A pandemia destroçou cadeias afetivas; o fascismo capitaliza o mal-estar. Antídoto: propor vida em que o compartir, o estar-e-pensar juntos e o desfrute do sensual substituam a abstração selvagem da mercadoria
O que aconteceu com o desejo – íntimo e social – durante a pandemia? A visão política tradicional da esquerda, que relega tudo o que diz respeito à subjetividade à esfera privada, não costuma fazer essa pergunta. Então é a extrema direita que canaliza os desconfortos que hoje perpassam nossos corpos.
A pandemia provocou um fenômeno generalizado de “apagão libidinal”, arrancando o desejo de lugares, objetos, atividades em que estava localizado. Esse apagão é ambivalente: por um lado, falta de desejo, desânimo, depressão. Mas também uma fuga da competitividade, da busca pelo sucesso, do consumo. Essa ambivalência se relaciona com eventos como a “grande onda de demissões”, o êxodo das grandes cidades ou aquilo que se esconde sob o rótulo midiático de “síndrome da cabana”.
Não estamos diante de movimentos políticos óbvios, como a fuga do trabalho alienado durante os anos 1960 e 1970. Seremos capazes de ouvir esses fenômenos impuros e ambivalentes? É a aposta do pensador italiano Franco Berardi (Bifo) em seu último livro, O Terceiro Inconsciente: a psicosfera na era viral [ainda edição no Brasil].
Analisar esses processos exige que mudemos nossa perspectiva: passar do conhecimento dominante da sociologia ou geopolítica para uma psicopatologia ou uma psicopolítica, ou seja, construir uma nova razão sensível capaz de se sintonizar com as correntes de desejo que atravessam a sociedade.
Apocalipse, pandemia e guerra
Bifo: Eu queria dizer duas palavras sobre o livro e seu contexto, para começar. Em setembro de 2020, li uma declaração do diretor da Agência Canadense de Saúde que dizia: Skip kisses (“evite beijos”), in any case you have sexual relations don´t forget to wear sanitary masks (“no caso de ter relações sexuais, não esqueça de usar máscaras de proteção”) e anyway in the present condition the best is going solo (“nas condições atuais, o melhor é ter prazer sozinho”), expressão que eu nunca tinha ouvido antes.
Quando li essas palavras, percebi que estava ocorrendo uma mutação que afetaria a vida social da comunidade em um nível muito profundo, que vai modificar a percepção do corpo do outro, da pele do outro, dos lábios do outro. Os lábios não são apenas um lugar de acesso ao prazer, mas também onde o sentido, o significado, é produzido e comunicado.
Como sou um velho hippie, eu primeiro tive uma reação de preocupação e pessimismo. Mas então pensei: vamos tentar não julgar, não tirar conclusões precipitadas, mas viver esse processo, essa passagem, algo que vislumbrei como um limiar, um longo limiar de transformação; vamos, então, tentar vê-lo como a passagem para um terreno desconhecido.
Durante os dois anos da pandemia, minha atividade principal foi tentar entender as mutações psíquicas, as mutações da subjetividade social, especialmente da geração que está crescendo agora, que está descobrindo o mundo, que está descobrindo o corpo do outro. Nesta pesquisa estive acompanhado por um grupo que se reúne duas vezes por semana desde o início de abril de 2020, o Grupo Intercontinental de Pesquisa sobre a Pandemia, um grupo de amigos, a maioria psiquiatras e psicanalistas, mas também profissionais de saúde e psicoterapeutas.
Tentei responder a essa questão com a imagem do “terceiro inconsciente”, a ideia de que estamos entrando na era do terceiro inconsciente. Quem lida seriamente com essas coisas pode rir das minhas palavras, porque o terceiro inconsciente não significa nada. Não há primeiro inconsciente, nem um segundo inconsciente; o inconsciente não tem história. Mas existem psicoesferas diferentes, campos de cruzamento entre o social e a psique. Uma primeira psicosfera é o inconsciente de que fala Freud, quando diz que o inconsciente é efeito da repressão e que se manifesta por meio de um mal-estar do tipo neurótico. Uma segunda psicosfera seria o produto inconsciente neoliberal da extrema aceleração do universo econômico, social, linguístico, comunicativo e, principalmente, do universo dos estímulos informativos e psíquicos. Aí vamos da neurose à psicose como manifestação privilegiada do mal-estar.
No livro pergunto se existe uma terceira psicosfera, o inconsciente da pandemia. Nestes anos a aceleração parou e ocorreu uma psicodeflação: uma diminuição na energia de aceleração que caracterizou os últimos quarenta anos. Quais serão os efeitos dessa psicodeflação? Esta é a questão que exploro no livro.
Mas agora, pedindo desculpas à editora, parece-me que este livro nasceu velho, porque cruzamos o limiar em uma nova direção: a guerra. Qual é a relação entre pandemia e guerra? Eu entendo a guerra atual como uma reação agressiva à psicodeflação pandêmica, uma resposta à depressão global.
Amador: Queria trazer à tona, para começar, um texto que li recentemente de um autor que não costumo encontrar muito que é o pensador judeu Emmanuel Lévinas. É um artigo de 1946 onde ele reflete sobre a experiência dos campos de concentração em que esteve confinado durante a guerra. A certa altura, ele diz: “Nos campos conhecemos a expectativa do fim do mundo”. Ele não se refere ao fim do mundo físico, mas à implosão das categorias que organizam o sentido de nossa experiência do mundo. E citando o profeta Isaías, afirma: “Esperávamos, depois da guerra, um novo céu e uma terra desconhecida”. Ele chama isso de sensibilidade apocalíptica. A palavra apocalipse tem dois significados: fim do mundo e revelação. A sensibilidade apocalíptica é a sensação de que o que está lá não se sustenta mais e de que “um novo céu e uma terra desconhecida” são necessários.
Mas o surpreendente, diz Lévinas, é que depois da guerra, a normalidade voltou, o mundo se refez como se nada tivesse acontecido. Não apenas na banalidade cotidiana, mas na repetição do pior: em 1946, ocorre o Pogrom de Kielce, na Polônia. Lévinas, então, se pergunta: “Foi tudo vaidade?” (esse é o título do texto).
E a resposta dele é não, que é preciso trabalhar para recolher os efeitos do desvelamento, para que não se desvaneçam e tudo seja vaidade das vaidades. Uma “ingenuidade superior” seria necessária para evitar o apagamento daquela experiência, cujos mortos simplesmente engrossariam as estatísticas. É o trabalho de uma vida inteira registrar e pensar os efeitos da revelação.
Este livro também nasce de uma sensibilidade apocalíptica. Bifo tem visões no confinamento da pandemia. Ele vê o fim de um mundo, a possibilidade de outro. É um livro cheio de pontos de interrogação. A crise do coronavírus será a ocasião perfeita para uma melhoria do sistema ou o ponto de partida de uma deriva existencial, cultural, política?
O livro de Bifo é um livro “ingênuo”, no melhor dos sentidos possíveis. Nos últimos anos, vimos os pensadores mais conhecidos simplesmente reafirmando suas posições anteriores, sem ao menos se interrogarem sobre o que estava acontecendo. O caso de Giorgio Agamben é o mais conhecido, mas não o único. Os pensadores geralmente não se atrevem a essa ingenuidade de não saber tudo de antemão.
A experiência pela qual passamos ainda está para ser contada e pensada. Ela não ficou pra trás porque, mesmo que não haja mais mutações do vírus, ela deixou marcas profundas em nossos corpos. Marcas de terror, de distanciamento social, de obediência, mas também de desvelamento. Tudo isso é o que Bifo está pensando.
Como então não vai ter atualidade? Não devemos ceder ao tempo da conjuntura, devemos resistir à vaidade das vaidades, registrar os lampejos de revelação – e o livro de Bifo é uma ferramenta formidável para isso.
Geopolítica ou psicopatologia?
A primeira pergunta que eu queria fazer é de método ou abordagem. Em um texto recente sobre a guerra na Ucrânia, você disse algo que me interessou muito: “Não precisamos de uma geopolítica, mas de uma psicopatologia ou de uma psicopolítica”. Não precisamos tanto de um pensamento das macrodeterminações que nos definem, determinações sociológicas, determinações políticas, determinações históricas, mas de um pensamento, de uma sensibilidade, capaz de apreender as flutuações de desejo, dos estados de ânimo, da produção de subjetividade. Outra forma de pensar. Então, a primeira pergunta seria esta: o que seria um olhar psicopolítico ou psicopatológico?
Bifo: Geopolítica ou psicopatologia? Claro que a geopolítica tem um papel para compreender o mundo contemporâneo, mas o problema é que ela se limita a descrever os efeitos de superfície. Temos que entender o que está acontecendo em um nível muito mais profundo: o nível das inversões do desejo, o nível da mutação psíquica diante de uma aceleração caótica dos processos sociais.
Para compreender a genealogia do nazismo hitleriano, é preciso captar o sentimento de humilhação que se espalhou na Alemanha após o Tratado de Versalhes. Medo e depressão foram compensados por uma exagerada reação agressiva. Há um filme de Ingmar Bergman chamado O Ovo da Serpente (1977) que narra precisamente a genealogia do nazismo, do ponto de vista de uma situação psicótica cotidiana. No início do filme vemos uma multidão em preto e branco que parece sonolenta, mas no final essa multidão se transforma em uma massa agressiva e pronta para a guerra.
Acho que estamos em uma situação de depressão epidêmica semelhante. Na Itália, entre pessoas de 15 a 30 anos, multiplicam-se os suicídios. Há uma predisposição à depressão sobre a qual temos que falar se quisermos entender o que está acontecendo. Não quero dizer que a guerra na Ucrânia possa ser reduzida a uma questão de psicanalistas. Mas a psique dos russos, dos ucranianos, de todo o mundo, está hoje em uma situação de depressão e possível reação de guerra compensatória. A geopolítica não explica nada disso.
O retorno da Terra
Amador: Eu gostaria de perguntar também sobre a distinção que você faz entre a Terra e o Mundo. O Mundo seria esse “objeto” que a política clássica acreditava, de Descartes a Maquiavel, dominar. Mas a Terra é algo muito diferente, o indomesticável. O vírus seria uma manifestação da Terra. Você poderia desenvolver mais essa ideia?
Bifo: Toma essa definição de um pensador japonês chamado Sabu Kosho. Sabu escreveu um livro chamado Radiação e Revolução. É o relato da experiência de um ativista e, ao mesmo tempo, filósofo, que viveu o desastre de Fukushima trabalhando entre as pessoas atingidas pelo tsunami. Sabu discute a reação após um evento tão horrível e destrutivo. Somos nesses momentos, diz ele, como estranhos em um planeta estrangeiro que não conhecemos e onde tentamos sobreviver.
Assim, ele propõe-se distinguir Mundo de Terra. O que é o Mundo? É o produto de nossa atividade linguística, política, econômica, produtiva, a evolução da civilização e do que poderíamos chamar de cultura no sentido filosófico, antropológico. O mundo é cada vez mais desafiado pela Terra, pelo retorno de forças que não podemos controlar: os incêndios que destroem grandes áreas do planeta, as águas do oceano e tudo o que conhecemos como catástrofe ecológica, processo acelerado hoje pela guerra. Essa é a Terra, a natureza que hoje retorna, incluindo a natureza humana.
O neoliberalismo se afirma desde o início como darwinismo social, segundo esse pensamento essencialmente falso, ideológico, de que na natureza só sobrevivem os mais fortes e que a economia deve ser aceita como natureza onde os mais fortes vencem. Mas há aqui uma mistificação. Se nos definimos como humanos é porque houve uma ruptura cultural que nos permite considerar a natureza como algo muito belo e gentil, mas também violento e perigoso. Por isso inventamos coisas como a linguagem, a solidariedade social ou o Estado, que odiamos com razão, mas que nasceu do problema da natureza como um perigo mortal.
A agressividade da natureza voltou porque o neoliberalismo nos disse que o mais forte deve vencer. E o mais forte é o vencedor neoliberal, o mais forte é Vladimir Putin – e a força dos fortes é a guerra.
Psicodeflação
Amador: Isso me lembra tudo o que Isabelle Stengers fala sobre a “intrusão de Gaia”. Gostaria de passar ao tema do terceiro inconsciente, aquele que provoca – acelera, radicaliza, manifesta? – a crise do coronavírus: um apagão libidinal completo, a psicodeflação. O que você pode nos dizer sobre esse terceiro inconsciente? Embora ainda seja um território desconhecido, magmático, em ebulição, quais tendências você detecta? O que você poderia compartilhar sobre esse trabalho com psicanalistas e terapeutas que você desenvolve há dois anos?
Bifo: O terceiro inconsciente se define em relação à inflação psíquica da era neoliberal: uma aceleração extrema do corpo e da mente coletiva com o objetivo de um aumento contínuo da produtividade, especialmente da produtividade intelectual, do trabalho cognitivo, uma exaltação da energia como uma força produtiva e capacidade de dominar a realidade. Obviamente o vírus rompe com essa corrida, com essa aceleração.
Qual é o vírus? O vírus é uma concreção material invisível, um retorno da matéria que a abstração do capitalismo financeiro tentou esquecer, suprimir, anular. A matéria retorna e quebra a continuidade das cadeias produtivas, das cadeias de distribuição, causando a great supply chain disruption [grande ruptura da cadeia de suprimentos], como dizem os americanos, mas também das cadeias afetivas.
O efeito dessa desaceleração ou “psicodeflação” é um efeito que se apresenta como depressivo do ponto de vista psíquico, é a sensação de ter perdido algo. Perdemos, em primeiro lugar, a força política de governo da realidade. O vírus é um caos universal, diria Félix Guattari, um produtor massivo de caos. E o que é o caos? O caos não é uma realidade limitada, mas uma relação entre a mente humana e o ambiente, o ambiente físico, comunicativo, linguístico. Há caos quando o cérebro não consegue elaborar uma realidade que se torna mais rápida e complexa do que podemos processar.
Mas quando entramos em uma dimensão caótica sempre há pessoas estúpidas que dizem “guerra ao caos”: guerra ao vírus, às drogas, ao terrorismo. E o que acontece então? O caos é multiplicado por cem. O narcotráfico, as máfias, o terrorismo, as catástrofes. O caos se alimenta da guerra. Guattari sugere que aprendamos a ouvir o caos, a ouvir a voz do caos, a aprender um novo ritmo, porque isso é o caos, um novo ritmo. A psicodeflação tem sido uma reação saudável, entre aspas, ao caos. Arrefecemos, desaceleramos.
O mundo branco, o mundo cristão, o que chamamos de Ocidente, é muito extenso e inclui a Rússia. A Rússia é o Ocidente do ponto de vista cultural. A força que move a história e a cultura russas é a mesma força que move os EUA e a Europa: a força da dominação agressiva, a força da expansão, a força do futuro. A palavra futuro é central para entender o que estou tentando dizer. Futuro significa expansão no pensamento ocidental e o problema é que a expansão se esgotou, hoje se tornou impossível, só podemos expandir através do massacre, em primeiro lugar o da natureza. O crescimento econômico, esse mito total e central do pensamento econômico, compartilhado por todos os políticos de direita e de esquerda, hoje significa apenas catástrofe, destruição, morte.
O futuro acabou e estamos ficando velhos. O envelhecimento é um fato absolutamente central no Ocidente (também na China, certamente). O que é envelhecer? Uma perda de energia, de potência, de futuro, obviamente. Mas o cérebro ocidental não pode tolerar a ideia do fim da expansão. Nossa civilização sempre reprimiu o envelhecimento e a morte como uma experiência essencial da vida humana, o que no livro chamo de “tornar-se nada”. Temos que falar sobre isso de se tornar nada se quisermos sair da loucura da guerra, da destruição total, da bomba nuclear; porque os velhos preferem levar o mundo inteiro com eles para o inferno a aceitar a morte e o tornar-se nada.
O que aprendi com a experiência do International Pandemic Research Group? Uma coisa essencial: contra o pânico só existe uma vacina e essa vacina é pensar junto. Pensar e ainda mais pensar em conjunto tem um enorme potencial terapêutico e político. A única coisa que podemos fazer neste mundo onde o Mundo se confunde com a Terra, onde não entendemos onde estamos ou como sobreviver, a única coisa que podemos fazer para escapar do pânico e da depressão é pensar juntos.
Amador: Como é difícil fazê-lo quando o encontro entre os corpos é proibido. Para mim, a coisa mais difícil de suportar neste tempo foi essa dificuldade de inventar maneiras de pensar juntos. O terror atomiza; e contra Descartes é preciso dizer que não há um eu que pense sem um tu que responda. O campo do pensamento crítico se estreitou muito, qualquer dúvida em relação ao discurso oficial é imediatamente descartada como um delírio negacionista. E agora, na situação de guerra, há também esse tipo de obrigação de se posicionar em um conselho anterior, de ter que escolher entre Putin ou a ideia ocidental de liberdade, que são fundamentalmente as mesmas, como você mesmo explicou.
Renúncia contra a abstração
Queria voltar à experiência do primeiro confinamento. Uma experiência ambivalente. Por um lado, terror e distanciamento social; por outro lado, os aplausos, a solidariedade e a sensação de que o que está lá já não se sustenta mais. O slogan que circulava então pelas sacadas dos prédios era que não havia necessidade de voltar à normalidade porque a normalidade era o problema. No silêncio, na desaceleração, vislumbramos uma outra vida possível.
Mas minha impressão é que não conseguimos prolongar esse momento, abrir essa bifurcação. Ao sair daquele primeiro confinamento, ficamos sem voz. Há um momento no livro em que você diz que se uma nova subjetividade não surge, o possível se perde, se esvai. É vaidade das vaidades. Mas de que tipo é essa nova subjetividade? Que tipo de força pode empurrar uma passagem de limiar diferente, prolongar o evento, impedir que suas marcas se desvaneçam, abrir uma bifurcação existencial, outra deriva civilizatória?
Bifo: Para mim, o primeiro confinamento foi uma experiência bastante alegre, mas para muitos jovens não foi nada. A mídia atacou os jovens, falaram de tudo sobre eles, os desqualificaram e os criminalizaram por quererem tomar uma cerveja. Mas foram os jovens que pagaram o preço mais alto para salvar os velhos. Como avô, agradeço muito, mas não posso culpá-los por tomar uma cerveja.
De repente, o pensamento de uma mudança de paradigma social se espalhou. Na Itália está claro para todos que a catástrofe sanitária foi sobretudo um efeito da destruição neoliberal do sistema público de saúde. Todos pensávamos que iríamos testemunhar um retorno ao keynesianismo, a um pensamento social da economia, mas isso não aconteceu. A ideia de que o capitalismo pode ser racional e humano é uma ilusão. O que aconteceu é a radicalização do empobrecimento e o enriquecimento privado dos super-ricos.
Por que isso aconteceu? Como podemos evitar as consequências catastróficas que já estão se desenvolvendo? Minha resposta está contida nesse termo “psicodeflação”, mas com uma evolução linguística muito interessante: a palavra “resignação”. Quando pensei nisso pela primeira vez, me pareceu uma blasfêmia. Minha formação materialista e marxista se rebelou contra ela. Mas então li em um jornal norte-americano a expressão “grande resignação” (Great Resignation). Como sabemos, quatro milhões e meio de americanos decidiram não voltar ao trabalho após a pandemia e a mesma coisa acontece na China, há cada vez mais jovens e não tão jovens que estão se perguntando: por que tenho que trabalhar por um salário de merda, em condições humilhantes, inaceitáveis, idiotas?
A palavra resignation, em inglês, tem dois significados. A primeira é aceitar o inaceitável. Mas a outra é renunciar, demitir-se, sair do campo social, do campo produtivo, ir embora para sempre. Esse segundo significado me fez pensar em um terceiro: re-signation, ressignificação. Temos que ressignificar nossa relação com a necessidade, com a natureza, com nossas formas de vida cotidiana, ressignificar a relação entre o concreto, o útil e a produtividade.
A primeira página de O Capital explica que o coração do capitalismo é a abstração, o capitalismo é um processo de acumulação de valor abstrato, o que significa ex-tracto, extraído, o valor que o capital extrai da vida concreta, das necessidades concretas, dos poderes concretos da humanidade. O retorno do útil e do concreto é o que mais me interessa hoje.
A morte como condição de liberdade
Amador: Uma última pergunta. Há uma famosa frase de Spinoza que diz: “O um homem livre menos pensa é na morte”. No entanto, você diz que hoje, para recuperar a liberdade, temos precisamente nos tornar amigos da morte, repensá-la e travar amizade com o “tornar-se nada”.
Bifo: Talvez Spinoza esteja errado, certo? Um homem livre não pensa na morte, bem, mas somos homens livres? E, além disso, o que significa liberdade? A associação entre liberdade e poder termina em formas histéricas de pensamento político.
A histeria de toda modernidade é a identificação entre liberdade e potência, a ideia de que a potência se manifesta na dimensão da liberdade e que esta é ilimitada. Não, meus caros, vocês têm a liberdade de pular do quinto andar, mas isso te mata. Não é verdade que a potência se manifeste na liberdade, mas o contrário: a liberdade se manifesta na potência e ela não é ilimitada. A morte é então considerada como um problema que tem uma dimensão filosófica, psicanalítica e política muito importante.
A modernidade branca e imperialista rejeitou o pensamento sobre a morte porque pensou a potência na dimensão da liberdade ilimitada. Essa liberdade ilimitada tem sido a máscara da escravização da maioria da humanidade, a liberdade neoliberal, a liberdade norte-americana, a liberdade da constituição americana, uma constituição escrita por escravagistas. Quando a questão da escravidão foi levantada na convenção que redigiu a declaração constitucional americana, decidiu-se postegar a discussão. Resultado? Hoje o neoliberalismo reproduz um efeito de escravidão massiva e generalizada.
Estamos agora à beira da morte da civilização branca. Isso soa como um abismo assustador e catastrófico para nós, mas não é! Porque a morte é uma experiência de vida. A morte deve ser pensada como limite, como condição de liberdade, a livre morte, a liberdade de morrer. Mas somos fascinados por uma pretensão histérica de limitar nossa potência, romântica e fascista. Pensar na morte, ironizar sobre ela, como faz Salman Rushdie em seu último romance, Quixote, é a única maneira de sair da história do Ocidente, da histeria assassina e suicida do Ocidente, da ideia ilimitada de potência.
Amador Fernández-Savater em diálogo com Franco Berardi “Bifo”, no Ctxt | Tradução: Vitor Costa
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