EXISTÊNCIA POLÍTICA E (R)EXISTÊNCIA SOCIAL

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Ronnielle de Azevedo-Lopes1

Há uma descrença2 generalizada do cidadão/ã brasileiro/a em relação ao significante política no país. Tal descrença, aprofundada por sucessivos escândalos de corrupção e certa judicialização da gestão pública, gerou uma profunda insatisfação em relação à política. Tornou-se corriqueiro ouvirmos expressões caricaturescas no Brasil acerca dos “políticos” e da política: São todos corruptos; Não contribuem em nada para mudar a vida do povo; Ganham muito e não trabalham; São todos iguais… Outras frases ainda mais carregadas: Eu não preciso de política; Política, seria melhor viver sem ela!; Eu odeio política, a política me enojaPolítica e religião não se discutem (ou Política, religião e futebol não se discutem). Estes enunciados apontam à uma perspectiva estritamente negativa para o termo “política”, que tem como principal consequência o afastamento do cidadão/ã das decisões coletivas, o fomento do desinteresse social e o crescimento de um pensamento de caráter reacionário que demanda, entre outros absurdos, um Estado ditatorial. Mas, o que seria política para além dessa descrença?

O termo política é ainda aplicado, frequentemente, para designar as ações do Estado e de suas instituições: “políticas públicas”, “política sanitária”, “política de controle de natalidade”, “política ambiental”, “política educacional”, “política trabalhista”, “política de preços”, “política de segurança pública”, entre outras. Designações que, para, digamos, o cidadão comum, pertencem aos discursos e a operações exclusivas de especialistas ou a “políticos profissionais” vinculados à lógica partidária. Entretanto, a potência da política diz respeito a todos/as partícipes da sociedade.

A política faz parte da nossa existência social como cidadão/ã. Não participar da política implica na perda de uma dimensão (ou condição) imprescindível do nosso ser-acontecer no mundo ocidental: a cidadania, a pertença ativa a uma comunidade de direitos. No Livro I de sua obra “A Polítika”, Aristóteles (384-322 a.C.) afirma que a melhor forma de existência é a existência política. Pois, segundo a argumentação do filósofo, a política diz respeito à esfera pública que se pauta essencialmente nas relações entre iguais em vista do bem comum, a felicidade da comunidade: “Se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política” (ARISTÓTELES, 1997, p. 13). Participar da política é construir o bem comum de uma comunidade, assentamento, aldeia, cidade, Estado ou outra coletividade organizada. Nesta perspectiva, se voluntária, a falta de participação política é a maior de todas as aberrações, a negação de nosso ser-acontecer no mundo. De acordo com o poema “Analfabeto político” atribuído ao dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956):

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política, nascem a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Todavia, quem é esse analfabeto político? O analfabeto político denunciado no poema de Bertolt Brecht não é o mesmo que político analfabeto, não é um político com nenhum ou pouco letramento. O analfabeto político é o “cidadão” que reduz (ou mesmo anula) a sua cidadania, se eximindo de sua participação política. Por mais espanto que possa causar, o analfabeto político pode ser um professor, um médico, um “doutor” ou um analfabeto funcional. O analfabeto político é o cidadão que voluntariamente abandona sua cidadania ao desconhecer que todas as relações e vivencias sociais são relações políticas. Em seu discurso, o analfabeto político produz efeitos de conformismos e desinteresse coletivo. Este analfabeto “não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos”. Tampouco percebe que toda a organização social que está inserido depende de deliberações políticas. Brecht chama o analfabeto político de “burro”, um ser bestial. A imagem do “burro” diz daquele que, a despeito da força que possui, se acostumou com a brida e com os arreios, com a servidão, no caso do analfabeto político, voluntária. Não obstante, o analfabetismo político é realmente voluntário? Como nos tornamos servos da imbecilidade? Por que abandonamos a força/potência da cidadania?

Começamos a domesticar o cavalo, desde o momento em que ele nasce, preparamo-lo para nos servir e não podemos glorificar-nos de que, uma vez domado, ele não morde o freio e não se empina quando o esporeamos, como se (assim parece) quisesse mostrar à natureza e testemunhar por essa forma que serve não de boa vontade mas por ser obrigado a servir… Todas as coisas que têm sentimento sentem a dor da sujeição e suspiram pela liberdade; as alimárias, feitas para ser virem o homem não são capazes de se habituar à servidão sem protestarem desejos contrários (LA BOÉTIE, p. 19).

Segundo La Boétie, renunciamos a liberdade ao delegarmos a outrem a governabilidade incondicional. Passamos a achar que política é uma coisa de poucos que deve nos representar, de alguns “eleitos” vocacionados ao mando e desmando na sociedade. Como desdobramento, a função do “cidadão” seria servir. No entanto, a política não diz respeito apenas aos “políticos profissionais”: gestores públicos, governantes, parlamentares, sindicalistas, secretários de governo… presidente. A política em sua potência diz respeito a todos/as os/as cidadãos/as.

As palavras cidadão e política se copertencem na realização da cidade (pólis). Cidadão/ã (civĭcus, civis) deriva do latim civĭtas, cidade, condição que permite a cidadania1. Portanto, cidadão/ã diz-se daquele que pertence intrinsecamente à cidade, àquele que recebe a sua condição ao participar do destino de uma cidade, de uma comunidade política, de um coletivo político. Já polítika é um termo grego que etimologicamente deriva de outro pólis, comunidade dos cidadãos, cidade-estado; e significa a arte de governar a comunidade política, a cidade. Política é a governabilidade que acontece na cidade (pólis, ciuĭtas, urbs) e para cidade por meio dos cidadãos/ãs.

Cidadão, cidadania1 e política têm a mesma razão de ser: a cidade, a comunidade política. Para os gregos, cidadania significava ser político, participar da política, interagir com a política. A palavra grega para cidadão era justamente polítiko, aquele que participa do destino de sua cidade (pólis). Isto é, faz política.

Não obstante, a inserção do cidadão em sua comunidade política não deve ser meramente passiva, obediente e servil. Tal fato não seria participação. Participar é fazer-acontecer-ser parte, efetiva e ativamente da comunidade política; é se envolver, se engajar, fiscalizar e interagir com a sua cidade. Participar do destino da cidade é conscientizar-se/perceber-se criticamente de sua importância como cidadão/ã neste mesmo destino. Esta dinâmica implica em se inserir ativamente e agir na construção de uma cidade/comunidade mais acolhedora e justa. Os/as cidadãos/ãs

oprimidos a quem cabe realmente lutar por sua libertação juntamente com os que com eles em verdade se solidarizam, precisam ganhar a consciência crítica de opressão, na práxis desta busca… A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-los. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido. Desta forma, esta superação exige a inserção crítica (FREIRE, 1970, p. 37/8).

Deste modo, a primeira experiência de ser “político” é ser cidadão. Ser cidadão é ser socialmente partícipe e vocacionado à política. Em uma linguagem aristotélica, a política enquanto interação e participação coletiva é da natureza do ser humano. A política define o humano como humano: “Essas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social-político, e o homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade” (ARISTÓTELES, 1997, p. 15, destaques nossos). A cidadania se performatiza na ação coletiva e plural do ser humano em uma comunidade, cidade ou Estado, em um coletivo político. As ações-discursos-práticas sociais enunciam a cidadania enquanto participação com/no coletivo:

A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Embora todos os aspectos da condição humana tenham alguma relação com a política, essa pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política (ARENDT, 2003. p. 15).

Mesmo em meio ao mundo tecnicamente estabelecido e automatizado pelas máquinas, segundo Hannah Arendt (1906-1975), de algum modo nas trilhas de Aristóteles, a política é a principal “condição humana”. A política escapa à lógica do espetáculo na sociedade e ao artificialismo das relações, demandando discurso e ação, “voz” e “vez”. O discurso e a ação fazem do ser humano “um ser político” (Idem, p. 11). O que Arendt chama de ação é a própria “condição humana da pluralidade”. A interação coletiva, o debate, o discurso e a ação performatizam a participação plural, é o que articula significação coletiva na política e não à mera aceitação, a obediência civil. Politicamente tudo precisa ser discutido: a ciência, a religião, o esporte, o meio ambiente, a saúde, a segurança, a educação, as questões de classe, de raça, de gênero, de sexualidade… O

problema não é a política, mas a falta de participação política, isto é, a ausência de política. A ausência de política se desdobra na ausência de democracia e, nestes termos, em totalitarismo. A participação política é o que potencializa a cidadania: “Tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido” (ARENDT, 2003, p. 12).

O que chamamos de coletivo – o povo, digamos – só existe na ação, em ato, performativamente. A participação no coletivo como parte do coletivo assegura o bem-estar do coletivo, garantindo minimamente uma vida vivível. O coletivo não é uma totalidade cega, uma unidade, massa ou rebanho; mas, uma pluralidade que requer participação singular e plural. Escapando às considerações de Hannah Arendt, em A condição humana, a ação não é apenas um fazer e um falar. O corpo e o silêncio podem entrar em cena. Manifestações, caminhadas, assembleias populares, movimentos sociais, mesmo quando falta a fala e certos fazeres, o simples estar/ser corpóreo reivindica uma vida mais vivível e menos precária. Neste âmbito, a participação política é sobretudo um ato de resistência à distribuição da precariedade, uma luta constante contra os nivelamentos do poder e sua colonialidade. Lutar politicamente implicar na construção de direitos, de direitos de ser, aparecer e viver socialmente:

Assim, esses conjuntos plurais de direitos, direitos que devemos encarar como coletivos e corporificados, não são modos de afirmar o tipo de mundo onde cada um de nós deveria ser capaz de viver; em vez disso, eles emergem de um entendimento de que a condição da precariedade é diferencialmente distribuída, e que tanto a luta contra quanto a resistência à precariedade têm que estar baseadas na reivindicação de que as vidas sejam tratadas igualmente e que sejam igualmente vivíveis. Isso também significa qual forma de resistência em si, isto é, a maneira como as comunidades são organizadas para resistir à condição precária, exemplifica, idealmente, os próprios valores pelos quais essas comunidades lutam (BUTLER, 2018, p. 76).

1 Professor de Filosofia e pesquisador no Campus Rural de Marabá – IFPA. O texto foi escrito com pretensões estritamente didáticas; à época de sua escrita, em 2011, o autor estava vinculado à rede de educação pública estadual do Pará em Marabá-PA. A última revisão do texto data do início de 2018.

2 Poderíamos dizer que essa descrença é uma expressão do niilismo político, talvez ainda uma estratégia do jogo reacionário da Servidão Voluntária, para usar um termo de Étienne de La Boétie. A consequência última dessa descrença seria justamente o totalitarismo, o fascismo: isto é, certo nazi-fascismo nos trópicos.

3 Dicionário Latino-Português (CRETELLA JÙNIOR, 1953, p. 214).

4 Seria pertinente pensarmos ainda oportunamente outras formas de cidadanias, cidadanias outras. Tais cidadanias outras vêm sendo chamadas, na Amazônia, de florestania: a “cidadania da floresta”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução: Roberto Raposo; revisão técnica e apresentação: Adriano Correia. – 10. Ed. Revisada. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

_______. A Dignidade da Política – Ensaios e Conferências. Compreensão e Política. Rio de Janeiro: Relume Dumarrá, 1993.

ARISTÓTELES. A Política. 3ª. Ed. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: EDunb, 1997.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução: Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018

CRITELLA JÚNIOR, José. CINTRA, Geraldo de Ulhôa. Dicionário Latino-Português. 3ª. Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1970.

LA BOÉTIE, Étienne. Discurso da servidão voluntária.

WOLF, Francis. Aristóteles e a política. Trad.: Thereza C. F Stummer e Lygia… São Paulo: Discurso Editorial.

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