E a mula falou

Leia mais

Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
E por cinco mil? Foi aí que Chicão balançou. Cinco mil é uma grana preta

Epístola, a mula do Chicão da Sá Neném, é um quadrúpede quase humano, mais educada do que muito bípede. Foi batizada com esse nome porque o Chicão ouviu durante uma missa e achou bonito. “Epístola é um nome chique pra minha mulinha”, disse ele aos botões da sua surrada jaqueta de couro no dia em que decidiu batizá-la.

Chicão fazia da boa Epístola, amiga e companheira, a transportadora de frutas, verduras e legumes que colhia no sitiozinho onde vivia, nas cercanias da cidade. Equipava-a com uma cangalha e dois balaios cheios e levava a carga, todo sábado, para sua banca na feirinha do Largo da Matriz. Lotada de banana, repolho, tomate, alface, quiabo, agrião, taioba, laranja, limão, mamão, abóbora, chuchu, salsinha e cebola, a banca se esvaziava rapidamente, porque Chicão era esperto: vendia tudo mais barato do que os outros produtores. A mulinha e ele voltavam pra casa felizes. Ele, com os bolsos cheios das vendas do dia. Ela, com a carga leve dos balaios agora vazios.

A cidadezinha toda se admirava com a amizade do Chicão com sua Epístola, que ele tratava como gente. Conversava com ela. Dava conselhos, ralhava às vezes, mas sempre com carinho e respeito.

Certo dia Chicão se viu balançado. Seu Alcebíades, fazendeiro muito rico, chegou até ele na banca da feirinha e perguntou se não vendia a mula. Chicão respondeu que não, “de jeito nenhum, o senhor vê que eu preciso muito dela. Não posso vender ela não”. “Nem por dois mil?” Aí Chicão parou um pouco pra pensar. “Dois mil? Não senhor, vendo não”. “E por cinco mil?”. Foi aí que Chicão balançou. “Cinco mil é uma grana preta. Dá pra comprar outra mula e ainda sobra ao menos três mil”, ele pensou.

Pensou e vendeu. Com o coração meio partido, mas vendeu.

Sentiu que a mulinha não gostou do negócio, mas cinco mil ninguém a não ser Seu Alcebíades, estaria disposto a investir aquela quantia por um animal de carga.

Só que Epístola não era um animalzinho qualquer, era muito diferente dos outros da espécie, e isso Chicão da Sá Neném ficou sabendo mais ainda dois dias depois, quando Epístola apareceu de manhãzinha na sua porta.

Sem esperar que Chicão dissesse alguma coisa, a mulinha, que só faltava falar, falou. Para espanto do patrão, ela disse:

– Desfaz o negócio, porque eu não quero sair daqui, de jeito nenhum.

Chicão quase desmaiou de susto, mas logo se refez e não teve dúvida: rumou para a fazenda do Seu Alcebíades, pediu mil desculpas, devolveu os cinco mil e voltou pra casa sem dizer mais nada. Não disse a Seu Alcebíades nem a ninguém que Epístola tinha falado. Segredo que guardou para o resto da vida, até porque ninguém ia acreditar, ia pensar que ele estava era ruim da cabeça.

Só eu sei que Chicão e Epístola costumam bater longos papos durante as viagens semanais à feirinha do Largo da Matriz. Sobre o que conversam, depois eu conto. (por Afonso Barroso) 

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

- Publicidade -spot_img

More articles

- Publicidade -spot_img

Últimas notíciais