Evasão fiscal ou roubo? Haverá impunidade mesmo com a divulgação dos documentos do Pandora Papers?

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Existem medidas que podem ser tomadas para quebrar o sigilo bancário. Basta vontade política

No início de outubro, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, junto com vários parceiros da mídia, publicou os Pandora Papers, que revelaram uma pequena parte dos trilhões de dólares escondidos em paraísos fiscais por políticos, autoridades e celebridades.

Esses vazamentos nos dizem, mais uma vez, que o sigilo bancário está no cerne da economia global e age como veneno nas veias de nossos sistemas políticos. Essa corrupção institucional não torna o progresso impossível, mas significa que as respostas à crescente revolta da opinião pública com as revelações dos vazamentos só serão respondidas se o assunto for levado aos tribunais. Os legisladores devem criar leis que garantam a responsabilização contínua dos principais atores desses abusos – incluindo eles próprios.

Os ativos escondidos e as receitas secretas agora divulgadas representam apenas uma pequena parte do que está em um disco de  quase 3 terabytes de documentos de 14 empresas de serviços profissionais diferentes em todo o mundo. E os documentos no total tocam em apenas uma pequena fração dos estimados US $ 11 trilhões em ativos não declarados mantidos no exterior em todo o mundo, gerando perdas fiscais anuais de 182 bilhões de dólares.

Os nomes individuais e os casos específicos podem fazer mais para chamar a atenção do público do que esses números inimagináveis: 35 líderes mundiais, do passado e do presente; mais de 300 funcionários públicos de quase 100 países; mais de 100 bilionários, além de algumas celebridades.

Os Pandora Papers chamou a atenção do público e da mídia à vergonhosa questão do sigilo bancário. Cada vazamento anterior (incluindo LuxLeaks, Panama Papers e Paradise Papers) gerou um aumento semelhante de interesse. E, enquanto esse pico passa, o nível subjacente de engajamento público e preocupação dos legisladores tem permanecido cada vez mais alto.

O desafio é converter esse engajamento e preocupação em ação efetiva. Como disse o pesquisador e escritor Zuhumnan Dapel, o que podemos fazer “quando os responsáveis ​​pelas ferramentas – as políticas e a força de vontade do governo para impedir a rede de dinheiro sujo – parecem estar entre os principais beneficiários do status quo? ”

Sigilo bancário – o desafio central

As últimas duas décadas testemunharam mudanças substanciais no contexto da política internacional. Com a criação da Rede de Justiça Tributária, em 2003, começamos a traçar a plataforma de políticas conhecida como ABC da transparência tributária:

A) organizar a troca automática de informações financeiras – de forma que cada autoridade tributária seja informada das contas bancárias estrangeiras de seus próprios contribuintes, tornando a simples evasão fiscal muito menos generalizada.

B) para que haja transparência sobre a propriedade e beneficiário, exigir registros públicos de seres humanos reais por trás de empresas, trustes e fundações, para acabar com os prejuízos causados ​​pela propriedade anônima.

C) exigir relatórios país a país, uma medida simples mas que garante que as empresas multinacionais publiquem dados que possam revelar a extensão da transferência de lucros.

Cada elemento foi originalmente descartado como utópico e irreal. Mas as mudanças de atitude começaram com os esforços do movimento global de justiça tributária e o ímpeto para o progresso após o colapso financeiro de 2008. A cúpula do grupo de países do G8 em 2013 deu amplo apoio aos três elementos de princípio, e medidas práticas foram tomadas para a introdução de cada um deles.

Desde 2012, o Painel de Alto Nível sobre Fluxos Financeiros Ilícitos para fora da África, apoiado pela União Africana e a Comissão Econômica para a África, tem trabalhado para levantar apoio político para acabar com esses abusos em todo o continente e além. O relatório final do painel estabeleceu a escala dos fluxos ilícitos e os danos que eles podem causar à governança. Também confirmou a centralidade das medidas ABC e lançou as bases para a adoção de uma meta global para conter os fluxos ilícitos como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

O painel também forneceu uma importante declaração de definição, reconhecendo que a característica comum dos fluxos financeiros ilícitos é a ocultação. Isso é verdade quer estejamos preocupados com fluxos ilícitos relacionados com impostos (ocultação de abusos fiscais de empresas multinacionais ou de indivíduos com interesses offshore); com outros fluxos comerciais (ocultando o domínio do mercado, por exemplo, ou a verdadeira origem dos investimentos); ou com a lavagem de produtos do crime – desde o tráfico de drogas e pessoas até o suborno de funcionários públicos e o roubo de bens públicos.

O sigilo bancário é, portanto, o elemento facilitador crucial para fluxos ilícitos de capitais. Um engajamento  consistente no desmantelamento é fundamental para garantir a responsabilização e uma redução controlada dos abusos fiscais e de outras atividades criminosas.

Lobos guardando galinhas?

A mudança foi dolorosamente lenta, no entanto. O lobby de empresas multinacionais e operadores, banqueiros, advogados e contadores – sem dúvida prejudicou os esforços para trazer transparência ao sistema financeiro global. Além disso, as decisões sobre as principais reformas políticas são amplamente tomadas na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou organizações relacionadas. Nossa pesquisa mostra que isso é altamente problemático.

O Índice de Sigilo Financeiro, publicado pela primeira vez em 2009 e atualizado a cada dois anos, avalia as jurisdições com uma ampla gama de critérios verificáveis ​​objetivamente (incluindo o ABC). O índice de 2020 viu o Reino Unido ultrapassar a Suíça,  com as Ilhas  Cayman.  A Grã-Bretanha e sua rede de Territórios Ultramarinos e Dependências da Coroa lidera lidera em quantidade de esconderijos fiscais.

No total, os países da OCDE e suas dependências são responsáveis ​​por cerca de metade de todos os riscos de sigilo financeiro, de acordo com o índice. Enquanto isso, o Estado da Justiça Fiscal 2020 avalia que o mesmo grupo é responsável por 59% dos US $ 182 bilhões que o mundo perde com a evasão fiscal offshore privada todos os anos. O Dr. Dereje Alemayehu da Global Alliance for Tax Justice resumiu as preocupações:

“Confiar na OCDE para estabelecer regras [fiscais] globais… é como confiar que uma matilha de lobos construirá uma cerca ao redor do seu galinheiro.”

São dos membros da OCDE que saem as práticas caseiras de evasão fiscal expostas pelos Pandora Papers. Em muitos países, as elites, incluindo os legisladores, estão entre os principais abusadores do sigilo fiscal.

Como escreveu a professora Brooke Harrington, a principal socióloga que estuda a indústria de ocultação de riquezas, o sigilo fiscal oferece “algo ainda mais atraente e perigoso [do que a evasão fiscal], que é a evasão legal em geral. Para os que já são ricos e poderosos, o offshore oferece uma espécie de superpotência: a impunidade. ”

Então, quem guarda os lobos?

Garantindo a responsabilização

Felizmente, temos as respostas de que precisamos. Conhecemos os principais atores e jurisdições responsáveis ​​pelo sigilo fiscal. Conhecemos os mecanismos que podem garantir responsabilização consistente, em vez de depender de vazamentos esporádicos. E no início deste ano, um novo painel de alto nível – o Painel de Responsabilidade Financeira, Transparência e Integridade (FACTI) da ONU – apresentou recomendações precisamente para as mudanças abrangentes que são necessárias.

Recomenda a plena implementação do ABC da transparência tributária, reconhecendo as falhas até o momento e como os países de baixa renda são particularmente excluídos dos benefícios.

Os arranjos para a transparência da propriedade são fundamentais. Os registros públicos da pessoa natural (o ser humano real) por trás de cada entidade legal acabariam com a necessidade de vazamentos – e faria os mercados funcionarem melhor, bem como os impostos e outras regulamentações. Um passo poderoso seria responsabilizar os corretores, exigindo a divulgação dos proprietários beneficiários de todas as estruturas que os advogados e outros ajudem a estabelecer e impondo penalidades criminais pelo não cumprimento.

O Painel FACTI também define as reformas arquitetônicas globais para acabar com a impunidade de fluxos financeiros ilícitos.

Além de um registro global de ativos, para juntar os registros nacionais de propriedade, três elementos são essenciais. Um centro de monitoramento de direitos tributários – originalmente proposto no livro The Uncounted – coletaria e publicaria dados em nível de país para fornecer responsabilidade anual para as jurisdições que fornecem sigilo e promovem os abusos fiscais. Uma convenção da ONU sobre impostos forneceria a base para a entrega total do ABC, incluindo a responsabilização dos estados pelo cumprimento desses compromissos. Também poderia estabelecer o espaço para negociações globalmente inclusivas no futuro por meio de um órgão tributário intergovernamental.

A nível técnico, as soluções estão ao nosso alcance. Restam apenas derrubar as obstruções políticas – as das elites e das organizações que lucram com o abuso.

No filme de 1995 The Quick and the Dead, o vilão John Herod controla uma pequena cidade e seus cidadãos temerosos. O personagem resume a ameaça: “Como eu sempre digo – coloque uma raposa no galinheiro e você terá frango no jantar todas as vezes.”

Se nós, cidadãos do mundo, não queremos isso todas as vezes – mais vazamentos, mais indignação e impunidade contínua – então a agenda é clara. É hora de justiça tributária global.

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