Organizador da campanha ‘Derrotar Bolsonaro é um Ato de Fé’, o pastor progressista Henrique Vieira acredita que a crise social e econômica sob Bolsonaro terá impacto no voto evangélico
A atuação de evangélicos progressistas passou a ser um ativo importante para a centro-esquerda na disputa presidencial de 2022, com boa parte do segmento pentecostal alinhado ao presidente Jair Bolsonaro.
Midiático, com mais de meio milhão de seguidores no Instagram, o pastor Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho, – também ator, poeta, militante da esquerda e provável candidato a deputado federal pelo Psol no Rio de Janeiro – é um dos organizadores da campanha “Derrotar Bolsonaro é um Ato de Fé”.
Em entrevista à DW Brasil, Vieira explica que essa frente não será composta apenas por evangélicos, mas por cristãos, e tem por objetivo defender um projeto de sociedade com democracia, justiça social e direitos humanos. Segundo ele, não se trata de uma frente pró-Lula, ainda que pessoalmente o pastor assuma abertamente seu voto e engajamento na campanha do petista.
A esquerda brasileira, segundo o pastor, avançou na compreensão sobre a heterogeneidade do público – e do eleitor – evangélico no Brasil (cerca de 30% da população do país), mas ainda comete erros, segundo ele.
“Não acho que o diálogo com o campo evangélico tenha que ser pragmático visando as urnas, apenas. Tem que ser um debate sobre o país. Ainda vejo esforço de pactuação com lideranças evangélicas conservadoras. Questiono quando a relação prioritária é com lideranças pragmáticas, fisiológicas, que têm projeto de poder.”
Como o campo de fiéis evangélicos é majoritariamente popular e pobre, o pastor acredita que a crise econômica e social do Brasil terá impacto no voto desse eleitorado, maior que a pauta moral. Além disso, ele aposta que a indiferença do presidente com o sofrimento das pessoas, na pandemia, e os laços da família Bolsonaro com as milícias, que aterrorizam as favelas, também vão reduzir o apoio de evangélicos ao projeto da extrema direita.
DW Brasil: Você está à frente de uma campanha para criar a frente para derrotar Bolsonaro. Em que consiste?
Henrique Vieira: Estamos lançando a campanha “Derrotar Bolsonaro é um Ato de Amor”. Quem está conduzindo é o Coletivo Esperançar, do qual faço parte, de cristãos, que têm compromisso com uma agenda de justiça social, direitos humanos e respeito à diversidade. Sou o porta-voz.
Até agora pelo menos 10 mil pessoas responderam dizendo que a partir da fé querem se organizar para fazer o contraponto a Bolsonaro e ao bolsonarismo. Vamos lançar um site para que as pessoas possam se cadastrar e mapear igrejas e coletivos. Vamos criar comunidades virtuais, grupos de whatsApp.
Ou seja, vamos atuar onde o bolsonarismo atua. Só que eles atuam com dinheiro que não sabemos de onde vem, com mecanismos antiéticos e por vezes criminosos, espalhando fake news e ódio. Nós vamos agir dentro da lei, com ética, e só cadastrar pessoas que voluntariamente quiserem e vamos usar esses grupos como espaço de multiplicação de um material consistente, bíblico, teológico e político para demonstrar a incompatibilidade do bolsonarismo com o Evangelho. E vamos lançar um curso, com o nome da campanha. Vamos apostar também na dimensão presencial, fazendo comitês no Brasil inteiro.
Essa campanha pretende reunir não apenas evangélicos, mas também católicos e pessoas de outras religiões?
Sim. Meu objetivo, como pastor, é disputar a narrativa do cristianismo. Vamos acolher nos grupos pessoas não cristãs que querem fortalecer essa resistência ao bolsonarismo.
Essa campanha contra o bolsonarismo terá vinculação com a candidatura do ex-presidente Lula? Ou é apenas anti-Bolsonaro e cada um que faça suas escolhas políticas?
Exatamente isso. Não é só anti-bolsonarismo. Vamos trabalhar com um conjunto de valores: direitos humanos, justiça social, reforma agrária, justiça socioambiental, pauta antirracista. Isso vai se associar diretamente a uma campanha presidencial? Não. Não vamos declarar, como campanha, apoio ao Lula. Eu vou fazer campanha para o Lula. Mas essa frente é para organizar cristãos e cristãs para derrotar Bolsonaro.
Em manifestações recentes você tem pontuado a dificuldade da esquerda para dialogar com evangélicos. Houve evolução de diálogo de 2018 pra cá?
Vejo avanços sim. Se compreende a importância do campo evangélico no cenário político brasileiro. Percebo na esquerda que não se reproduz mais uma visão genérica e preconceituosa. Parte significativa da esquerda já percebeu que o campo evangélico é plural, não é exclusivamente conservador e que é majoritariamente popular, pobre, formado por trabalhadores.
Mas o debate ainda não está bem encaixado, bem qualificado. Os desafios são enormes. Por exemplo: o debate ainda está muito vinculado ao processo eleitoral, e isso é um limite. Não acho que o diálogo com o campo evangélico tenha que ser pragmático visando as urnas, apenas. Tem que ser um debate sobre o país, compreendendo uma parcela do povo trabalhador e pobre do Brasil.
Outro ponto: ainda vejo esforço de pactuação com lideranças evangélicas conservadoras. O conservadorismo no Brasil é amplo, está enraizado, e não podemos deixar de dialogar com as pessoas porque são conservadoras. Questiono quando a relação prioritária é com lideranças pragmáticas, fisiológicas, que têm projeto de poder. Essas lideranças podem apoiar [a esquerda] hoje, numa lógica de custo-benefício, mas ali na frente podem ajudar a dar o golpe.
O debate prioritário não tem que ser com essas lideranças, algumas inescrupulosas; tem que ser com a base, com o povo que se organiza nas ruas, nas esquinas, nas praças e dentro das igrejas. Não é chamar e tirar foto com lideranças poderosas: é caminhar ao lado desse povo, que lota as igrejas evangélicas nas periferias, no cotidiano.
O PT nomeou como interlocutor evangélico o pastor Paulo Marcelo, ligado no passado a Silas Malafaia. Malafaia e Edir Macedo já estiveram ao lado de Lula, mas hoje são grandes aliados de Bolsonaro.
Essa é a crítica que eu faço. O esforço que o PT está fazendo não é equivocado, pelo contrário. Tem um esforço positivo. A criação dos núcleos evangélicos [uma proposta do PT] é pedagógica.
O problema está numa articulação prioritária com setores que não comungam com um projeto de sociedade que é o que nós defendemos. São lideranças contrárias, antagônicas ao que defendemos. Aí é apenas uma relação pragmática para dar estabilidade eleitoral, mas que não tem fôlego, não tem durabilidade.
Você é defensor do Estado laico. O neopentecostalismo no Brasil avança diante da omissão do Estado, sobretudo nas camadas sociais mais vulneráveis. Pessoas encontram amparo religioso onde não há resposta governamental. Como garantir o Estado laico neste contexto, em que lideranças evangélicas têm um claro projeto de poder?
O Estado laico não é contra religião. Ao contrário: preserva e resguarda o direito à crença religiosa, manifestações religiosas e o direito à não crença. É uma perspectiva de democracia, de respeito à individualidade. Defender o Estado laico não significa tirar da fé o seu caráter público e político.
Quando a fé é capturada por uma lógica fundamentalista, ela se torna um projeto de poder e de imposição, não respeita a individualidade e a diversidade, se apropria do Estado, das leis e de políticas públicas. Esse projeto de poder impositivo, perigoso, violento, anti-laico e anti-democrático precisa ser derrotado. Esse projeto é o de determinadas lideranças evangélicas hoje.
O governo Bolsonaro parece ser o exemplo mais latente da permissividade do Estado com esse projeto religioso de poder.
O governo Bolsonaro é mais do que fundamentalista, é o fanatismo religioso como projeto de poder. Isso é violento, anti-laico, anti-democrático, e mata. A experiência religiosa tem essa característica: quando ela é atravessada pelo amor, pelo engajamento profundo com a humanidade, a gente olha para a história e vê exemplos lindos, individuais e comunitários.
As comunidades eclesiais de base no Brasil, a luta antirracista nos EUA atravessada pelo gospel e pela linguagem cristã são exemplos. Agora, o inverso também é verdade. Quando se produz violência em nome de Deus, o resultado é incontrolável. O governo Bolsonaro usa uma simbologia religiosa que legitima a barbárie. Por isso estamos organizando essa campanha. Sabemos do potencial de carnificina que se pode fazer em nome de Deus.
Você afirma que nem todo evangélico é conservador. O governo Bolsonaro se ancora na pauta dos costumes. Acha que se repetirá o quadro de 2018, com debates sobre aborto, “kit gay”, de maneira massiva, com fake news associadas à religião?
Nem todo evangélico é conservador, nem todo conservador é fascista. Há pessoas que têm o conservadorismo como o eixo estruturante da sua vida, da sua família, mas de projeto de sociedade também. Querem pautar o Estado e a sociedade. Começa aí a ganhar um contorno autoritário, violento, impositivo e fascista. Essa compreensão nos ajuda a conversar com as pessoas, sem descartá-las ao primeiro indício de conservadorismo.
Tem uma parcela de extrema-direita fascista na sociedade brasileira e com ela não há diálogo. Mas há uma parcela conservadora com quem precisamos aprender a dialogar para pensar num projeto de país.
Esses temas de costume vão surgir na eleição com mais força?
O bolsonarismo se utiliza e potencializa traços conservadores da nossa história. Tenho dúvidas quando as pessoas falam que isso é cortina de fumaça. Eu acho que é o projeto do bolsonarismo e da extrema direita. Não é apenas tático, é estratégico. Não é apenas propaganda para eles ganharem votos. Eles realmente acreditam e defendem um projeto de sociedade pautado nestes pilares colonizadores: patriarcado, elitismo, aversão ao pobre, racismo e cis-heteronormatividade.
O bolsonarismo potencializa dispositivos existentes na formação política, econômica e cultural do Brasil e reafirma esse projeto colonizador: o homem hétero, pai de família, chefe da casa, com a mulher em seu devido lugar, de submissão e silenciamento. Não há espaço para a diversidade religiosa, de pensamento e de sexualidade. O bolsonarismo, mais uma vez, vai ativar na eleição essa memória, esse registro colonizador, que no Brasil tem grande atravessamento religioso.
O cristianismo institucional hegemônico é parte fundamental deste projeto, desde sempre. Por isso vem tudo junto. O projeto deles é de supremacia masculina, hétero, branca. Querem esse futuro.
Como prevê a postura de evangélicos na disputa presidencial?
Espero é que parte significativa do campo evangélico possa orientar o seu voto não só pela dimensão moral. Tem outra coisa batendo à porta: a fome, o desemprego, a inflação, a precariedade cada vez maior das condições de vida, preço dos alimentos, da gasolina.
Minha expectativa é que essa dimensão material, econômica e social seja um fator para reduzir o peso da pauta moral na orientação do voto. O governo Bolsonaro piora a vida do povo, ajuda a precarizar ainda mais as condições de vida do povo. Minha aposta é que essa pauta social ganhe força no imaginário evangélico e reduza o peso do bolsonarismo.
Segunda aposta: uma parcela do campo evangélico começa a perceber que uma coisa é ser conservador, mas Bolsonaro foi indiferente ao sofrimento das pessoas na época da covid. Indiferença ao sofrimento humano não bate com os princípios da fé. E Bolsonaro tem relação com milícias, com grupos armados que tocam o terror nas favelas? Uma coisa é o conservadorismo, outra coisa é perceber que o presidente da República tem relação com grupos criminosos, que a família dele está envolvida com coisas estranhas e ele fica trocando as pessoas da Polícia Federal para blindar seus filhos.
Além da dimensão social, o caráter violento, arrogante, desrespeitoso e indiferente de Bolsonaro queimam ele numa base evangélica conservadora. Esse é um dado que tem segurado o crescimento dele no campo evangélico. São dados novos, que não estavam bem colocados em 2018.
Originalmente no DW – Brasil
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