Há 80 anos, o Brasil proibia o futebol feminino

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.

Decreto de Getúlio Vargas que vetou a modalidade em 1941 vigorou por quase 40 anos. Medida foi reação à proliferação do futebol feminino no subúrbio carioca. Jogadoras comentam efeitos duradouros da proibição

O futebol feminino estava em efervescência no subúrbio do Rio de Janeiro em 1940. Havia 15 equipes competindo entre si. A modalidade se tornava tão popular que, naquele ano, dois desses times foram chamados para fazer um jogo preliminar no recém-inaugurado Estádio do Pacaembu, onde os homens de São Paulo e Flamengo se enfrentariam.

Na capital paulista, mulheres de chuteiras eram uma completa novidade. O jogo entre Cassino do Realengo e Sport Club Brasileiro despertou grande entusiasmo no público de 65 mil pessoas, segundo a imprensa da época. Ao mesmo tempo, despertou a ira de setores conservadores e serviu de estopim para a proibição da modalidade no Brasil por 38 anos.

No dia 7 de maio de 1940, dez dias antes do jogo no Pacaembu, José Fuzeira endereçou ao então presidente Getúlio Vargas, uma carta com o seguinte título: “Um disparate esportivo que não deve prosseguir”. Fuzeira era uma figura sem holofotes, autor de livros sobre normas de conduta social e obras como Judas Iscariotes e a sua reencarnação como Joana D’Arc.

Na correspondência, Fuzeira alertava que o crescimento da modalidade na capital federal poderia se expandir para todo o país e afetar “o equilíbrio psicológico das funções orgânicas [da mulher], devido à natureza que a dispôs a ‘ser mãe'”. Embora o próprio autor reconhecesse não ter qualquer autoridade “educacional ou científica”, a reclamação, publicada no jornal carioca Diário da Noite, fez Getúlio se mexer.

“Pelas minhas pesquisas nos registros da época, fica claro que a carta foi recebida como uma denúncia”, comenta a historiadora Aira Bonfim, pesquisadora do Museu do Futebol. O governo encomendou um parecer técnico do então Ministério da Educação e Saúde Pública, que desaconselhou a prática do futebol por mulheres, bem como outros esportes de contato – lutas, rugby e polo aquático.

O laudo do Ministério mencionava a proibição do futebol feminino na Inglaterra, em 1921, citando estudos científicos realizados naquele país, e falava na conveniência de organizar uma campanha contra a modalidade. Coincidência ou não, a perseguição pela imprensa se intensificou.

A prisão de Dona Carlota

Em janeiro de 1941, ocorreu a prisão de Dona Carlota, figura central no desenvolvimento do futebol feminino no subúrbio, ajudando a formar equipes. A “dirigente” foi responsável por organizar a viagem a São Paulo. Após o sucesso no Pacaembu, Carlota recebeu um convite para excursionar com suas equipes por Buenos Aires e Montevidéu.

“Se houve uma forte reação quando Leônidas da Silva e Arthur Friedenreich, jogadores negros, foram convidados para representar o Brasil no exterior, imagine quando meninas pretas, pobres e suburbanas tiveram a oportunidade de representar nacionalmente o país jogando bola”, diz Aira Bonfim. “O pedido de prisão e a desqualificação dela começaram imediatamente em seguida”.

Surgiram, então, diversas reportagens na imprensa que apontavam Dona Carlota como aliciadora de menores. Sua casa, onde também funcionava um clube, foi descrita como um “antro de perdição”, onde meninas falavam alto e fumavam. “Atrelar pessoas de outras classes à malandragem convence muito mais a população do que falar na biologia do quadril”, ressalta Bonfim.

Apenas três meses após a prisão de Dona Carlota, no dia 14 de abril de 1941, Getúlio Vargas assinou o decreto-lei que criou o Conselho Nacional de Desportos (CND). No artigo 54, foi explicitado que não seria permitido às mulheres a prática de determinados esportes, devido a características próprias da natureza feminina.

Não foram mencionadas quais seriam as modalidades vetadas, o que só aconteceria em outra deliberação de 1965, já na ditadura militar. Mas a imprensa trataria de enfatizar o veto ao futebol feminino, em pleno Estado Novo, quando desafiar o governo não era conveniente.

A proibição, que vigorou até 1979, interrompeu o desenvolvimento de uma modalidade em franca ascensão. Antes que equipes como o Cassino Realengo e o S.C. Brasileiro se tornassem realidade, os circos foram o palco experimental do futebol feminino, ainda nos anos 1920, com exibições que atraíam grandes públicos ao longo de até quatro dias consecutivos.

Embora a proposta fosse associar o esporte ao humor, a historiadora Aira Bonfim enxerga um papel fundamental da atividade circense na mudança de perspectiva sobre o futebol feminino. “O circo é agente popularizador da ideia que mulher podia jogar bola. E é itinerante, vai fazer isso de Norte a Sul. Nas minhas pesquisas, eu chego até Pernambuco, mas registros indicam que pode ter se estendido até Amazonas e Rio Grande do Sul”, conta.

Pioneirismo do Vasco da Gama

A historiadora também destaca a importância do Vasco da Gama na quebra de barreiras do futebol feminino. O clube – que foi campeão carioca em 1923 de forma pioneira – com um time formado por negros e analfabetos, havia se tornado muito popular no subúrbio da cidade. Naquele mesmo ano, o Vasco teve uma equipe formada por torcedoras, que jogavam entre si, na falta de adversárias.

“Quando pesquiso as jogadoras das equipes do subúrbio em 1939, 1940, constato que várias já integravam o futebol das vascaínas que acontece em 1923, 1925 e 1929”, explica Bonfim. “O clube fica na divisa dos bairros suburbanos, e tem essa importância na iniciação esportiva das mulheres, que até então não tinham campos ou quadras à disposição no subúrbio”.

Foi justamente no clube carioca que Marta surgiu para o futebol. Eleita melhor jogadora do mundo pela Fifa por seis vezes, ela é a grande referência das novas gerações de jogadoras na superação dos efeitos desastrosos de quase quatro décadas de proibição da modalidade no Brasil.

‘Continuamos lutando pelo nosso espaço a cada dia’

Destaque do Botafogo no Campeonato Carioca, a atleta Vivian Cardoso, de 23 anos, diz ser difícil acreditar que o decreto pôde existir algum dia. “Esse tempo só serviu para que nós estivéssemos atrás em questão de evolução da modalidade. Continuamos lutando pelo nosso espaço a cada dia, mas sofremos com comparações injustas pelo fato de ficarmos 40 anos sem poder praticar”, afirma.

Andressa Alves, atacante do Roma e da seleção brasileira, acredita que a modalidade tenha deixado de ser mal vista. No entanto, considera que ainda há poucas informações sobre o futebol feminino e seu potencial de rentabilidade para televisões e a área de marketing. Para Andressa, as principais barreiras para as atletas estão na dificuldade de chegar a um clube com boas condições.

“Tem poucos clubes com estruturas boas para uma jovem começar a jogar. É muito difícil, mas o Brasil vem melhorando bastante, começando a criar campeonatos competitivos na base e no principal. Isso vai ajudar bastante as novas gerações a terem mais oportunidades”, avalia.

O fortalecimento dos torneios femininos é uma das missões de Aline Pellegrino como Coordenadora de Competições Femininas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Ex-atleta da seleção brasileira, ela conta que jogava futebol na rua escondida da família, embora fosse ao estádio com o pai, que acabou por se tornar um incentivador com o passar do tempo.

“Precisamos massificar a modalidade, oportunizar os sonhos de meninas e mulheres de todo o Brasil, e garantir que cada passo seja realizado de maneira concreta. O investimento nas categorias de base, com competições direcionadas ao ciclo completo de formação também é um viés extremamente importante nesse processo de construção e evolução”, diz.

DW – Brasil

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