Como a cultura do cancelamento e a conformidade ideológica ameaçam a democracia
Uma voz silenciada
Ulrike Guérot, uma das principais especialistas em integração europeia, viu sua carreira de 30 anos ser abalada por críticas à governança da União Europeia, às políticas de austeridade e ao conflito na Ucrânia. Em entrevista a um programa internacional, ela relatou como a cultura do cancelamento e a conformidade ideológica a levaram a ser demitida de instituições renomadas, como o Conselho Europeu de Relações Exteriores e a Universidade de Bonn. Sua história expõe um problema sistêmico: o encolhimento do espaço para discordância na academia europeia, em um momento em que a democracia enfrenta desafios sem precedentes.
O declínio da liberdade acadêmica
De crítica á persona non grata
Ulrike Guérot dedicou décadas ao estudo da integração europeia, lecionando em Paris, Berlim e Viena, e ocupando cargos em think tanks como o German Marshall Fund. Nos anos 2000, suas críticas à intervenção no Iraque, à austeridade pós-crise bancária de 2008 e à disfuncionalidade da governança europeia começaram a gerar desconforto. Em 2013, foi demitida do Conselho Europeu por artigos que apontavam falhas estruturais da UE. “Eu via o ressentimento populista crescendo, mas questionar isso era inaceitável”, afirmou.
O pretexto do plágio
Em 2021, já na Universidade de Bonn, Guérot publicou livros críticos sobre os lockdowns da Covid-19 e o conflito ucraniano. A resposta foi uma acusação de plágio, baseada em “pequenos erros” em um livro antigo, que ela considera um pretexto. O caso, agora na segunda instância judicial, reflete uma tática recorrente: desacreditar acadêmicos não conformistas com alegações de desonestidade, evitando debater seus argumentos. “Encontram 1,9% de erros em 10 mil páginas e chamam isso de plágio”, criticou.
A cultura do cancelamento na Europa
Um corredor de opiniões cada vez mais estreito
Guérot observou que, desde a crise financeira de 2008, o espaço para debates na Europa vem encolhendo. Durante a crise dos refugiados, questionar políticas migratórias era rotulado como “racismo”. Na pandemia, críticas aos lockdowns eram tachadas de “negacionismo”. Com a guerra na Ucrânia, análises sobre a expansão da OTAN ou os interesses russos são vistas como “propaganda pró-Putin”. “O objetivo não é rebater argumentos, mas destruir reputações”, lamentou.
Padrões duplos e lawfare
A acadêmica destacou a aplicação seletiva de normas. Enquanto ela foi demitida por erros mínimos, figuras como Robert Habeck, com 48% de plágio em sua dissertação, foram absolvidas. Casos semelhantes, como o de Marine Le Pen, barrada de eleições por “corrupção”, contrastam com a impunidade de Ursula von der Leyen, reeleita presidente da Comissão Europeia apesar de condenações judiciais. “Um sistema legal com padrões duplos não é democrático”, afirmou Guérot.
Guerra, propaganda e o fim do diálogo
A narrativa do bem contra mal
Guérot argumentou que a Europa vive um estado de “guerra permanente”, seja contra a Covid, a Rússia ou inimigos internos, como populistas. Essa mentalidade, amplificada por uma mídia homogênea, transforma debates em batalhas morais. “Se você analisa os interesses russos, é acusado de traição”, disse, citando Anne Morelli, cuja obra sobre propaganda de guerra descreve como narrativas são fabricadas para justificar conflitos.
A traição dos ideais europeus
A expulsão de artistas e acadêmicos russos, as sanções contra cidadãos sem base legal e a renacionalização da ciência e das artes violam os princípios do Iluminismo europeu. Guérot lembrou que a UE foi construída sobre a cooperação franco-alemã e a superação do nacionalismo, mas hoje ergue barreiras contra a Rússia, ignorando acordos históricos, como os que garantiam a não expansão da OTAN. “Desperdiçamos 70 anos de integração europeia”, lamentou.
O silêncio da academia e da sociedade
Uma cultura de intimidação
A intimidação sistemática, com bots e trolls nas redes sociais, silencia vozes críticas.