A gestão neoliberal coloniza também a vida sexual, sob o véu da emancipação. Gozar e falar de sexo tornou-se imperativo. A ansiedade e o desempenho, a tônica do prazer. Quais caminhos para reencontrar as delícias, encontros e contradições do prazer livre?
Quando se trata de sexo, se trata de saber se você está à altura de sua baixaria. Explico-me.
Há muito tempo, acredita-se que os princípios morais podem impedir ou dificultar a livre circulação da sexualidade. Isso não deixa de ser verdade. Diante do desejo sexual, a educação moral pode gerar em seus pupilos os afetos de nojo e pudor e, principalmente, o sentimento de culpa. Em grande medida, essa educação pressupõe a submissão da sexualidade à reprodução, interditando as estradas libidinais que não estejam orientadas para esse fim. Ao se ver emancipada do jugo reprodutivo, a sexualidade não encontraria mais obstáculos para poder se realizar livre e espontaneamente.
A revisão dos padrões morais, como a crítica ao tabu da virgindade e à suposição de que à mulher está vetada a possibilidade de ter iniciativa sexual, veio acompanhada pelo desenvolvimento de recursos contraceptivos que tornaram possível alargar a distância entre sexualidade e reprodução. A pílula anticoncepcional, por exemplo, aprovada pela primeira vez nos Estados Unidos como contraceptivo na década de 1960, foi aclamada pela sua capacidade de permitir que as mulheres mantivessem relações com seus parceiros homens sem se preocupar com uma possível gravidez indesejada. Vale lembrar, no entanto, dos efeitos colaterais provocados no corpo da mulher por causa das altas doses de hormônio presentes nesse medicamento. Essa discussão, que envolve a crítica da indústria farmacêutica e do patriarcado, fica para outro momento.
Parecia que, finalmente, tudo correria bem para a sexualidade – mas não foi bem isso que aconteceu. Além da permanência de valores morais conservadores e misóginos, a emancipação sexual não foi comemorada por muito tempo. Como apontaram algumas investigações cruciais, como aquelas realizadas por Michel Foucault e Jacques Lacan, passamos a viver em uma época em que falar de sexo e gozar deixaram de ser um prazer e uma conquista para se tornar um dever e um imperativo. Um bom encontro sexual deixou de ser suficiente: também se tornou necessário falar insistentemente sobre sexo ou que se pensa em sexo.
Essa mudança de paradigma se consolidou com a associação entre sexo e desempenho. No neoliberalismo, o indivíduo deve desempenhar perfeitamente seu papel profissional e social, mas também sexual. A frequência semanal, a duração do ato e a resiliência para envergar o tronco nas posições mais diversas possíveis, apenas para citar alguns exemplos, são os critérios que avaliam o maior ou menor desempenho sexual de um amante – vejam que, com algumas pequenas modificações, esses mesmos critérios podem ser aplicados ao gestor de uma grande corporação. Passamos da repressão sexual e dos conflitos entre desejo e moral para o desempenho sexual e a ansiedade para se ajustar àquilo que é considerada uma boa vida sexual.
A noção de desempenho sexual, apesar de sua aparente força, é bastante frágil. Algumas perguntas básicas apontam para sua inconsistência. O que define a frequência semanal? Seria a quantidade de orgasmos? Orgasmos masculinos ou femininos? Se os parceiros são ambos homens ou mulheres, os orgasmos de qual parceiro devem contar? E valem orgasmos alcançados sem penetração? E se não houver orgasmo, não houve sexo? E o sexo começa com as preliminares, com a fantasia etc.? Essas perguntas podem mobilizar as primeiras críticas contra a noção de desempenho sexual, mas existe algo ainda mais perigoso nessa noção.
O desempenho sexual não é aplicado a duas ou mais pessoas que estejam transando, e sim a um indivíduo. Um indivíduo é capaz de desempenhar competentemente sua função sexual independentemente do parceiro ou da parceira com quem esteja se relacionando. Notem que o desejo e as fantasias do outro são sumariamente irrelevantes para que o desempenho sexual possa ser avaliado. Para tornar esse raciocínio menos abstrato, basta mencionarmos a ideia, que tem circulado com alguma frequência, de que esse ou aquele indivíduo, seja homem ou mulher, é capaz de fazer qualquer um gozar. Com essa ideia, chegamos ao cúmulo da individualização do sexo e de seu ajustamento à demanda neoliberal de desempenho.
Sexo é encontro. Até mesmo a masturbação, originalmente solitária, pode fazer parte desse encontro. Por esse motivo, não faz nenhum sentido a expressão “ser bom de cama” quando se desconsidera o parceiro ou a parceira com quem se relaciona. Por outro lado, sexo é desencontro. Não existe nenhuma possibilidade de se alcançar uma verdadeira complementaridade no sexo. Inventa-se, mais ou menos criativa e ludicamente, alguma possibilidade de sexo. Nesse encontro desencontrado, nem sempre se sabe onde isso vai levar.
E, assim, retornamos à primeira frase desse artigo. Trata-se de estar à altura de sua baixaria. Nesse movimento, pode-se abrir mão de uma suposta emancipação sexual ainda aprisionada politicamente de deveres e imperativos. Ao contrário de se adequar aos critérios de desempenho sexual tão caros a uma certa sexologia e a uma certa psicoterapêutica alinhadas com as expectativas de ajustamento social do neoliberalismo, talvez seja muito mais interessante verificar com seu parceiro ou sua parceira quais baixarias são possíveis. Não somente aquelas consideradas clássicas e que circulam com alguma facilidade em vídeos pornôs e conversas de boteco, mas também aquelas que somente nesse encontro desencontrado tão singular são capazes de acontecer.
Durante a pandemia, surgiram diversas notícias e pesquisas a respeito da vida sexual dos casais e dos solteiros. Em grande medida, de acordo com os critérios de desempenho sexual, a frequência semanal havia sido reduzida drasticamente. Provavelmente, nesse momento em que nos encontramos, muitos tenham conseguido retomar seu “desempenho sexual” pré-pandêmico. Para outros, no entanto, a pandemia tem sido um caminho sem volta. Esse fracasso diante do desempenho pode ser uma boa oportunidade para explorar novas possibilidade sexuais, de estar à altura de sua baixaria. (Originalmente em Outras Palavras)
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!