O fenômeno das mudanças climáticas como resultado de uma desigualdade de poder sobre os recursos do planeta
O filósofo pré-socrático Anaximandro de Mileto foi, no século VI A.C, o primeiro a estabelecer uma relação entre a ordem social e a ordem das coisas, entre a ordem política e a ordem do não-humano. A noção de cosmos havia surgido, antes dele, apenas aplicada à ordem do mundo humano, do Estado e da comunidade. Anaximandro projetou para fora do campo social a noção de cosmos. Esta noção passou, a partir de então, a designar também um ordenamento do próprio universo como um todo.
Para o filósofo, no universo deveria igualmente prevalecer o princípio da isonomia. Ou seja, haveria uma conexão jurídica pela qual, ao longo do tempo, as coisas – hoje diríamos, a biosfera – refletiriam, de forma problemática, as injustiças cometidas no mundo social. Qual a natureza destas injustiças? O filósofo estava se referindo à chamada pleonexia – ou seja, o desejo ávido de alguns por terem mais coisas do que o que lhes deveria caber. A experiência política – isonômica – da lei e do direito deveria ser o fundamento da existência do mundo social, mas também do mundo cósmico.
Essa é a interpretação do pensamento de Anaximandro apresentada pelo helenista Werner Jaeger, em sua grande síntese de 1933,[i] muito antes, portanto, que a questão do meio ambiente aparecesse como problema público. Impressionante é esta antecipação filosófica secular da articulação entre a ordem cósmica e a noção de justiça – a sugestão de que a desordem cósmica, ou seja, a injustiça na ordem cósmica e o subsequente perecimento das coisas decorreriam da concentração das coisas não-humanas em poucas mãos humanas.
Os sinais de desordem no mundo cósmico – tais como os hoje registrados pelos seguidos relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – resultariam da avidez com que determinados atores econômicos se apropriariam de uma parte maior do planeta do que aquela que, por justiça, lhes deveria caber. Esta filosofia pode ajudar a entender o fenômeno das mudanças climáticas como resultado de uma desigualdade de poder sobre os recursos do planeta. Mas ela contribui igualmente para se entender a política como espaço do combate às desigualdades sociais e ambientais; ela sugere, por outro lado, que as políticas de enfrentamento da crise climática devem passar pelo combate às desigualdades sociais.
Os membros da coalizão negacionista que se instalou no poder no Brasil não leram Anaximandro. Mas eles mostraram que sabem que, para manter seu poder sobre partes do planeta maiores do que, por justiça, lhes caberia, devem desqualificar a esfera política, desmontar as instituições de controle ambiental e abrir espaço para o exercício direto da força sobre os grupos sociais que mais sofrem os danos ambientais de seus negócios – comunidades indígenas, quilombolas e moradores das periferias nas cidades.
Para muitos analistas de políticas públicas, o principal papel de instituições estatais de meio ambiente é o de produzir novos critérios para a ação e novos modelos de desenvolvimento. Mais do que adotar novas normas técnicas e procedimentos de intervenção, lhes caberia propor novos quadros de referência que mobilizem os atores para representações de futuro distintas, por exemplo, daquela do capitalismo extrativo generalizado que resultou das reformas neoliberais.
Governos negacionistas, ao mesmo tempo em que se empenham em interromper procedimentos estabelecidos de intervenção e aplicação das normas instituídas, buscam desconstruir os quadros de referência que serviram à “ambientalização” democratizante das ações governamentais, desconsiderando as implicações da desregulação como fator de agravamento das desigualdades ambientais e de desrespeito à diversidade cultural. No caso brasileiro, por exemplo, isso implicou em fazer convergir as políticas anti-indigenistas e anti-ambientais para facilitar o avanço territorial acelerado do complexo agrominerário.
Parte da literatura especializada no estudo dos processos de “ambientalização” dos Estados nacionais opta por classificá-los segundo o modo como os interesses da sociedade são acolhidos em seu interior. Estados ditos excludentes selecionariam poucos interesses a acolher e negariam acesso a outros, enquanto Estados ditos includentes se abririam a interesses mais amplos. Estas experiências de “ambientalização” são classificadas também segundo tipos passivos ou ativos no que diz respeito às posturas do Estado frente aos interesses da sociedade não empresarial: Estados ativos tentariam afetar o conteúdo e o poder dos grandes grupos de interesses, abrindo espaço para a sociedade não-empresarial, enquanto Estados passivos não tenderiam nem a promover, nem a impedir a ação da sociedade civil não empresarial sobre o Estado.
Esta literatura não pôde dedicar-se com atenção suficiente aos processos mais recentes pelos quais máquinas públicas foram manejadas de modo a promover uma regressão nas regulações ambientais, uma neutralização das agências de proteção do meio ambiente e, mais ainda, uma radicalização do que seria um processo ao mesmo tempo ativo e excludente com relação às perspectivas da sociedade civil não empresarial, em sua diversidade de percepções sobre a questão ambiental.
A compreensão do que se entende por problemas ambientais é produto das representações a partir das quais se entende os processos de mudança socioecológica. Estes processos podem ser vistos como um desafio institucional gerenciável, ou, alternativamente, como requerendo mudanças estruturais. Às estas duas estratégias de entendimento, caberia, porém, acrescentar uma terceira, aquela que desqualifica os sujeitos que definem o meio ambiente como um problema público.
Se uma parte da elaboração da política é constituída pela definição do tipo de problema que as instituições devem enfrentar e para os quais soluções serão buscadas, a própria ação política pode ser, paradoxalmente, construída como um problema. Se as políticas não são apenas construídas para resolver problemas, mas os problemas também são construídos para criar políticas, podemos dizer que, para o negacionismo ambiental, as políticas e regulações pré-existentes são em si o problema.
A liberdade que as grandes corporações têm de produzir desigualdade é causa importante da manutenção do modelo predatório de desenvolvimento. Isto porque enquanto for possível destinar os riscos e danos aos mais pobres e não-brancos, nada tenderá a mudar no modelo de desenvolvimento e continuará avançando a fronteira do agronegócio e da mineração, desmatando e ameaçando pequenos produtores rurais, povos indígenas e comunidades tradicionais. Nada tenderá a mudar também do ponto de vista dos projetos urbanos e de localização de infraestruturas que deixam de atender e penalizam moradores das periferias urbanas.
Ou seja, a predação ambiental tenderá a continuar enquanto os que sofrerem seus efeitos forem os menos representados nas esferas do poder – sejam as populações vitimadas pelos eventos climáticos extremos, sejam aqueles que têm suas terras ocupadas pelos agentes da grilagem e do desmatamento. O filósofo Walter Benjamin alertou[ii]: é preciso puxar o freio de emergência da locomotiva do progresso técnico para evitar que o mundo seja levado a uma possível catástrofe. Mas quem vai parar este trem se aqueles que detêm o poder de puxar os freios conseguem escapar dos danos que eles próprios produzem?
Para os anti-ambientalistas do capital agrominerário, os “boiadeiros da ilegalidade”, “ambiente bom é ambiente degradado”. Isto porque o ambiente a ser degradado é o ambiente dos pobres das periferias, dos pequenos produtores rurais, dos indígenas e quilombolas. A questão que hoje se coloca ao debate é: como fazer políticas ambientais que combatam a desigualdade e alimentem um processo de reconstituição da esfera política? Como ligar a remontagem das políticas ambientais à montagem de uma política democrática?
Se a desigualdade ambiental é que permite que o capitalismo extrativo se expanda sem freios, no Brasil e no mundo, o combate a esta desigualdade – é o que sugere a filosofia pré-socrática de Anaximandro – é o caminho para frear a trajetória da locomotiva do progresso rumo a um possível colapso. Não será, por certo, suficiente puxar o freio e reduzir a velocidade. Será necessário mudar a direção do trem do desenvolvimento.
Notas
[i] Werner Jaeger, Paideia – los ideales de la cultura griega. Fondo de Cultura Económica, Mexico – Buenos Aires, 1957, p.113.
[ii] Em texto de 1928, a metáfora de Benjamin é a da necessidade de cortar o pavio do desenvolvimento tecnológico cuja centelha pode chegar à dinamite. Walter Benjamin, Rua de Mão Única, Obras escolhidas II, Ed. Brasiliense, 1987, p. 45-46. É em 1940 que, conforme destaca Michel Lowy, Benjamin fala da necessidade de um freio de emergência à locomotiva do progresso, Gesammelte Schriften, Berlim, Suhrkamp, 1977, I, 3, p. 1232, apud M. Lowy, A Revolução é o freio de emergência – ensaios sobre Walter Benjamin, ed. Autonomia Literária, São Paulo, 2019. P. 145.