Conferência abriu diálogo com movimentos sociais, articulou redes solidárias e apontou a agroecologia e o combate às desigualdades como cruciais à justiça ambiental. Mas economicismo se sobrepôs. Será possível resgatar sua ousadia?
O começo dos anos 1990 era tempo de esperança e de ascensão de um movimento ambientalista que atuava na perspectiva da justiça social. “Em 1992, nós estávamos na recém-retomada democrática e o MAB [Movimento de Atingidos por Barragens] tinha sido formado há um ano. Foi nessa época que as comunidades atingidas por barragens de todo Brasil decidiram criar um movimento nacional e fomos para a Eco-92 justamente para defender essa dimensão social do aspecto ambiental”, recorda Leonardo Maggi, membro da coordenação nacional do movimento.
Foi há exatos 30 anos, na cidade do Rio de Janeiro. Joice Ferreira, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), também se lembra com nostalgia desse período, em que ela acreditava que haveria, de fato, esforços globais para reduzir as emissões de carbono e defender o meio ambiente em geral. Depois de tantas Conferências das Partes (COPs) para discutir o tema e alertas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), criado em 1988, a esperança se transformou em desânimo. “Eu acho que a gente tem que reconhecer que há muito discurso vazio. Há muitas empresas que se apropriaram desse discurso [ambientalista] e a própria palavra sustentabilidade hoje é vista com certa reserva”, avalia. A percepção de Maggi é a mesma e ele não vislumbra mudança de cenário. Paulo Artaxo, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores do último relatório do IPCC, vai além: segundo ele, o aumento dos eventos climáticos extremos, como as recentes enchentes em Petrópolis, é a prova de que a sociedade está pagando o preço do poder das grandes empresas sobre os governos. “A ciência tem deixado muito claro, desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, que haveria um colapso climático caso não houvesse mudança nas emissões de carbono”, completa Artaxo.
Passadas três décadas, a Eco-92 não será lembrada com um novo evento de porte em 2022. Em junho deste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizará, na Suécia, uma reunião em comemoração aos 50 anos da Conferência de Estocolmo, o primeiro encontro global sobre os impactos da ação humana sobre o meio ambiente. A cidade do Rio de Janeiro receberá em outubro o Rio+30 Cidades, evento organizado pela prefeitura municipal, que reunirá representantes de diversas esferas da sociedade para pensar o desenvolvimento sustentável local. Já a Cúpula dos Povos, que se configurou como espaço paralelo e alternativo à Rio +20, esta sendo planejada para este ano, mas ainda sem data definida. A Cúpula nasceu motivada pela necessidade de pautar questões ambientais aliadas aos aspectos sociais, um debate que os movimentos sociais viram minguar nos espaços oficiais pós Eco-92.
E que debate é esse?
“A Eco-92 apresenta pela primeira vez a ideia de que a sustentabilidade ambiental está relacionada às questões sociais de classe, raça, gênero e etnia. Esse é o primeiro grande avanço e um marco para o conceito de justiça ambiental”, diz Marcelo Firpo, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e autor do verbete sobre esse tema no Dicionário de Agroecologia e Educação, lançado em abril pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) em parceria com a editora Expressão Popular e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). É a partir daí que o termo ganha força no Brasil, apesar de já estar em voga desde a década de 1970 em outros lugares, com destaque para os Estados Unidos. “Nos Estados Unidos, uma série de problemas de saúde relacionados à poluição começam a emergir e aos poucos vêm à tona por força dos movimentos por direitos civis antirracistas, ecológicos e da contracultura. Isso é muito interessante porque se percebe que os efeitos da poluição química e os problemas ambientais em geral têm cor, têm etnia e muitas vezes têm gênero [porque se agravam em locais de menor infraestrutura urbana]”, argumenta.
É também nas décadas de 1970 e 80 que começam a surgir mais estudos sobre as consequências da degradação ambiental, perda da biodiversidade, contaminação da água e do solo e os buracos na camada de ozônio. Entre os marcos do período, o pesquisador elenca o acidente nuclear em Chernobyl, em 1986, e o lançamento, no ano seguinte, do relatório ‘O nosso futuro comum’, resultado do trabalho da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, que propõe pela primeira vez o uso do termo ‘desenvolvimento sustentável’ como estratégia para equacionar crises ambientais, desigualdade social e crescimento econômico.
Um dos reflexos desse debate no Brasil, de acordo com Firpo, foi a incorporação, na Constituição de 1988, dos direitos dos povos indígenas e quilombolas e do direito à moradia, ainda que a regulamentação dessas conquistas caminhe de forma bastante lenta. Já no pós-Eco-92, o grande legado foi a construção da Agenda 21, documento final da Conferência, que orientava medidas de sustentabilidade do nível local ao global. “No nível municipal, a Agenda esteve muito relacionada com os planos diretores e, nesse aprendizado, emergiu uma perspectiva nova de planejamento urbano e democrático, inclusive com as discussões dos orçamentos participativos”, diz Firpo. Essas iniciativas, continua o pesquisador da Fiocruz, caminhavam na direção de reunir justiça social, sanitária e ambiental à luta por democracia e ao enfrentamento da miséria. “Mas com o passar do tempo, na virada do século 20, elas foram se tornando cada vez menos relevantes”, opina. Para o pesquisador, as Conferências de Meio Ambiente são momentos importantes de resistência e ajudam a reforçar as ideias que estão sendo defendidas, mas com pouco peso em relação a outras forças políticas e econômicas que atuam na direção contrária.
A imposição do econômico
O otimismo que rondava o começo da década de 1990 foi se desfazendo com o passar dos anos e dando lugar à constatação de que, apesar dos muitos esforços, poucas propostas seriam efetivadas. Um marco dessa mudança foi a Rio+20. “Em 2012, temos a confirmação de que a economia, segundo esses espaços oficiais, é o eixo principal. E que ela se sobrepõe, inclusive, ao conceito de desenvolvimento sustentável, que também tem como pilares o social e o ambiental”, diz a coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educação (Fase), Maureen Santos.
Ela entende que nos anos seguintes à Conferência houve um esforço da ONU em promover um maior equilíbrio entre questões econômicas, ambientais e sociais. A prova disso foi o lançamento, em 2015, dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). No entanto, no entender da Fase, as metas propostas são pouco plausíveis, especialmente em função da pouca disponibilidade de recursos por parte dos países que possuem desafios maiores. “A gente criticou muito a construção dos ODS porque são propostas com metas muito básicas ou que trazem uma dimensão muito maior do que o Estado nacional. E os países com menor desenvolvimento precisam ter apoio internacional”, ressalta. O integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Luiz Zarref tem outras críticas. “Os ODS em si não conseguiram projetar de fato uma perspectiva mais próxima do que as organizações têm construído. Eles não mexem em questões estruturais como a reforma agrária, no caso brasileiro, para enfrentar a fome. Não vão ao centro do que é necessário para alcançar esses objetivos. Então, fica um processo meio cíclico de se ter um horizonte aparentemente inalcançável e, por isso, não se investem grandes quantidades de orçamento público, o que, portanto, fica a cabo do mercado. E isso retroalimenta o rebaixamento desses objetivos”, argumenta.
O principal exemplo dessa imposição dos interesses econômicos sobre as pautas ambientais é, segundo vários especialistas ouvidos para esta reportagem, a criação dos mercados de carbono, uma estratégia pela qual os países ricos continuam emitindo os mesmos níveis de gases poluentes, enquanto pagam para a manutenção de áreas verdes em países em desenvolvimento. Eles explicam que, para os desavisados, pode até parecer uma boa ideia. Isso porque, de um lado, a principal contribuição dos países desenvolvidos para o aumento da temperatura do planeta vem da queima de combustíveis fósseis para a geração de energia, enquanto nos países em desenvolvimento com grandes áreas de florestas, como é o caso do Brasil, o maior problema é o desmatamento. O que os críticos argumentam, no entanto, é que as participações desses países no que gera o aquecimento global são desproporcionais. De acordo com o terceiro fascículo do 6º relatório do IPCC, divulgado em abril deste ano, as contribuições de emissões de 1850 a 2019 geradas pela Europa e América do Norte somam 39% do total global. “Existem responsabilidades diferenciadas entre os países e suas contribuições de emissão de gases de efeito estufa. Os países do norte global – Europa, Estados Unidos e até a China – têm uma contribuição histórica muito grande, portanto são eles que têm que ser responsabilizados e pagar a conta. A contribuição dos países não desenvolvidos é muito baixa e são eles que vão sofrer com os impactos mais brutais porque não têm dinheiro para se adaptar e mitigar os efeitos”, avalia Bruno Araújo, geógrafo e membro do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental.
Nesse sentido, Santos critica o que chama de “debate financeiro verde”, que em vez de focar em medidas de redução das emissões de carbono, acaba por criar projetos ditos sustentáveis, mas que foram pouco debatidos com a população e que, via de regra, beneficiarão especialmente as empresas responsáveis e seus financiadores. Como exemplo, ela cita o projeto brasileiro Floresta +, do governo federal, que incentiva comunidades a preservarem áreas de floresta nativa em troca de recursos financeiros. “Esse processo de privatização coloca unidades de conservação nas mãos de empresas para criar uma governabilidade empresarial, [áreas] onde os direitos territoriais deveriam estar assegurados para quem [como as comunidades tradicionais] está no território e vem protegendo a floresta”, lamenta.
E qual é o caminho proposto?
No que diz respeito às mudanças climáticas, para limitar o aquecimento em 1,5 ºC, o relatório mais recente do IPCC diz que é preciso reduzir as emissões de carbono em 7,7% ao ano. Isso significa especialmente produzir energia de outra maneira, aponta o relatório, que indica as opções solar, eólica e por carros elétricos como cada vez mais viáveis economicamente. Emilio La Rovere, professor do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa da Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), diz que os preços da energia eólica e solar já são competitivos para a indústria, mas que o processo de transição energética ainda está bastante lento. Uma saída, segundo ele, é a taxação de quem utiliza energia de combustíveis fósseis, como já é feito em países europeus, Estados Unidos e China.
Rovere concorda com a necessidade de rever padrões de consumo dos países desenvolvidos, mas diz que será difícil conter o desejo de consumo de países emergentes. Também acredita que é preciso rever o modo de produção que estipula prazo de validade dos bens duráveis, a chamada obsolescência programada, mas defende que cada sociedade defina as políticas públicas que adotará para diminuir as desigualdades. “Quando você tem uma concepção de desenvolvimento baseada em grandes projetos, normalmente por trás disso tem interesses econômicos de grupos, de empresas maiores, mais importantes, e que estão interessadas em consumo em grande escala e, portanto, esses empreendimentos visam atendê-las. Agora, o que é importante é ter uma política também voltada para os interesses dos pequenos produtores, sejam agrícolas, sejam pequenas e médias empresas industriais”, avalia.
Os entrevistados ouvidos para esta reportagem que orientam sua atuação pelo conceito de justiça ambiental concordam que a saída para conter as mudanças climáticas passa pela adoção de outra matriz energética, mas ponderam que isso não significa um salvo conduto para implantação de grandes obras que afetem territórios e populações. A produção de energia eólica, por exemplo, requer a ocupação de grandes extensões de terra que podem gerar questões como o impedimento da rota de voo de aves da região por parte dos parques, o zumbido constante para as comunidades do entorno e a desapropriação de comunidades para a instalação dessas estruturas. Conflitos dessa natureza já estão em curso no Ceará, Rio Grande do Norte e na Bahia, segundo o Mapa dos Conflitos de Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. No caso da energia solar, a questão de desapropriação de terras permanece, além da necessidade de obtenção de matéria prima para a confecção dos painéis, como o silício, o que pode se tornar um problema a depender da escala. Para solucionar esse problema, eles destacam a importância da participação popular nos processos decisórios, como forma não apenas de entender os impactos que podem ser gerados, como também discutir quem será beneficiado por um novo polo de geração de energia.
“Mesmo as energias ditas sustentáveis, como a energia hidrelétrica, a energia eólica e mesmo a produção de painéis solares, podem gerar injustiças sociais e ambientais”, lembra Marcelo Firpo, também coordenador do Mapa dos Conflitos, que atualmente reúne 615 registros, pouco mais que o dobro de quando foi lançado, em 2010, com 297 casos. “Dentro de uma estrutura de poder, você pode até fazer a transição para uma sociedade algo mais sustentável. Mas, numa sociedade desigual, quem irá pagar o pato serão aqueles que não estão envolvidos diretamente com os ganhos e com a distribuição desigual do aumento de produtividade”, completa. O pesquisador compara a sociedade capitalista ao metabolismo celular que leva a um câncer: quando as células começam a crescer indefinidamente, esse crescimento precisa ser contido ou o corpo irá morrer.
Um exemplo que ilustra as contradições impostas por soluções que pensem apenas em serem “limpas” é expressa por Leonardo Maggi. “Nós temos barragens no Brasil que alagam milhares de hectares, expulsam centenas de milhares de famílias das suas terras, dos seus territórios, mas, por um critério ambiental, vendem carbono como sendo uma energia sustentável. Nós consideramos isso uma dimensão perversa, injusta. Como uma hidrelétrica, que na sua construção matou pescador e camponês e destruiu a natureza, pode ser remunerada como uma energia sustentável? Pode ser limpa, mas está suja de sangue”, argumenta o integrante da coordenação nacional do MAB. E completa: “É fundamental discutir não só o ambiente que nós queremos, mas quem vai se beneficiar dos resultados”.
Outro debate importante impulsionado pela ideia de justiça ambiental é o papel da produção agroecológica. “Ela tem uma importância histórica no Brasil porque conseguiu reunir em torno, não só do conceito, mas de uma articulação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), uma série de organizações de base, de escala nacional, que fizeram e fazem enfrentamento às iniciativas do capital, principalmente nessa escala territorial. É uma articulação muito importante que liga academia, ONGs e movimentos territoriais”, comenta o integrante da coordenação nacional do MST, Luiz Zarref.
Ele enfatiza a importância de um desenvolvimento que caminhe em direção da soberania popular e fala da contribuição da agroecologia também para “esfriar o planeta”. Como argumento, Zarref cita o fato de esse tipo de produção requerer menos desmatamento para a construção de áreas agricultáveis e manter uma melhor convivência com a natureza, permitindo a conservação da biodiversidade, além de contribuir para a saúde de quem consome e produz alimentos sem agrotóxicos.
A pesquisadora da Embrapa Joice Ferreira tem se dedicado a pesquisar o desenvolvimento de agroflorestas agroecológicas no Pará e também defende essa mudança. Ela entende que pensar formas de melhorar a produtividade dos pequenos agricultores é importante, mas pondera que isso deve ser pensado de maneira sustentável. “Muitas vezes você não vai chegar àquele limite de produtividade, mas vai ser eficiente em termos de independência. Os agricultores tradicionais têm essas características muito importantes de serem menos dependentes de insumo externo, de aproveitar materiais dentro da própria terra”, diz. E ela ressalta que essa não é uma defesa ingênua: em seus trabalhos, a pesquisadora tem argumentado sobre a maior produtividade da agricultura tradicional por hectare em relação às plantações de soja. Ela lembra também da importância da diversificação dos produtos ao longo das estações como uma melhor forma de alcançar esses bons índices.
Ferreira tinha 17 anos quando veio de uma região de Goiás, que atualmente é parte de Tocantins, para o Rio de Janeiro participar da Eco-92 em seu primeiro ano de faculdade em Ciências Biológicas. Passados 30 anos, apesar do desânimo com as poucas ações tomadas por governos e empresas, ela acredita que a semente plantada naquela época gerou frutos e continua sendo fonte de boas ideias e horizontes. “É preciso fazer uma transição para outra forma de economia, outra forma de produção agrícola e agropecuária. Não é porque somos um país em desenvolvimento que estamos isentos de fazer essa busca”, conclui. (Por EPSJV/Fiocruz)
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