Desmatamento e escândalo na ferrovia da soja

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Planejada para favorecer o agronegócio, Ferrogrão rasgará Amazônia, de Sinop ao Tapajós, para ampliar devastação do Cerrado. Até grandes empreiteiras afastam-se. Governo habilita empresa desconhecida de Cuiabá para tocar projeto de R$ 20 bi

Era 15 de agosto de 2012 quando o governo federal de Dilma Rousseff lançou o Plano de Investimentos em Logística (PIL), a mais ambiciosa iniciativa do governo federal para ativar o setor produtivo nacional e sustentar um “milagre econômico petista” que já se mostrava declinante. O pacote visava a promover concessões e outorgas em portos, aeroportos, rodovias, hidrovias e ferrovias, e movimentaria por volta de R$ 450 bilhões em investimentos.

Era o tempo da euforia dos mercados com o modelo econômico brasileiro, em vias de ser coroado pelos megaeventos esportivos, e empresas como Odebrecht, OAS e Camargo Correa pontificavam no setor produtivo privado nacional. Dilma acabara o que na época ficou conhecida como “a faxina anticorrupção”, principal marca de seu primeiro ano de governo, quando demitiu seis ministros no primeiro semestre de seu mandato por acusações de corrupção.

O PIL fora concebido também como política de contenção inflacionária gerada pelas altas taxas de juros. No entanto, com uma taxa de retorno dos projetos que não foi além de 7%, os grandes “investidores” não puderam sair de suas cômodas aplicações em títulos financeiros, em especial do Tesouro, que pagam juros de dois dígitos sem qualquer risco ou exigência de gasto produtivo real.

O pacote de investimentos não decolou e, para muitos, as iniciativas da então presidente em moralizar seu gabinete de governo começaram a custar a lealdade do aliado PMDB e do sempre governista “centrão”. Seu mandato terminou em estagnação econômica e uma vitória eleitoral apertada que prenunciava uma dificílima governabilidade para o segundo mandato.

No meio do ambicioso pacote descansava o projeto de construção da EF-170, mais conhecida como Ferrogrão, uma portentosa estrada de ferro de 933 km de extensão que ligaria o polo agroextrativista de Sinop-MT ao porto de Miritituba, norte do Pará, escoadouro da produção agromineral brasileira.

Já no governo Temer, o consórcio EDLP – Estação da Luz Participações Ltda. foi escolhido para realizar os estudos da Ferrogrão (EF 170). O grupo envolvia as tradings Amaggi, ADM, Bunge, Cargill, Dreyfus e EDLP, que custearam os estudos técnicos e de diagnóstico ambiental da ferrovia para a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT).

“Em 2014, o Ministério da Infraestrutura publicou um edital para a elaboração dos Estudos de Viabilidade da ferrovia, e a Estação da Luz Participações (EDLP) se propôs a fazer o relatório de viabilidade técnica, entregue em 2016. Inicialmente, a Ferrogrão seria licitada por um período de 69 anos. No governo de Jair Bolsonaro a regra está mudando para um regime de concessão em que os investidores ou empresas poderão obter uma Autorização Simplificada, conforme a Medida Provisória (MP 1065/21), um novo marco legal do transporte ferroviário que dá permissão para construção de novas ferrovias por meio desta Autorização Simplificada, sem necessidade de licitação. O custo atualizado da construção da Ferrogrão já está perto dos R$ 20 bilhões. A ideia do governo federal é um retrocesso histórico comparável com a época da ditadura militar, que tinha o objetivo de ‘ocupar’ o vazio demográfico na Amazônia”, escrevera a ambientalista e pedagoga Telma Monteiro, em trabalho pioneiro sobre o tema a respeito deste projeto.

Em busca de investidores

Se antes se vivia uma euforia econômica quase sem precedentes, a ponto de um projeto de tal envergadura obter pouco destaque nos debates de então, dada a quantidade de megaobras em andamento, hoje se observa um país devastado por uma pandemia e uma crise econômica sem data para acabar, com alta descontrolada de preços, desemprego e corrosão da renda média dos trabalhadores. Membro de um governo que não tocou nenhuma obra relevante, o então ministro da Infraestrutura Tarcisio Gomes de Freitas fez um “Roadshow” por países líderes do capitalismo global em outubro de 2021, a fim de obter financiamento privado para a EF-170. Afinal, a febre brasileira do “combate à corrupção” veio acompanhada de uma política macroeconômica de uma nota só, onde reina inconteste a austeridade total nos orçamentos públicos sociais e o BNDES foi extinto de seu papel de indutor do crescimento econômico. Mas, como se vê nas iniciativas governamentais de repaginar o Bolsa Família e tentar restringir os impactos da inflação em alimentos, combustíveis e energia, a fé no setor privado como organizador da retomada dos investimentos e da atividade econômica produtiva parece arrefecer.

E, apesar do interesse formal manifestado por grandes holdings do setor agromineral, nacional e internacional, o ministro, que também foi diretor geral do Departamento Nacional de Infraestrutura (um dos focos da faxina dilmista), voltou de mãos abanando. O violento processo de desmonte das legislações e órgãos de controle ambiental, associado ao brutal mandato do ministro Ricardo Salles na pasta do Meio Ambiente, amplamente condenados pela opinião pública e governos dos países líderes da economia global, parece ter gerado o chamado ambiente de insegurança jurídica.

Além disso, ao longo dos primeiros três anos de governo Bolsonaro, o país foi pautado por episódios marcantes, como o Dia do Fogo, os incêndios do Pantanal, frequentes cercos e invasões a territórios indígenas em função dos recursos minerais do subsolo e a já tradicional violência no campo em razão de conflitos pela terra.

Como resposta ao enfraquecimento de órgãos como Ibama, Funai e ICMBio, e constrangido pelas críticas, o presidente da República criou o Conselho Nacional da Amazônia, via decreto publicado no Diário Oficial em 12 de fevereiro de 2020. Como de hábito de sua administração, o órgão não se caracteriza por prestigiar funcionários técnicos de carreira e sua chefia foi dada ao general e vice-presidente Hamilton Mourão. Para além de declarações protocolares de respeito às normas ambientais e metas de redução de desmatamento, não há qualquer ação de destaque do órgão no controle do assédio à floresta.

Sobre a crescente violência contra povos indígenas, a exemplo do ataque aos yanomâmi que terminou em brutalidade contra crianças, nem sequer declarações protocolares foram dadas. Nesta quarta-feira, 11 de maio de 2022, ao responder sobre o desmatamento recorde do mês de abril, Mourão não foi além de respostas evasivas.

Além do desmatamento, o Acampamento Terra Livre, organizado pelos povos indígenas em oposição à tese do Marco Temporal da Terra, defendida pela ampla bancada ruralista e o próprio gabinete de governo, e o bloqueio pelo Greenpeace de um navio cargueiro de soja brasileira no Porto de Amsterdã na terça, 10 de maio, completam o corolário de fatos geradores de desconfiança para grandes negócios na atual conjuntura brasileira.

Mesmo assim, se consideramos as declarações de alguns dos generais brasileiros, além do próprio presidente da República, a respeito do que seria uma gestão adequada da Amazônia, inclusive com apoio a projetos de garimpo e mineração, parece difícil não concluir que o Estado brasileiro se porta como ativo mobilizador do avanço do capital privado sobre a floresta.

Resta saber quais capitais privados toparão a empreitada, uma vez que até o agronegócio interessado mais propriamente no corredor de escoamento de seus grãos reconhece o avanço de práticas predatórias contra os territórios que margeiam o traçado da Ferrogrão. Constrangimentos internacionais como o desta terça na Holanda devem reforçar tal percepção.

Já as grandes empresas internacionais que testemunharam o Roadshow do ministro, têm demonstrado preocupação com projetos de exploração agromineral sem sustentabilidade comprovada, em especial quando não contam com aprovação dos povos que habitam os territórios cobiçados. Por fim, a participação brasileira na COP-26 e o isolamento político internacional em que o país submergiu parecem afastar de vez as empresas da “primeira linha” do capitalismo global.

Parque Nacional do Jamanxim

Ponto importantíssimo da obra é que ela acompanharia trecho da BR-163, que já corta ao meio o Parque Nacional do Jamanxim, além de cruzar uma miríade de terras indígenas, habitadas por diversas etnias. Em 2016, Dilma editou MP que desafetava o trecho do Jamanxim que seria impactado pela construção da Ferrogrão, decisão que deve ir a julgamento pelo STF em junho após contestação com Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) por parte do PSOL.

Localização do Parque Nacional Jamanxin (PARNA) | Mapa: reprodução Telma Monteiro.

“O Parque Nacional do Jamanxim, unidade de conservação criada em 2006, já sofre os impactos da BR-163 no sentido norte-sul. A importância dessa Unidade de Conservação (UC) é tanta que é considerada uma ‘unidade-corredor’, pois liga o mosaico do Tapajós ao mosaico do Xingu. São mais de 17 milhões de hectares de áreas protegidas federais. O asfaltamento da BR-163 já está concluído e com ele o aumento do tráfego; segundo os estudos técnicos da Ferrogrão: ‘incrementou os acidentes envolvendo a fauna silvestre, as ocorrências de incêndios e a vulnerabilidade a desastres com cargas contaminantes’”, anotara Telma Monteiro em 2021.

Com as travas jurídicas interpostas pelo MP, a desconfiança dos grandes investidores e a aproximação das eleições presidenciais, o projeto parece esbarrar em numerosos obstáculos para sair do papel. Até porque não está claro de onde viriam os recursos. No entanto, a pesquisadora e colunista deste Correio é enfática na compreensão dos interesses em jogo.

“Os 933 km da Ferrogrão podem sair do papel a qualquer momento. O novo marco legal ferroviário foi implantado pelo governo Bolsonaro como forma de agilizar o processo. Agora a empresa e os investidores escolhem como, quando e onde e apresentam o projeto da ferrovia que será autorizada como concessão. Como já acontece com os portos e aeroportos no Brasil: concessão, outorga por autorização para construir e operar ferrovias, ramais, pátios e terminais ferroviários. A Medida Provisória nº 1.065/21, escancara a liberdade de empresas transportadoras, operadores logísticos e indústrias de requisitar autorização ferroviária para construir e operar. O estudo técnico conterá a escolha do traçado, a localização e necessárias obras complementares. A responsabilidade de fiscalizar e fazer cumprir a legislação ambiental, nesse caso, pode sair das mãos do governo e passar para a iniciativa privada”.

Há quem queira

Atualmente, apenas uma desconhecida empresa se candidatou a receber verbas e tocar o projeto. Trata-se da Zion Real Estate, até aqui ignorada pelo público e a imprensa de massa.

“A primeira empresa e única (até o momento da postagem deste artigo) a formalizar o pedido para construir a Ferrogrão chama-se Zion Real Estate Ltda. Uma pesquisa sobre a empresa nos leva a uma pequena construtora com características fora do escopo que se espera para a construção de ferrovias e sem qualquer histórico de obras públicas. A Zion Real Estate Ltda tem duas sedes e dois CNPJs: 27.691.878/0001-77, uma sede está na cidade de Sorriso, MT, com 4 anos e 10 meses de existência, fundada em 09/05/2017; outra com o CNPJ 27.691.878/0002-58, foi fundada em 20/09/2021, com sede na Rua F-1 83 Sala 01, Praeirinho, Cuiabá, MT. A principal atividade econômica, conforme consta na Receita Federal, é a construção de moradias, não há menção sobre expertise em construção de ferrovias.

A Zion teve origem no Paraná com duas irmãs, Gabrieli Mosena e Daniela Mosena Librelato, uma arquiteta e outra engenheira civil. Daniela carrega o sobrenome Librelato, nome da empresa que é uma das maiores fabricantes de implementos rodoviários do país. Para se ter uma ideia do porte da Librelato, ela acabou de fechar acordo para fornecimento de 300 Rodotrens Basculantes Premium à AMAGGI, empresa do setor do agronegócio, e também voltada para Commodities, Logística e Operações e Energia do Brasil. A Librelato tem sede em Cuiabá, MT, e o setor do agronegócio é seu maior cliente”.

O bairro em que se localiza a sede da Zion foi historicamente ocupado por pessoas pobres e fica na periferia da cidade, longe de qualquer eixo comercial mais tradicional.

No dia 24 de janeiro, o Diário Oficial da União publicou o Aviso de Autorização, firmado pelo Ministério da Infraestrutura, que acolheu oficialmente o pleito da Zion em obter o direito de construir Ferrogrão, em seus três trechos. O ofício está assinado pelo atual ministro da Infraestrutura, Marcelo Sampaio Cunha Filho.

Em visita ao inacabado site da empresa, há um logotipo da construtora BS na lista de parceiros. A BS está em recuperação judicial desde 2011. Tem dois CNPJs, ambos inaptos na Receita neste momento (confira aqui aqui) e capital social declarado de R$ 500 mil. O quadro de sócios e administradores conta com três nomes em ambos os registros: Aglaucio Viana de Souza (diretor), e o casal Eliane Pereira Borges dos Santos (diretora) e Sidnei Borges dos Santos (presidente).

Empresa postou o outdoor em suas redes sociais. Reprodução.

A empresa é publicamente entusiasta do presidente Jair Bolsonaro e fez até outdoors de apoio à sua campanha presidencial em 2018. Mais que isso, Eliane foi candidata à deputada federal pelo PSC no Mato Grosso, em pleito no qual não conseguiu se eleger após obter 18.313 votos. Em sua ficha no TSE, declarou patrimônio de R$ 1,2 milhão. As irmãs Gabrieli e Daniela, da Zion, por sua vez, são suas sobrinhas. Apesar do banner no site da Zion, oficialmente, Zion e BS não se declaram parceiras.

Em meados de 2012, o passivo oficial da empresa era de R$ 95 milhões. Destaque até na mídia corporativa, a BS vivera um boom entre 2008 e 2010, chegando a faturar até R$ 180 milhões em obras residenciais, com especialidade em conjuntos pré-construídos.

De acordo com Eduardo Henrique Viera Barros, da ERS Advocacia, que prestou serviços à BS em sua recuperação judicial, “a construtora enfrentou problemas no cumprimento de seu principal projeto, a construção do Polo Industrial de Jirau, tendo que tomar empréstimos em instituições financeiras para conseguir capital de giro. Além disso, alguns empreendimentos da incorporação imobiliária no Norte do país se tornaram inviáveis, causando graves prejuízos, principalmente por conta da crise do ano de 2008, que arrasou a economia em todos os setores do mundo”.

Conforme nota pública da própria ERS, “Eduardo Henrique explicou que em 2010, com a necessidade de captação de recursos para finalização de obras, pagamentos de folha de salário, a construtora contratou com uma instituição financeira uma operação de R$ 50 milhões. A partir daí a BS entrou num círculo vicioso de empréstimos aos bancos privados, que sabido por todos praticam uma das maiores taxas de juros do cenário mundial, para cobrir outros financiamentos e usando todos os recursos que entravam somente para amenizar juros e renovar financiamentos”.

Em 2011, por conta no atraso da entrega dos conjuntos residenciais de Porto Velho, contratados para mitigar a remoção compulsória dos afetados pela construção da hidrelétrica de Jirau, que arrastou um enorme contingente de trabalhadores para as obras e acumulou problemas de caráter social, o MP-RO entrou com pedido de quebra de sigilo fiscal da empresa. A partir de então, as coisas não voltaram a decolar para a empresa do casal Borges.

Em 2021, os processos judiciais ainda seguiam e os donos da empresa conseguiram decisão judicial favorável ao desbloqueio de bens.

Situação atual

A síntese é um quadro onde o ordenamento jurídico de proteção ao meio ambiente e aos povos da terra é desmantelado pelo próprio governo, ao passo que os entraves burocráticos e as empresas nacionais mais capacitadas para grandes obras praticamente desapareceram na esteira da Lava Jato, sob as punições e acordos que os promotores da operação capitaneada pelo ex-juiz Sergio Moro fizeram com os executivos das outrora “campeãs nacionais”.

Ficou muito mais fácil realizar obras ferroviárias, pois o novo regime de autorização aprovado no final de 2021 pelo Congresso Nacional permite que qualquer empresa se habilite. Não há mais a chamada licitação. Com o novo modelo, empresas de qualquer porte ficam responsáveis pelo planejamento e construção, e têm toda a autonomia. Teoricamente o Estado vai apenas fiscalizar as normas de segurança após conceder a chamada Autorização de Construção.

Segundo o Ministério da Infraestrutura, a Ferrogrão (EF-170) está recebendo proposta e projetos de empresas. O Programa de Autorizações Ferroviárias ou Pro Trilhos, segundo o MInfra, vai permitir que “o setor privado possa construir e operar ferrovias, ramais, pátios e terminais ferroviários”. Além da ferrovia para escoar os grãos do norte do Mato Grosso, está prevista a construção de 54 pátios de carga e descarga e a recuperação da BR-163. Mas até o momento apenas uma empresa se habilitou para o megaprojeto: a Zion Real Estate.

Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Colaborou Telma Monteiro.

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