Erveiros e benzedeiras na linha de cura

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Livro História da experiência das epidemias no Brasil investiga como a medicina higienista impôs, com a desmagificação do corpo, a desautorização das artes médicas de matriz oral. E como esses saberes sobreviveram nas brechas da sociedade colonial

O corpo é muitas coisas. Não há nada de “natural” no corpo. Ele é compreendido de muitas maneiras, dependendo de quem o pensa. Para algumas culturas ele é um receptáculo das almas: pode baixar nele a alma humana, mas também a de um deus, a de um jaguar, a de uma árvore. Para outras, uma espécie de ressonância do universo: ele espelha o “clima”, como para a astrologia, que refere a melancolia à passagem de Saturno no céu. Para o ocidente colonial, o corpo é um conjuntinho de peças e engrenagens – e pouca coisa mais que isso. Por quê?

Como foi possível às culturas não-modernas conceber o corpo cintilando junto às estrelas? Ou então como uma matéria sempre disposta a ser atravessada por outras entidades e agentes a um só tempo cósmicos e mundanos? E, quando a morbidez atinge esse corpo, como ela é percebida, em função do corpo que aparece a cada cultura? 

A medicina, entre as artes do corpo, se altera junto com o modo como o percebemos. Por exemplo, quando se vê diante de epidemias: as epidemias em determinada época na Europa, antes da revolução copernicana, eram compreendidas em relação com a qualidade das interações entre corpo e as causas meteorológicas. Mas a imagem da influência dos fenômenos da atmosfera na produção das epidemias logo entra em declínio com o cartesianismo. Então volumes atomizados, nascerão em pouco tempo indivíduos divorciados do sistema de interações cósmicas: o ser humano torna-se organismo. Até esse momento, o colapso epidêmico tinha relação com a perda momentânea do equilíbrio entre o corpo e a dimensão telúrica. Adoecer sinalizava uma crise reversível da natureza, quando o ocaso deixava de exercer justiça às proporções que simpatizavam destino humano e conjunção dos astros.

Essa antiga medicina portuguesa praticada no início do Brasil Império não rivalizava com as práticas de medicina popular de mateiros e benzedeiras de origem bantu e nagô, é o que nos vem mostrar o estudo do professor e filósofo Claudio Medeiros, lançado recentemente pela GLAC edições sob o título História da experiência das epidemias no Brasil. Da biografia de Pai Manoel à Cabocla do Castelo (personagem de Machado de Assis) havia uma disponibilidade de práticos da cura, alheios à medicina acadêmica, cujo sucesso popular não é explicado pela carência de recursos para recorrer a diplomados. Algumas perguntas fundamentais assinalarão no livro a tentativa de extrair uma legibilidade das epidemias, e das práticas colonialistas a elas associadas: como a medicina moderna, através do higienismo, buscou neutralizar a prática dos curandeiros, tão arraigada no cotidiano da cura daquela sociedade? Como o conceito de saúde se torna um dispositivo do racismo no século da abolição? Como tudo isso acompanhou a remodelação radical das cidades e a condenação de hábitos “coloniais”? E, afinal, houve relação entre a tendência à universalização da ciência médica higienista, e a censura dos rituais de verdade médica ligados a cultos do sagrado popular?

As respostas a estas perguntas ajudam a compreender a experiência das epidemias na história do Brasil que a obra de Medeiros explora. Essa experiência compreende, ao mesmo tempo, a história da continuidade do racismo na Primeira República e nos dias de hoje, bem como aquilo que o autor classifica como regime de visibilidade das cidades. Essa experiência compreende também os modos pelos quais as populações em permanente estado de marginalização resistiram e ainda resistem às forças repressoras e higienistas que atacam os seus saberes-fazeres com as instituições modernas, importadas para o Brasil no período analisado.

Até meados do século XIX, segundo Medeiros, o que se passa em algumas províncias não difere do que ainda vemos em muitas bandas do Brasil: a presença de práticas de cura que ocorrem nas frestas da colonialidade do saber, do desabamento cognitivo e da quebra das tradições sofridas pelos povos escravizados. Hoje, na cultura das ruas cariocas, isso vai das rezadeiras da Baixada Fluminense a erveiros e mateiros do Mercadão de Madureira, há vovós e pretos velhos em terreiros de Umbanda subúrbios adentro; “parteiras de dom” e a pajelança cabocla amazônica no Norte e Nordeste, que tratam “doenças naturais” com benzeções e prescrevem “remédios da terra”, isto é, ervas, raízes, folhas, óleos e outros produtos da vasta farmacopeia popular.

Na modernidade europeia, o corpo passa a ser entendido como mecanismo desmagificado (como nas descrições que Hobbes faz do coração como mola e dos nervos como cordas, ou nas de Descartes, que compara o coração a um relógio). O corpo, antes compreendido como microcosmo, agora como mecanismo desmagificado, passará a ser constituído dentro do dispositivo sanitarista, que sonhou banir as práticas de cuidado não apenas hipocráticas, como também dos erveiros e benzedeiros negríndios. Com História da experiência das epidemias no Brasil, percebemos o surgimento da ideia de higiene como categoria moral, que servirá de amparo para a classificação racial e positivista dos saberes perigosos, pertencentes a classes racializadas, tidas como anti-higiênicas, e que deveriam, por extensão, serem expulsas da nova urbanicidade burguesa.

Por toda parte, em nossa época, o pensamento sobre o corpo parece ter ganhado centralidade nas discussões políticas, estéticas, econômicas. E, no entanto, como é difícil não dar ao corpo uma conotação “naturalizante”, que o toma como uma evidência. Como se a palavra corpo não significasse, em cada momento histórico, uma coisa distinta. Claudio Medeiros nos oferece, nesse livro, uma chance de conceber o corpo de uma outra perspectiva. De que maneira as dinâmicas de forças macro e micropolíticas alteram o corpo historicamente? E como esse corpo, que é sempre um corpo histórico, possibilita certos dispositivos que organizam a nossa vida? Como as nossas práticas de cuidado, como as forças repressoras, como a vida histórica inventa um corpo e se organiza em torno dele? Algumas respostas a essas perguntas fundamentam o valor crítico que História da experiência das epidemias no Brasil possui para todos aqueles que têm o corpo no centro de suas reflexões hoje. (Por )

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