Cinema: A arte brasileira sitiada num show de horrores

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Quem tem medo? é um documentário sobre os atuais tempos de censura (e perseguição) ao trabalho artístico. Diagnostica o momento em que o irrisório tornou-se verossímil – e como estupidez e intolerância são lenha na caldeira reacionária

Quem quiser, agora ou no futuro, ter a dimensão do obscurantismo moral, político e cultural em que o Brasil se afundou nos últimos anos deve assistir ao documentário Quem tem medo?, de Dellani Lima, Ricardo Alves Jr. e Henrique Zanoni. O filme, que estreiou nos cinemas na quinta-feira, 4 de agosto, registra e discute casos de censura, hostilidade e agressões a obras e espetáculos artísticos desde 2017, com ênfase nos anos Bolsonaro.

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As primeiras imagens são de um homem com o corpo nu revestido por uma película transparente, aparentemente plástica, que ele passa a comer, como se fosse um recém-nascido devorando a placenta que o envolve. Na sequência, esse homem, o artista performático Maikon K, é detido por policiais por atentado ao pudor por estar nu em praça pública. Estamos em 2017 em Brasília.

A escolha do acontecimento para a abertura do filme não terá sido casual. O que se verá dali em diante será uma série de embates entre o corpo humano e o poder político-religioso instituído, um em busca de liberdade e expressão, o outro tentando exercer a repressão e o controle.

Muito da contundência do documentário se deve à sagacidade com que articula registros dos espetáculos (performances, monólogos, peças teatrais e musicais) com os depoimentos de seus artistas e os discursos acalorados de políticos – sobretudo dos conservadores – no Congresso Nacional. Desse modo, os atritos deixam de parecer casos isolados do noticiário e ganham o sentido de processo histórico-cultural em curso.

Show de horrores

Das agressões verbais sofridas pela filósofa feminista Judith Butler ao desembarcar em São Paulo (“Assassina, pedófila, volta para o seu país”, gritavam celerados que nem sabiam quem era ela) à bomba atirada contra a sede do Porta dos Fundos, passando pela suspensão da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, sob pressões e ameaças do MBL, desfila pela tela um autêntico show de horrores, às vezes captado pelos próprios agressores, orgulhosos de compartilhar nas redes seus atos de estupidez e intolerância.

“Essas pessoas que agridem não querem ver a diferença. Só querem ver pessoas iguais a elas. Elas têm medo de si mesmas”, resume o coreógrafo e artista performático Wagner Schwartz, que se exilou do país depois de ser linchado virtualmente e ameaçado de morte por causa de seu espetáculo La Bête, em que seu corpo nu podia ser manipulado por espectadores, como uma marionete ou uma escultura.

A explicação de Schwartz, em voz pausada e serena, contrasta com a ferocidade hidrófoba com que discursam no Congresso representantes das bancadas da bala e da Bíblia. “Direitos humanos bom (sic) é rabo de tatu no lombo”, vocifera um desses parlamentares.

Um dos espetáculos mais interessantes abordados no filme é A mulher monstro, em que o artista José Neto Barbosa se traveste de madame patriota de extrema direita, proferindo de dentro de uma espécie de jaula as falas conservadoras mais absurdas que nos acostumamos a ouvir nos últimos tempos. O deslocamento irônico produz incômodo e irritação na parte da plateia que se identifica com o discurso e se sente ridicularizada. Em Jaboatão, na região metropolitana do Recife, atiraram pedras contra o artista.

Ainda mais significativo é o caso da peça Res Publica, do coletivo A Motosserra Perfumada, que se passa no Réveillon de 2022 para 2023 e retrata um “período tropical-fascista”. O autor e diretor Biagio Pecorelli diz que criou o texto em 2017, “quando Bolsonaro ainda era um político do baixo clero”. O famigerado Roberto Alvim, que depois seria afastado da Secretaria da Cultura por imitar Joseph Goebbels numa live oficial, era então chefe da Funarte e tentou censurar a peça. “De lá para cá, o que era risível foi ficando verossímil”, diz Pecorelli. “O Bolsonaro não deixa a peça acabar.”

Pasolini

Se houve um artista que equacionou com lucidez, coragem e radicalidade as relações entre o corpo e o poder, esse artista foi Pier Paolo Pasolini (1922-75). Em homenagem ao centenário do poeta, romancista, cineasta e ensaísta italiano, o Sesc, em parceria com o Instituto Italiano de Cultura, está apresentando até 17 de agosto uma grande mostra, com dezenove obras do diretor, entre longas e curtas-metragens.

Os filmes serão exibidos no CineSesc, em São Paulo, e depois ficarão disponíveis por um mês na plataforma gratuita do Sesc. Sobre alguns deles escrevi por ocasião do centenário de nascimento do cineasta, em março. A poesia de Pasolini, radical e sem concessões, nunca foi tão necessária. (Originalmente no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles)

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