Preso na atenção geral, ele conta como surgiu a marvada na sua versão insólita. – Cachaça, ah, a cachaça! Vocês sabem como surgiu essa preciosa bebida? (Pixabay)
Havia antigamente no Jacuri um tal Seu Zacarias, legítimo filósofo popular, dessas figuras que costumam existir em pequenas localidades. Conversar com ele era absorver conhecimentos sobre os mais variados assuntos desta e de outras vidas, porque ele simplesmente sabia tudo de todas as coisas. E se não sabia, inventava.
A última vez que o vi faz muito tempo, um tempo sem pandemia. Naquele dia eu tive a oportunidade de participar de uma das rodas de conversa que compadres e amigos costumavam promover para ouvir as histórias do Seu Zacarias. Éramos uns cinco, sentados na escada do botequim do Jove. De repente, entra na venda o Salustiano, cachaceiro inveterado, já completamente bêbado embora o relógio da Matriz ainda não tenha batido as dez da manhã. Seu Zacarias, que também aprecia umas e outras, olha para aquele amigo cambaleante e diz:
— Cachaça, ah, a cachaça! Vocês sabem como surgiu essa preciosa bebida? Está na Bíblia. Está no Novo Testamento.
Preso na atenção geral, ele narra o surgimento da marvada na sua versão insólita. Começa com ar solene, à guisa de sermão:
— Naquele tempo, meus amados irmãos, Jesus e seu mais chegado discípulo, o apóstolo Pedro, caminhavam por uma estrada de Jericó quando entraram em um grande canavial. Era cana que não acabava mais, de um lado e do outro do caminho estreito. Conversavam sobre muitas coisas, evidentemente com Jesus falando mais que Pedro, ensinando-lhe coisas de Deus, o Pai.
Seu Zacarias faz a primeira pausa na narrativa pra pedir ao dono do boteco “um quartio” de pinga. (Equivale à quarta parte de uma garrafa de 700ml. Um copo tipo Lagoinha cheio).
— Tomar uma de vez em quando faz bem pra saúde – ensina com o ar grave dos bebuns.
Chega a cachaça, ele bebe de uma talagada, joga um restinho pro santo e continua sua história bíblica dizendo que o dia já começava a desmaiar no horizonte quando Jesus e Pedro depararam com um rio que se atravessava por uma pinguela. Não se lembra do nome do raio do rio, mas diz que isso não tem nenhuma importância. O que interessa é que Jesus passou tranquilo para o outro lado. Era uma pinguela muito estreita, um tronco de madeira fina, que exigia do caminheiro bastante atenção para não perder o equilíbrio. Uma queda no rio seria algo dramático, à beira do trágico. Pedro, que não sabia nadar, não quis passar na pinguela. Do outro lado, Jesus chamou: “Venha, rapaz”. Pedro respondeu hesitante: “Ah, não tenho coragem não. Me desculpe, mestre”. Jesus respondeu: “Então descanse um pouco, dê uma cochilada, e quando despertar já estará mais disposto. Tenha fé. Eu espero aqui”.
Nova pausa estratégica na narrativa do Seu Zacarias, que pede mais um quartio. Toma com a boca boa de cachaceiro treinado no ofício e continua a história dizendo que Pedro, em vez de estender a manta que trazia nas costas para se deitar, resolveu chupar umas canas. Cortou várias. Algumas já estavam meio passadas, com a cor arroxeada e azedinhas, um gostinho especial, e Pedro achou bom. Depois de chupar avidamente um punhado daquelas canas, começou a se sentir animado, estimulado como nunca. Não sabia explicar, mas o certo é que foi ficando corajoso. Olhou para o outro lado do Rio, onde Jesus se deitara, e gritou. “O que o mestre está fazendo aí? Vamos embora”!
Seu Zacarias interrompe de novo a narrativa para pedir outra dose. Bebe de um fôlego, sem esquecer do santo, que esse ritual é sagrado. E continua contando a história. Diz que Jesus ficou meio cismado com aquilo, disse a Pedro que estavam indo na outra direção, e que ele é que devia atravessar o rio. “Você ficou com medo e não veio”, disse Jesus. Pedro respondeu irado: “Eu com medo? Pelo amor de Deus. Eu atravesso essa pinguela de olhos fechados e com uma perna só”.
Não foi com uma perna só nem de olhos fechados, mas atravessou com a maior tranquilidade. Chegou ao outro lado feliz e extrovertido, segundo as Escrituras do velho Zacarias, que concluiu assim a história do nascimento da cachaça:
— Jesus não entendeu nada. E seguiram caminho, com Pedro animadíssimo, dando tapinhas nas costas do Cristo pela estrada a fora. É possível até que tenha contado umas piadinhas e cortado uma cana arroxeada para Jesus experimentar. E foi assim, meus caríssimos irmãos em Cristo, que nasceu a bebida mais bebida da História.
A essa altura, vê-se que Seu Zacarias já está bastante chumbado. Bebinho da silva. Acho que é capaz de atravessar qualquer pinguela, por mais estreita e insegura que seja, de olhos vendados e com uma perna só.
por Afonso Barroso para a Dom Total
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