Ocupação do território ucraniano elevou ao máximo o índice de idiotia da chamada cultura do cancelamento. Teatro de Gênova desmarcou um festival dedicado à obra do escritor Fiódor Dostoiévski (Divulgação)
Enquanto países ocidentais aderem ao embargo econômico como instrumento legítimo de pressão para que Vladimir Putin desista da guerra contra a Ucrânia, burocratas da área cultural se apressam em censurar artistas russos, que nada têm a ver com a política expansionista do novo tzar. Em outras palavras, a ocupação do território ucraniano elevou ao máximo o índice de idiotia da chamada cultura do cancelamento.
Uma universidade de Milão, por exemplo, chegou a suspender um curso sobre a obra de Fiódor Dostoiévski, e um teatro de Gênova desmarcou um festival dedicado à obra do grande escritor. Enquanto isso, numa demonstração pública de ignorância e anacronismo, cidadãos de Florença exigiram da Prefeitura local a derrubada de uma estátua com a qual a cidade homenageia o autor de “Crime e castigo”.
Esse tipo de coisa lembra episódios lamentáveis de perseguição e revanchismo histórico, ocorridos em outros tempos. Nos Estados Unidos, logo após o ataque à base naval de Pearl Harbor, imigrantes japoneses passaram a ser confinados em campos de concentração sob a suspeita de espionagem.
No Brasil, assim que o governo de Getúlio Vargas declarou guerra aos países do Eixo, os idiomas alemão, italiano e japonês foram proibidos em território nacional. Mais que isso, imigrantes foram perseguidos em nome da patriotada, o que resultou em agressões e na depredação de casas comerciais em diversas regiões do país.
Incoerência e estupidez
Anos depois, durante a ditadura militar, a censura federal proibiu a vinda do Balé Bolshoi ao Brasil, bem como a execução de músicas de compositores russos por emissoras nacionais. Sobrou até para o clássico Tchaikovsky, que morrera 24 anos antes da Revolução Bolchevique e cuja obra nada tem de comunista. Agora, o mesmo compositor acaba de ser excluído do repertório da Orquestra Filarmônica de Cardiff, no País de Gales.
Ainda em decorrência da ocupação do território ucraniano, a soprano russa Anna Netrebko viu-se obrigada a deixar a Metropolitan Opera, em Nova York, e a cancelar apresentações em outras cidades. Embora tenha se posicionado publicamente contra a guerra, ela não teria sido suficientemente dura ao criticar as ações do presidente Putin.
Enquanto isso, na Alemanha, o regente Valery Gergiev perdeu o cargo de maestro-chefe da Filarmônica de Munique por não ter se manifestado publicamente contra a guerra. Além disso, ele teria feito declarações controversas sobre a anexação da Crimeia. Episódios como esses tendem a se repetir, já que o ódio e a barbárie têm uma capacidade de contágio superior à do bem e à da própria cultura.
Em tempos sombrios, o direito à neutralidade é o primeiro a ser cancelado. Todo mundo tem que ter opinião formada a respeito de tudo, mesmo sem entender nada. Felizmente, durante a Segunda Guerra, isso não impediu que os Estados Unidos descem asilo político a alemães que discordavam de Hitler. Já a União Soviética de Stálin não perdoou as comunidades germânicas que moravam na antiga Tchecoslováquia muito antes da ocupação do país pelos nazistas.
Suspender a participação russa em eventos oficiais, como campeonatos esportivos e festivais de arte, é até certo ponto justificável, com vistas a pressionar Putin pelo fim do conflito na Ucrânia. Contudo, condenar ao ostracismo os artistas e a cultura de um povo é, no mínimo, uma atitude que contraria o próprio discurso em nome da paz. Na verdade, a incoerência e a estupidez são a verdadeira natureza do cancelamento, não importa o motivo alegado pelos canceladores de plantão.
Originalmente na Dom Total
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!