poderia escrever como funciona o capitalismo realmente existente
Estamos falando da Alstom, que segundo o autor é um grupo “que tem a maior experiência nuclear do mundo. É a número um no fornecimento de centrais elétricas completas, bem como na sua manutenção, e equipa cerca de 25% do parque mundial. A empresa também é líder mundial na produção de energia hidrelétrica.”(164) O livro relata, capítulo por capítulo, como a General Electric americana, grupo ainda maior, conseguiu comprar a Alstom, usando para isso perseguições judiciais, prisões, e naturalmente este cavaleiro branco da política que é a luta contra a corrupção, em nome da qual podem ser feitas as maiores barbaridades.
Frédéric Pierucci, o próprio executivo da Alstom, escreve em primeira pessoa, com a ajuda do pesquisador e jornalista Matthieu Aron. Li o livro em um dia e meio, porque é muito bem escrito, um relato do dia a dia da guerra, mas pesquisado com muito detalhe, uma janela que nos permite entender como funciona efetivamente o sistema. Há tempos apareceu um livro semelhante, Confissões de um Assassino Econômico, obra que apesar do título que sugere um policial, constitui também uma explicitação detalhada sobre os grandes contratos internacionais. Foi escrito por John Perkins, economista-chefe de uma grande empresa de construção americana.[1] Teve grande sucesso nos Estados Unidos, justamente por levantar o véu sobre como funcionam as grandes negociações internacionais.
Controlar a energia, a tecnologia do nuclear, grandes infraestruturas que representam imensos recursos e tecnologias de ponta, é vital para a soberania de um país. Como foi que a França, quinta potência econômica mundial, permitiu que este “florão da economia francesa” fosse arrebatado pela General Electric? Imaginamos o mercado como nos ensinam nos cursos de economia, do tipo que “vence quem presta o melhor serviço”, e não quem tem a máquina do poder político, militar e judiciário para abocanhar os concorrentes. Não achei no livro nenhuma simplificação ideológica, e sim um relato, dia a dia, de como funciona a guerra econômica. Com isso, abre-se uma janela sobre o funcionamento da política em geral.
A política se torna compreensível: “Qualquer que seja o ocupante da cadeira de Presidente dos EUA, seja democrata, seja republicano, carismático ou detestável, o governo em Washington sempre atende aos interesses do mesmo grupo de industriais: Boeing, Lockheed Martin, Raytheon, Exxon Mobil, Halliburton, Northrop Grumman, General Dynamics, GE, Bechtel, United Technologies, dentre outros…Os Estados Unidos, que se arvoram em dar lições de moral a todo o planeta, são os primeiros a fechar negócios fraudulentos nos diversos países sob sua zona de influência, a começar pela Arábia Saudita e o Iraque.” (329)
Os Estados Unidos são os primeiros e únicos a aprovar uma Lei Extraterritorial – de 1970, expandida de 1988 – que lhes permite prender uma pessoa de qualquer nacionalidade, por negócios nos mais diversos países, porque a justiça americana – empurrada por uma corporação americana – decide que foram violados interesses americanos. (172, 249, 326) Ou podem processar qualquer empresa que fizer negócios com um país que os Estados Unidos decidem unilateralmente como sendo submetido a um bloqueio. Ou seja, os grupos econômicos norte-americanos dispõem de uma arma de perseguição em escala mundial, com o Judiciário formalmente envolvido (o DOJ). E com o envolvimento, graças à colaboração das grandes plataformas de mídia social, da própria NSA, ou seja, do sistema de inteligência do governo.
O Brasil é mencionado em várias ocasiões, e não há como não fazer o paralelo entre a guerra pelo controle das tecnologias mais avançadas e dos maiores contratos internacionais, com o que foi a Lavajato no Brasil. Também desenvolvida em nome da luta contra a corrupção, com o apoio dos Estados Unidos, ela terminou por quebrar grandes concorrentes da construção como a Odebrecht, e por privatizar grande parte da base energética do país, em particular pedaços da Petrobrás e da Eletrobrás, sem falar de outro florão tecnológico do Brasil que é a Embraer. É guerra, e utilizar o Judiciário americano e brasileiro de forma escandalosa faz parte do sistema. O primeiro passo, como no caso da Alstom, é a privatização, que permite a apropriação externa por mecanismos financeiros. As ameaças e intervenções políticas e policiais fazem o resto. Você magina a China entregando o controle da sua base energética a corporações internacionais? Pela clareza e profundidade da exposição, uma leitura indispensável.
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por Ladislau Dowbor | Outras palavras
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