Índia, a tempestade perfeita: governo controlador e pandemia descontrolada

Leia mais

Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Eleito em 2014 como um moderado, Narendra Modi deu uma guinada à direita e tem-se mostrado um autocrata disposto a usar a maioria parlamentar para fazer o que lhe apetece. O que não estava nos seus planos era a pandemia de Covid

A Índia, todos nós sabemos, tem problemas milenares. 1,366 bilhão de pessoas (em 2019) que falam 21 línguas (e 447 idiomas), separadas por um sistema de castas, com um PIB per capita de U$ 6.161 mal distribuídos, espalhadas por 3,3 milhões de quilômetros quadrados, não é tarefa fácil de gerir.

Nas cidades, algumas com mais de 10 milhões de habitantes, as pessoas empilham-se em transportes inadequados e gigantescos bairros da lata; nos campos, vivem isoladas numa agricultura de subsistência, sem saneamento básico nem assistência médica. Os números são imprecisos; acredita-se que há pessoas que nascem, vivem e morrem sem nunca terem existência legal.

O clima, tropical com monções, também não ajuda a manter uma infraestrutura básica. No entanto, a Índia tem um comércio e indústria florescentes, e os indianos são muito bem vistos em áreas de ponta, como a informática e a medicina.

Contrastes

Durante o período colonial, os ingleses mantiveram na ordem esta imensidão fazendo pactos com os marajás, que mantinham os seus privilégios a troco de não permitir perturbações na ordem social. O sistema de castas ajudava.

Com a independência, em 1947, tudo mudou, pelo menos oficialmente: acabaram os marajás e as castas, fez-se uma constituição democrática e igualitária e passou a haver um governo nacional e governos estaduais, todos eleitos por voto direto. Essa mudança da Idade Média para a modernidade é atribuída a Mahatma Gandi, mas foi ajudado por uma elite urbana que, entretanto, se tinha formado na Grã-Bretanha e aspirava à maior democracia do mundo.

O primeiro trauma que a independência trouxe foi a divisão entre a maioria hindu e a minoria muçulmana, que levou à separação da Joia da Coroa britânica em dois países eternamente rivais, a Índia e o Paquistão. A região de Caxemira (três estados com 220 mil quilômetros quadrados) que tem maioria muçulmana mas é controlada pela Índia, tem dado origem a disputas permanentes e duas ou três guerras, sempre com resultados inconclusivos.

Sob a constituição parlamentarista de 1950 houve até agora 14 governos, mais ou menos sociais-democratas – mais ou menos porque o conceito de socialdemocracia dificilmente se aplica a uma sociedade em que as castas, mesmo proibidas juridicamente, continuam a ter um papel preponderante nas relações entre famílias e pessoas. Contudo, a liberalização econômica criou uma classe média urbana menos permeável aos preconceitos e permitiu um desenvolvimento econômico sem precedentes. Entre as décadas de 1960 e 1990 foi das economias que mais cresceram no mundo. Todavia, convém ter em conta que o desenvolvimento não foi igual para toda a população e a grande maioria não notara grande diferença entre os tempos coloniais e o século 21.

A elite governante revezava-se no poder, segundo uma coreografia democrática com regras estabelecidas. Não se pode dizer que os 13 governos que precederam o atual tivessem muitas diferenças no que diz respeito à melhoria de vida das castas mais desfavorecidas.

Até que, em 2014, ganhou as eleições o partido Bharatiya Janata (à letra: Partido do Povo), dirigido por um membro das castas Ghanchi e Teli (isto é, classe média baixa) que parecia seguir todas as tradições consagradas, como o casamento arranjado pelos pais e a continuação do negócio de mercearia da família. Ao ser eleito, por maioria absoluta, foi o primeiro primeiro ministro nascido após a independência do país.

Em pouco tempo Modi alterou o seu estilo de governar, começando a favorecer abertamente os hindus e a hostilizar os muçulmanos, que ainda constituem uma minoria considerável. Em 2019, Modi subitamente resolveu ocupar militarmente a Caxemira (o que provocou um enorme mal-estar nacional e internacional.

Embora as instituições democráticas continuem a funcionar, o partido Janata tem ocupado cada vez mais posições no sistema judicial e a ter controle maior sobre a comunicação social, num estilo semelhante a, por exemplo, Victor Orban. Num país com as dimensões da Índia e com uma população basicamente despolitizada, é muito mais fácil fazer pequenas mudanças autocráticas, que passam despercebidas na cacofonia dos vários estados e diferentes jurisdições regionais.

A agressividade das forças armadas indianas não se limitou a Caxemira e no ano passado houve vários incidentes na fronteira com a China – se bem que, neste caso, seja difícil dizer quem foi o provocador. Mas Modi parece procurar situações que levantem o fervor nacionalista, apresentando-se como um líder providencial. Enfim, o habitual.

O que Modi nem os indianos esperavam foi a subida exponencial da pandemia nos últimos meses. Durante o primeiro ano, parecia que o país ia sair razoavelmente bem da situação, com números proporcionalmente baixos em relação ao resto do mundo. 

Porém, nos últimos dois meses a situação saiu completamente do controle. São mais de 24 milhões de casos e mais de 250 mil mortes, segundo os dados oficiais, mas os números não dizem nada do desespero que atualmente se vive na Índia. Relatos contam que se vive num clima de fim do mundo, com cadáveres a flutuar nos rios pessoas que certamente não entram nas estatísticas, ruas repletas de doentes deitados no chão e os hospitais completamente sobrelotados.

O problema mais angustiante nem tem sido o descaso no tratamento dos doentes, mas sim a falta de oxigênio. Há um mercado clandestino de oxigênio, os ricos têm salas todas equipadas em casa, com um bom fornecimento, enquanto os transportes com cilindros do gás são feitos sob escolta e muitas vezes atacados.

Apontam-se várias razões para este descalabro. Uma, certamente, foi a indecisão do governo, que mudou as diretrizes várias vezes. Por sua vez, os 24 estados em que o país está dividido também têm diretrizes diferentes ao mesmo tempo, ou diretrizes iguais em alturas diferentes. O resultado dos lockdowns, que só existem nas cidades, levaram os trabalhadores e suas famílias, sem meios de subsistência pelo fechamento das atividades produtivas, a voltar às suas terras de origem, disseminando assim o vírus por todo o país. E se a estrutura sanitária é péssima nas cidades, nas aldeias é inexistente.

Neste momento não há fim à vista. Até as vacinas (e a Índia é o maior produtor mundial) desapareceram dos centros, diz-se que para serem exportadas para países dispostos a pagar.

A questão indiana não é apenas uma questão indiana. Nas últimas semanas a pandemia alastrou para o Nepal e o Butão, países igualmente sem estruturas sanitárias. Segundo a OMS, uma hecatombe destas proporções é um problema mundial, porque o trânsito internacional é imparável. Já existe uma variante indiana do Covid-19, que dizem ser “duplamente mutante”, o que lhe permite contornar as vacinas atuais. E têm surgido no país mutações de todo o mundo, como a inglesa e a sul-africana. Até há casos da chamada “variante de Manaus”.

Narendra Modi tem se recusado a reconhecer o estado catastrófico da situação, pelo menos oficialmente. Particularmente, com certeza, sabe o que se está acontecendo, mas não tem meios para travar o tsunami. 

O que estamos assistindo é um desastre nacional que inevitavelmente terá consequências planetárias. Cientes disso, vários países, da Alemanha à Rússia, têm enviado por via aérea carregamentos de oxigênio e equipamentos diversos – mas as quantidades são insignificantes para um país com a população da Índia.

Neste caso não se trata do famigerado “efeito borboleta”. Será mais um efeito “elefante numa loja de cristais”.

Só nos resta apertar os cintos – e, evidentemente, tomar a vacina.

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

- Publicidade -spot_img

More articles

- Publicidade -spot_img

Últimas notíciais