Assalto à democracia em câmera lenta

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Presidente segue o modelo ultradireitista de outros países e ameaça legado de 36 anos de regime democrático brasileiro

Em 20 de janeiro de 2021, uma assessora do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos durante o Governo de Donald Trump, Valerie Huber, escreveu um último e-mail aos seus aliados de outros países, no qual dedicou especial atenção ao Brasil. Huber ― uma forte defensora da abstinência, que trabalhava em larga escala contra programas de educação sexual e reprodutiva ― se despediu de seus colegas com o anúncio: “O Brasil, gentilmente, se ofereceu para servir agora como coordenador dessa coalizão histórica”, escreveu ela em e-mail. A “coalizão histórica” era basicamente uma aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde e de outros organismos multilaterais. Fracassada a tentativa de Trump de permanecer no poder, a ofensiva da direita global contra os direitos de uma nova geração foi deixada nas mãos do Governo Jair Bolsonaro.

Bolsonaro não ganhou como herança de Trump somente uma responsabilidade, mas também um manual não escrito de táticas de como erodir a democracia, que alguns líderes começaram a replicar sem sutilezas pelo mundo. Nenhum, talvez, com o atrevimento e determinação que fizeram do presidente brasileiro um porta-estandarte mundial da direita. Embora o ímpeto do golpe o acompanhe desde que chegou ao Palácio do Planalto, sua estratégia para enfraquecer as instituições e permanecer no poder torna-se cada vez mais evidente à medida que sua popularidade diminui e as eleições de 2022 parecem mais claras no horizonte.

“Ou fazemos eleições limpas, ou não teremos eleições”, disse Bolsonaro na última quinta-feira, 8 de julho, a seguidores que o esperam todos os dias na porta do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, em Brasília. Atacar, sem apresentar evidências, a legitimidade das urnas eletrônicas ― o mesmo sistema eleitoral que o elegeu presidente e a outros cargos eletivos ao longo de sua carreira política ― faz parte de sua campanha mais recente para não entregar o poder no ano que vem caso seja derrotado. No dia seguinte, Bolsonaro foi além. “Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar no voto auditável e confiável. Dessa forma [como é hoje], corremos o risco de não termos eleições no ano que vem”, repetiu ele uma vez mais na sexta, 9.

O impulso golpista, entretanto, desta vez gerou uma reação em cadeia nos Três Poderes, que fizeram defesa pública do processo eleitoral brasileiro. “Não podemos admitir fala, ato, menção que seja atentatória à democracia”, disse o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, descartando a possibilidade de haver qualquer interferência nas eleições. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, o convidou dias depois para uma reunião, para “fixar balizas sólidas sobre a democracia brasileira” em nome da estabilidade política. O empenho por refrear os arroubos autoritários parecem insuficientes diante da velocidade com que o presidente impõe seu projeto de poder.

Bolsonaro não é o primeiro populista de extrema direita no mundo. Mas, sem dúvida, “é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira já enfrentou em meio século”, como advertia em 2019 Yascha Mounk, professor da Universidade John Hopkins (EUA), no seu livro O povo contra a democracia, onde retratou como os líderes eleitos em países como Turquia, Hungria e Filipinas destroem o regime democrático por dentro. Em pouco mais de dois anos e meio como mandatário, já é possível decifrar o modus operandi do político forjado pelo Exército brasileiro que assumiu a Presidência em 1 de janeiro de 2019. Enquanto parte de sua atividade se concentra em perseguir seus críticos, inventar notícias falsas ou meias verdades que precisam ser desmentidas pelos jornais, e fomentar crises políticas com os outros Poderes, a máquina do Estado é utilizada para fortalecer os pilares que poderiam sustentá-lo no poder para além do voto. Se sua estratégia discursiva parece uma cópia da empregada por Donald Trump, sua metodologia mais poderosa é, paradoxalmente, a mesma que a adotada pelo chavismo: garantir a lealdade dos militares.

Democracia verde oliva

Os militares são hoje a espinha dorsal do Governo Bolsonaro. Há pelo menos 6.157 fardados espalhados entre diretorias, conselhos administrativos e gerências de empresas estatais, como Petrobras, Itaipu, Correios e Eletrobras. De seus 22 ministérios, nove são atualmente ocupados por militares da ativa ou da reserva. Eram dez até a queda do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, em março. “As Forças Armadas servem tanto como base política-eleitoral para o Governo Bolsonaro, mas também como instrumento de intimidação da oposição. Ele tenta passar a ideia de que pode usar a força contra seus inimigos políticos, por mais que não seja verdade”, diz o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Fundação Getulio Vargas. O mandatário já incorporou ao seu discurso até a expressão “Meu Exército” para demonstrar sua influência.

 

Com 6.157 fardados no poder, os militares são a espinha dorsal do Governo Bolsonaro

 

Com 6.157 fardados no poder, os militares são a espinha dorsal do Governo BolsonaroO Governo federal já gastou o equivalente a 86,8 bilhões de reais em privilégios à categoria, uma alta de 17% nos anos Bolsonaro. Neste cálculo, estão os benefícios concedidos pela reforma da Previdência da caserna ―podem se aposentar com salário integral, por exemplo—; um reajuste salarial de 13% —enquanto o dos demais servidores públicos não superou os 8%— e a concessão de comissionamentos extraordinários aos militares que participam de conselhos administrativos de estatais. A conta foi feita, a pedido do EL PAÍS, pelo cientista político Willian Nozaki, que em maio publicou o estudo A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder?. Na equação não está inclusa a mudança na regra que permite que militares aposentados, como Bolsonaro ou seus ministros Walter Braga Netto (Defesa), Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Augusto Heleno (Gabinete da Segurança Institucional) possam receber acima do teto constitucional de 39.293 reais.

Bolsonaro estende benefícios aos policiais militares das 27 unidades da federação. Os PMs são uma base natural do presidente, que poderiam jogar a favor dele, a despeito do comando dos governadores, a quem respondem. O presidente aprovou recentemente um programa de financiamento habitacional exclusivo para as forças de segurança. Também incluiu na reforma Administrativa que tramita na Câmara dos Deputados um artigo que entende que os policiais seriam carreira típica de Estado, portanto, não correriam o risco de demissão, como as demais funções.

A pergunta é se todo esse prestígio alcançado pelos militares e PMs no Governo vai se converter em apoio em caso de uma tentativa de golpe do presidente no ano que vem. “Se isso acontecer, as Forças Armadas terão que tomar uma decisão. Se agirão dentro da legalidade, rompendo de vez publicamente com Bolsonaro ou não”, alerta Amorim Neto. As PMs, por sua vez, seguem a corrente que estiver mais forte. “As polícias no Brasil têm duplo comando. Elas obedecem aos 27 governadores e ao comandante do Exército. Se você perguntar para um oficial da PM quem ele irá seguir em caso de ameaça, a resposta que ele lhe dará será: quem estiver mais forte”, diz o professor Zaverucha.

O ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores sob Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Celso Amorim, acredita que nenhum comandante das Forças Armadas está de acordo com uma intervenção. “Isso é uma discussão mais entre alguns generais da reserva. Por mais que boa parte da tropa concorde com as ideias do presidente, ela vai contra o que pensa o Alto Comando do Exército. Ela não vai ultrapassar essa linha”, diz. Para Amorim, o presidente não é bem visto na caserna, quando forçosamente leva a política para dentro dos quartéis, como no episódio que resultou na demissão coletiva do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, em maio, por discordarem da linha de atuação do presidente. O ex-ministro lembra também que todo golpe requer apoio internacional, algo que o Brasil deixou de ter após o início do Governo Joe Biden.

Os militares, contudo, também vivem o desgaste do poder ao lado de Bolsonaro. Eles emprestaram sua imagem a um Governo que perdeu prestígio com os resultados desastrosos da pandemia, alto desemprego e agora acossado com acusações de corrupção na compra de vacinas contra a covid-19 que alcançam integrantes do Exército. As acusações de propina, investigadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, começam agora a levantar suspeitas sobre vários militares que ocupam ou ocuparam cargos no Ministério da Saúde.

Jair Bolsonaro não vive exatamente seu momento mais popular nem entre as instituições, nem junto à opinião pública. Rejeitado por metade da população pela gestão da crise sanitária, o mandatário tem encarado protestos puxados por partidos de esquerda contra sua administração desde maio. As pesquisas eleitorais já mostravam uma erosão do apoio popular pouco antes do noticiário brasileiro ser tomado pelas denúncias de corrupção no Ministério da Saúde na última semana de junho. Um levantamento feito pelo Instituto Ipec entre os dias 17 e 21 daquele mês revelava queda preocupante da sua popularidade diante do ex-presidente Lula: 49% a favor do petista, contra 23% do presidente, o que levaria Lula a ganhar em primeiro turno. Numa pesquisa mais recente, feita pelo instituto Datafolha entre os dias 7 e 8 deste mês, Lula aparece com 58% de apoio para sua candidatura presidencial contra 31% de Bolsonaro —a rejeição ao presidente chega a 59%, contra 37% do petista.

Faltando um ano e três meses para as eleições presidenciais, Bolsonaro ainda tem tempo, eleitores e alianças fiéis, além da máquina pública a seu favor para navegar nestas águas revoltas até chegar a 2022 competitivo para se reeleger. Ao farejar o risco de perder as eleições, o presidente já plantou as sementes do caos ―assim como Trump fez no ano passado― inventando um risco de fraude. A verborragia calculada para atormentar adversários e incomodar as instituições ajuda a desviar a atenção. É o método adotado desde que assumiu a presidência. (Felipe Betim)

VOZ DO PARÁ: Essencial do dia!

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