Em Anapu (PA), criação de assentamentos enfurece grileiros, que ampliam cerco aos agricultores e ativistas ligados à freira, assassinada em 2005. Escola foi incendiada e houve tiros contra os moradores. Incra recua e famílias vivem o medo
Era quase meia-noite quando Deise Oliveira, 22, avistou um clarão na escola Paulo Anacleto, construção de palha e madeira onde estudam filhos de agricultores na zona rural de Anapu, no Pará. Ao constatar o incêndio, ela saiu correndo em direção ao mato e alertou os vizinhos por mensagens, enquanto ouvia disparos de arma de fogo – contou 15 ao todo.
Escola na zona rural de Anapu (PA) foi destruída pelo fogo no ataque mais recente ao Lote 96 (Foto: Reprodução)
O ataque na noite do último dia 18 é o terceiro desde maio contra os moradores do chamado Lote 96, área pública federal destinada à reforma agrária, mas reivindicada por herdeiros de um fazendeiro paulista. Ali vivem 54 famílias de agricultores sob ameaça constante de madeireiros e grileiros contrários ao assentamento. Desde 2015, 19 trabalhadores rurais foram assassinados na cidade, onde também foi morta a freira americana Dorothy Stang, em 2005, em uma emboscada
A onda de ataques ocorre em meio ao recuo do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em confirmar o uso da terra em favor dos assentados. A autarquia publicou em julho portaria criando o Projeto de Assentamento (PA) Irmã Dorothy Stang – que engloba os lotes 96 e 97, de cerca de 4.000 hectares, para assentar 73 famílias –, mas paralisou a demanda três dias depois alegando “vícios” no processo. Questionado pela Repórter Brasil, o Incra não especificou quais problemas foram identificados.
“A gente conseguiu que o Incra liberasse a portaria, mas parece que botaram uma pedra em cima e não se resolveu mais nada. É só Deus para defender a gente, e contar com a colaboração da Justiça”, desabafa Lourival dos Santos Lima, 63, morador do Lote 96. “A Justiça é muito lenta, não vai resolver enquanto não morrer duas ou três famílias”, diz outro morador, Edvan Batista da Silva, 50.
Além dos ataques aos camponeses, ocorreram também intimidações a dois servidores do Incra que atuam na região e a duas freiras que continuam o trabalho da irmã Dorothy em prol dos trabalhadores, as missionárias Jane Dwyer e Katy Webster, segundo áudios trocados em WhatsApp obtidos pela reportagem.
“O Incra é induzido por meia dúzia de pessoas que sempre trouxeram o caos, a discórdia, a desgraça e o derramamento de sangue para Anapu. Essas duas freiras americanas tocam o terror”, disse o pastor Abimael Silva, candidato a deputado estadual pelo PRTB, em uma das gravações. A declaração se deu logo após o Incra anunciar a criação do assentamento, no final de junho. A reportagem tentou contato com Silva, mas sem retorno.
O recuo do Incra na criação do assentamento agravou a tensão na região, avalia a defensora pública federal Elisângela Côrtes. “A partir do momento em que o Incra cria esse assentamento, mas vem um despacho falando que talvez tenha que revogar a portaria, a gente percebeu um aumento na escalada desses discursos contra [as freiras]”, diz.
Irmã Jane aponta cruz com os nomes dos trabalhadores rurais mortos em Anapu (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Para irmã Jane, as ameaças são uma reação à criação do assentamento Dorothy Stang e de outros dois anunciados recentemente na região, o Mata Preta e o Mata Verde. “Como nos últimos meses consolidou quase 24 mil hectares de terra nas mãos do povo, esses homens ficam doidos, porque pensaram que o [presidente Jair] Bolsonaro ia virar a mesa e eles iam receber essas terras de volta, mas não é possível, porque é tudo feito na Justiça”, afirma.
O procedimento de criação do PA Dorothy Stang foi aberto em novembro passado, após sentença da Justiça federal atender um pedido do MPF (Ministério Público Federal). Fontes ouvidas pela reportagem apontam possível pressão política no caso e que haveria um incômodo especialmente pelo uso do nome da religiosa assassinada em 2005.
As defensorias públicas da União e do Pará encaminharam ao Incra recomendação para que a portaria de criação do assentamento não seja revogada. A medida segue vigente, mas, na prática, sem efeito, já que os passos seguintes, como o processo de seleção das famílias, estão paralisados.
À Repórter Brasil, o Incra afirma que a portaria foi publicada sem “o devido rito processual” e que o mesmo erro foi identificado em outras 12 publicações. Desde 2020, a criação de um assentamento deve ser proposta por uma das 29 superintendências regionais, autorizada pela Diretoria de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamento e submetida à aprovação da presidência do Incra. A autarquia, contudo, não explica qual seria o equívoco ocorrido no processo em Anapu (veja o posicionamento na íntegra).
Ameaças
Às margens da rodovia Transamazônica, Anapu tem apenas 29 mil habitantes, mas área superior ao Qatar, ou mais de duas vezes o tamanho do Distrito Federal. Os lotes 96 e 97 estão dentro da gleba pública federal Bacajá, às margens do rio Xingu e a cerca de 70 km da área urbana de Anapu. A criação do assentamento no local enfureceu os opositores da reforma agrária.
Além do pastor Abimael Silva, as intimidações partiram também do ruralista Silvério Fernandes, ex-vice-prefeito de Altamira (2005-2012) e coordenador regional da Federação da Agricultura do Estado do Pará. Ele foi um dos principais cabos eleitorais do presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, quando tentou se candidatar a deputado estadual, mas teve o registro negado pela Justiça eleitoral.
Na troca de áudios, Fernandes acusa a irmã Dorothy de incentivar “invasões de terras” na década de 1980, e diz que o trabalho dela foi sucedido pelo padre Amaro e pelas irmãs Katy e Jane. “Essas duas fazem esse inferno em Anapu, juntamente com [os servidores do Incra] Danilo Hoodson e Danilo Lima. Precisamos acabar com isso [o assentamento Dorothy Stang]”, conclui Fernandes, que comandou uma campanha de acusações e difamação contra o padre Amaro, em 2018 – ofensiva que levou ao afastamento do religioso da luta pela reforma agrária na região.
Já Silva acusa os servidores de corrupção e incompetência e diz que o Incra age de forma irresponsável na região. “Eu não sei de onde colocaram esses caras aqui, só sei que foram plantados junto com essas freiras americanas (…). Não é invadindo a terra do povo, colocando em conflito grileiros contra cidadãos de bem, não. Precisa da ajuda do povo para resolver isso, de quem tem poder e mandato”, diz ele no áudio.
Silvério Fernandes (à esq.) é um dos principais aliados de Bolsonaro na região de Altamira (Foto: Reprodução/Faepa)
A reportagem tentou contato com Silva e Fernandes por telefone, email e redes sociais, mas não obteve retorno.
Os dois servidores registraram boletins de ocorrência na Polícia Federal (PF) e reportaram as ameaças ao Incra. A superintendência do órgão em Santarém (PA) encaminhou o caso à PF e ao MPF para apuração.
“O nosso ‘erro’ é trabalhar dentro da lei”, diz Hoodson, que é servidor concursado desde 2006 e alega sofrer as ameaças por ter iniciado os estudos para criação do assentamento. Ele lembra que registrou outro boletim de ocorrência por ataques sofridos em 2019, mas que não viu avanço nas investigações.
Ataques em série
Apesar das ameaças, a irmã Jane ressalta que os agricultores são os que mais correm riscos. “De mês em mês os camponeses são atacados por pistoleiros mascarados que passam a noite inteira aterrorizando e dizendo que vão chegar mais grupos para acabar com todo mundo. Falam muito das irmãs, mas quem está sendo atacado é o trabalhador do lote 96”.
Em maio, homens encapuzados e armados incendiaram duas casas do Lote 96, alegando ação de reintegração de posse – não havia, porém, qualquer ordem judicial. Após o ataque, a Justiça determinou reforço da Polícia Militar por 30 dias, mas as tropas apareceram apenas em algumas ocasiões, segundo os moradores. Em junho foi registrado outro ataque a tiros.
Nas madrugadas seguintes ao ataque mais recente, que destruiu a escola, um drone sobrevoou o assentamento, diz o agricultor Lima. Para ele, isso serviria para localizar os moradores para futuras agressões.
“As pessoas aqui estão inseguras e com medo. Elas não se sentem à vontade de estar na propriedade e de produzir. Tem gente com pressão alta, problemas de coração e depressão por causa do conflito”, conta Deise Oliveira, que é pesquisadora do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da UFPA (Universidade Federal do Pará) e está hospedada há mais de um mês no Lote 96, a trabalho.
Ela diz que pegadas localizadas por moradores parecem indicar o envolvimento de quatro pessoas no ataque à escola – duas estariam a cavalo e outras duas, a pé. Moradores afirmam ainda que equipes das polícias Civil e Militar só chegaram ao local quase 12 horas após o incêndio.
Sucessor de Dorothy, padre Amaro foi alvo de uma campanha de difamação e teve de se afastar das ações pela reforma agrária na região (Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil)
Procurada, a Segup (Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará), que responde pelas polícias estaduais, diz que o caso está sendo apurado, mas ressalta que a área é de competência federal. A pasta não comenta sobre as investigações dos ataques ocorridos em maio e junho nem se suspeitos foram identificados.
A Segup diz que a PM faz visitas periódicas ao local para acompanhar uma liderança incluída no programa estadual de proteção. A pasta refuta os moradores e diz que os policiais estiveram no assentamento por 30 dias após o ataque de maio, mas não cita datas. A secretaria afirma ainda que “a área não dispõe de estrutura para alimentação, higiene básica, abastecimento de viaturas e acomodações, o que torna a permanência ininterrupta inadequada para a tropa”.
O MPF solicitou providências à Segup e à Polícia Civil e pediu policiamento ostensivo no local por 15 dias. Já o Incra descarta a necessidade de acionamento da Polícia Federal no caso, uma vez que a Delegacia de Conflitos Agrários da Polícia Civil de Altamira investiga o ataque.
“A área do Lote 96 é marcada por conflitos, com queima de casas e trabalhadores ameaçados. Esperamos que seja garantida a segurança dessas famílias”, diz a defensora pública estadual Bia Albuquerque. “Anapu é violenta. Mataram vários trabalhadores, não só a Dorothy. E os casos nunca são resolvidos”, lembra Jane.
Por Fernanda Canofre, na Repórter Brasil
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