Nos EUA, os jornais que atiçaram a guerra contra o Iraque fabricam agora um conflito na Europa. A invenção de fatos e o silenciamento das vozes pela paz. Os objetivos: ampliar orçamento militar e sabotar aproximação entre Rússia e Europa
Em meio a falas duras, de governantes europeus e estadunidenses, um novo estudo da MintPress sobre os meios de comunicação mais influentes dos EUA revela: a imprensa é quem mais exerce pressão para uma guerra contra a Rússia no caso da Ucrânia. Noventa por cento dos recentes artigos de opinião no New York Times, Washington Post e Wall Street Journal sobre o conflito assumem a visão dos “falcões” da política internacional norte-americana, dando lugar a poucas e distantes vozes antiguerra. As colunas de opinião têm expressado um apoio esmagador ao envio de armas e tropas dos EUA para a região. A Rússia tem sido universalmente apresentada como o agressor nesta disputa. A mídia mascara o papel da OTAN na ampliação das tensões e praticamente não menciona a colaboração dos EUA com as facções neonazistas participantes da coalizão que hoje governa a Ucrânia.
Histeria periódica
A mídia e os governos ocidentais expressaram alarme por causa de uma suspeita de concentração de forças militares russas, perto de sua fronteira de quase 2 mil km com a Ucrânia. Há quase 100 mil soldados na região, o que leva o presidente Joe Biden a advertir que se trata do “fato mais importante ocorrido no mundo, em termos de guerra e paz, desde a Segunda Guerra Mundial”.
No entanto, está longe de ser a primeira vez que a mídia entra em pânico por conta de uma suposta invasão russa. O alerta para uma guerra quente na Europa é uma ocorrência quase anual. Em 2015, veículos como a Reuters e o New York Times afirmaram que a Rússia estava reunindo tropas e um forte poder de fogo, incluindo tanques, artilharia e lançadores de foguetes bem na fronteira, e que as cidades da região, em geral modorrentas, estavam borbulhantes com as movimentações.
Em 2016, houve um agravamento ainda maior das relações, com a mídia de todos os setores prevendo que a guerra estava por um triz. O The Guardian noticiou que a Rússia muito em breve teria 330 mil soldados na fronteira. Mas nada aconteceu e a história foi discretamente deixada de lado.
Na a primavera seguinte vieram novos avisos de conflito. O Wall Street Journal afirmou que “dezenas de milhares” de soldados estavam sendo enviados para a fronteira. O New York Times elevou esse número para “até 100 mil”. Alguns meses depois, o U.S. News disse que milhares de tanques estavam se juntando a eles.
No final de 2018, o New York Times e outros meios de comunicação estavam novamente ouriçados por causa de uma nova aglomeração russa, desta vez de 80 mil militares. E na primavera do ano passado, foi amplamente divulgado (por exemplo, pela Reuters e pelo New York Times) que a Rússia havia reunido mais de 100 mil soldados na fronteira da Ucrânia, sinalizando que a guerra era iminente.
Portanto, de acordo com os números que circulam na mídia ocidental, na fronteira da Ucrânia haveria hoje um contingente menor de militares russos que 11 meses atrás. Além disso, do outro lado da fronteira há um exército de cerca de 250 mil soldados ucranianos.
Por isso, é possível perdoar os leitores que acreditarem estar novamente no Dia da Marmota. Mas desta vez há algo diferente: a cobertura sobre o conflito tem sido enorme e domina o noticiário há semanas, como não acontecia antes. A possibilidade de que aconteça a guerra tem assustado a população estadunidense e provocado apelos por um orçamento militar muito maior, além de uma reformulação da política externa para confrontar esta suposta ameaça.
A Rússia tem repetidamente rejeitado todas as alegações de que planeja atacar a Ucrânia, descrevendo-as como “ficção”. “As conversas sobre a próxima guerra são provocadoras por si mesmas. [Os EUA] parecem estar pedindo isso, querendo e esperando que [a guerra] aconteça, como se quisessem fazer suas especulações se tornarem realidade”, disse o embaixador da Rússia nas Nações Unidas, Vassily Nebenzia.
Ainda mais surpreendente é o fato de que o governo ucraniano parece concordar, reconhecendo que qualquer conflito seria devastador tanto para a economia russa quanto para a ucraniana e que até mesmo a movimentação das armas e a perspectiva de tal conflito já está tendo um impacto nos negócios e nos investimentos. “Não vemos nenhum motivo para declarações sobre uma ofensiva em larga escala em nosso país”, disse Oleksiy Danilov, o secretário chefe do Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia. Em entrevista à BBC, Danilov também revelou sua exasperação com os meios de comunicação, por terem gerado temores e tensões exagerados.
Pesquisa dos grandes jornais dos EUA
Para checar a afirmação de Danilov de que os veículos da mídia ocidental têm sido as vozes mais fortes a favor da guerra, a MintPress analisou três dos mais importantes e influentes veículos estadunidenses: New York Times, Washington Post e Wall Street Journal. Juntos, estes três veículos frequentemente estabelecem a agenda para o resto do sistema de mídia, e pode-se dizer que representam razoavelmente o espectro da mídia corporativa como um todo. Usando o termo de busca “Ucrânia”, no banco de dados global de notícias Factiva, todos os artigos de opinião sobre o conflito publicados nas três semanas anteriores (7 a 28 de janeiro) foram lidos e estudados. O resultado foi um corpus de 91 artigos no total; 15 no Times, 49 no Post e 27 no Journal.
Postura dos grandes jornais norte-americanos diante da Rússia. Em azul, os comentários agressivos. Em laranja, os moderados
O tom dos três jornais estudados foi claramente na linha dos “falcões”, com cerca de 90% das colunas alinhadas com a mensagem do “endurecimento”. Houve pouca ou nenhuma variação entre os veículos quanto ao tom de suas publicações. “Putin pretende ir além da Ucrânia. Confrontá-lo imediatamente é crucial”, diz a manchete do artigo do ex-general Wesley Clark publicado no Washington Post. O colunista Max Boot afirmou que Putin “definitivamente quer ressuscitar o império soviético”. O colega de Boot no Post, Henry Olsen, lançou um amargo ataque a Biden por não ser suficientemente falcão, descrevendo o presidente como um fraco inapto a liderar. Enquanto isso, o Wall Street Journal aproveitou a oportunidade para denunciar a esquerda estadunidense por se concentrar no inexistente imperialismo dos EUA, quando deveria se unir a Washington para combater o imperialismo nos únicos lugares onde ele ainda existe: Rússia e China… Um pequeno movimento contrário ao incessante rufar de tambores para a guerra veio de vozes como Peter Beinart no Times, Katrina vanden Heuvel no Post, ou de vozes conservadoras mais isolacionistas. No entanto, foram poucas e desarticuladas.
Essencialmente, desenhou-se uma completa unanimidade em mostrar a Rússia (e não a OTAN) como o agressor, com 87 dos 91 artigos apresentando o assunto dessa maneira (quatro artigos não identificaram nenhuma instituição como o agressor). Houve um apoio esmagador tanto ao envio de grandes quantidades daquilo que o governo Biden chamou de “ajuda letal” (ou seja, armas), quanto ao envio de tropas para a região – um movimento que aumentaria rapidamente a ameaça de uma guerra nuclear terminal. Como Bret Stephens escreveu no jornal Times:
A melhor resposta a curto prazo às ameaças de Putin é aquela que o governo Biden está finalmente começando a considerar: o destacamento permanente, em grande número, de forças dos EUA para os Estados da linha de frente da OTAN, da Estônia à Romênia. As remessas de armas para Kiev, que até agora estão sendo medidas em quilos, e não em toneladas, precisam se tornar uma ponte aérea em escala real.
O Washington Post foi muito mais longe, no entanto, com uma coluna exigindo que os EUA enviassem imediatamente cerca de 85 mil soldados para a região, um número que, segundo o jornal, deve ser igualado também por outros membros da OTAN.
Entretanto, o Wall Street Journal foi mais longe do que todos, exigindo que os EUA fossem transformados em um Estado militar global a fim de combater duas guerras mundiais ao mesmo tempo. Com indisfarçável toque de deleite, o colunista Walter Russell Mead afirmou:
Os orçamentos militares terão que crescer à medida que os Estados Unidos aumentarem sua capacidade tanto contra a Rússia quanto contra a China. As fantasias de se retirar de algumas regiões para se concentrar em outras terão de ser colocadas de lado; a Europa, o Oriente Médio, a África subsaariana e a América Latina requerem mais atenção e foco americano e aliado, mesmo que continuemos a nos preparar no Indo-Pacífico. Os Estados Unidos terão que passar menos tempo inspecionando as deficiências morais de potenciais aliados e mais tempo pensando em como podem aprofundar suas relações com eles.
Postura dos mesmos jornais diante de um envio de tropas norta-americanas à região. Em azul, comentários favoráveis
Uma longa história e uma promessa quebrada
Dizem que contexto é tudo. A opinião do governo dos EUA sobre a situação é de que a Rússia é uma influência perenemente desestabilizadora. Nessa linha, alega-se que Putin – que afirmou anteriormente que a Ucrânia “não é um país” – financiou grupos separatistas na região de Donbass, anexou ilegalmente a Crimeia e bombardeia a Ucrânia com propaganda diária. Desde uma guerra na Geórgia até o envio de tropas para o Cazaquistão para reprimir uma revolta recente, a Rússia estaria lutando na retaguarda para impedir a disseminação da democracia. A Rússia também teria assumido uma posição de confronto com os EUA, invadindo as eleições de 2016 e 2020 para ajudar seu candidato preferido.
No entanto, muitos russos poderiam se contrapor a essas alegações e retomar a história no século IX com a Federação Rus-Kieviana, uma nação cuja capital foi Kiev e que deu origem à própria palavra “Rússia”. Então, deveriam avançar rapidamente mil anos, e enfatizar as promessas quebradas do governo dos EUA à URRS. O primeiro governo Bush, assim como os governos da Alemanha Ocidental e da Grã-Bretanha, asseguraram ao líder soviético Mikhail Gorbachev que a OTAN nunca se expandiria “um centímetro” para leste da Alemanha. Foi, naturalmente, uma promessa feita para ser quebrada, e a aliança militar antirrussa avançou em toda a Europa Oriental, agora incluindo três antigas repúblicas soviéticas que fazem fronteira com a Rússia.
Os Estados Unidos têm sido extremamente ativos nos assuntos internos da Ucrânia, como destacou a jornalista russo-estadunidense Yasha Levine, forçando o governo de Kiev a aumentar os preços da gasolina e os impostos sobre o álcool e os cigarros. Também tem bancado ONGs e meios de comunicação locais e ameaçado prender oligarcas ucranianos se novas demandas americanas não forem atendidas.
O papel de Washington na revolta ucraniana de 2013-2014, no entanto, é o exemplo mais claro da interferência norte-americana. Tentando colocar os dois blocos um contra o outro, o presidente ucraniano Viktor Yanukovych negociou, ao mesmo tempo, acordos comerciais com a União Europeia e com a Rússia. No final, escolheu a oferta superior russa. Porém, ao invés de aceitar a derrota, o Ocidente começou imediatamente a organizar um golpe, financiando e apoiando protestos de rua em todo o país. Políticos de altos cargos como o senador John McCain e a secretária de Estado adjunta Victoria Nuland viajaram para a Ucrânia para liderar as manifestações, sendo que Nuland até mesmo distribuiu os famosos biscoitos aos manifestantes na Praça da Independência em Kiev. Yanukovych acabou sendo derrubado em fevereiro de 2014.
Que a revolta ucraniana foi organizada, pelo menos em parte, pelos Estados Unidos não há dúvida. Um áudio vazado de Nuland conversando com o embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, mostrou que Washington efetivamente escolheu a dedo o governo sucessor na Ucrânia. “Eu não acho que Klitch deveria entrar no governo. Não acho que seja necessário. Não acho que seja uma boa ideia”, diz Nuland na gravação, referindo-se ao boxeador-político Vitali Klitschko. “Acho que Yats [Arseniy Yatsenyuk] é a pessoa com experiência econômica, experiência de governo”, continuou ela. Os dois também discutiram planos para a implementação do novo governo. Para não deixar dúvida, menos de um mês após o vazamento do áudio, Yatsenyuk tornou-se primeiro-ministro.
Desde 2014, o governo ucraniano tem conduzido uma campanha de privatizações, bem como firmado acordos com a União Europeia que Yanukovych rejeitou anteriormente. Também expulsou agressivamente a língua russa das escolas e da mídia, prendeu políticos da oposição e fechou os meios de comunicação que se opunham ao seu governo. Cerca de um terço dos ucranianos falam russo como sua primeira língua.
Este contexto quase não foi mencionado nos três jornais; mas, quando o foi, geralmente os termos foram favoráveis aos EUA. O Washington Post alegou que o acordo comercial entre Ucrânia e Rússia era uma verdadeira “invasão da Ucrânia” e representava apenas o esforço de Putin de “subornar a Ucrânia com uma oferta de US$ 15 bilhões em empréstimos e preços mais baixos para o gás”. O Wall Street Journal difamou Yanukovych como sendo tão somente um “fantoche de Putin”. Enquanto isso, o New York Times aplaudiu o que chamou de “processo de ucranização” em que “a língua russa está sendo atirada para fora das escolas e a televisão russa para fora do espaço da mídia”. O Times atualmente acusa a China de fazer algo muito semelhante em sua província ocidental de Xinjiang, denunciando o processo como um “genocídio”.
Não ver o fascismo onde ele está – e vê-lo onde ele não está
A força da rebelião ucraniana de 2014 provinha de paramilitares de extrema-direita como o infame Batalhão Azov, uma milícia neonazista que agora foi incorporada ao exército. O governo dos EUA canalizou enormes quantidades de dinheiro e recursos para esses grupos, e líderes fascistas como Oleh Tyahnybok dividiram o palanque com McCain e Nuland. O áudio vazado de Nuland deixa claro que ela exerceu alguma influência sobre Tyahnybok e suas forças. Desde pelo menos 2015, a CIA vem treinando diretamente as milícias fascistas dentro do país.
Hoje, a Ucrânia tem elementos abertamente nazistas dentro de seu governo, que aprovou leis que designam os esquadrões da morte fascistas ucranianos, que perpetraram o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, como heróis e combatentes da liberdade. Todo 1º de janeiro, em Kiev, há uma grande marcha de lanternas em homenagem ao colaborador nazista Stepan Bandera, sendo muito comuns os cânticos de “fora, judeus”. Agora há centenas de monumentos para os colaboradores fascistas em todo o país.
Por dois anos consecutivos, a Ucrânia e os Estados Unidos têm sido os únicos países a votar, na ONU, contra resoluções “combatendo a glorificação do nazismo, o neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar as formas contemporâneas de racismo”. O governo dos Estados Unidos chama tais resoluções de “desinformação russa”.
Os três jornais estudados resolveram o problema dos preocupantes vínculos fascistas da Ucrânia simplesmente não os mencionando – mesmo em matérias em que os repórteres pareciam estar misturados aos militares ucranianos, um foco de organização de extrema-direita. Apenas um dos 91 artigos estudados – um artigo opinativo calmo e compreensivo publicado no Washington Post pelo jornalista de mídia alternativa Branko Marcetic – mencionou a questão de alguma forma. E, a julgar pela seção de comentários, seus pensamentos foram recebidos mais com raiva do que outra coisa pelos leitores do Post.
Boot, um infame colunista falcão, pode ter se referido obliquamente a estes fatos incômodos quando escreveu que “No discurso [de Putin], as potências estrangeiras nefastas, ‘radicais’ e ‘neonazistas’ perseguindo um ‘projeto anti-Rússia’ procuraram retirar os ucranianos de seu devido lugar sob a asa de Moscou”. Mas imediatamente nublou tudo como “propaganda incessante do regime”. Além disso, não houve nenhuma menção à extrema-direita. Pelo contrário, o governo ucraniano foi em grande parte retratado como uma democracia louvável e inexperiente lutando pela sobrevivência.
Isto não quer dizer que não tenha havido menções aos nazistas. Na verdade, a imprensa está cheia dessas menções. Mais de 10% dos artigos estudados direta ou indiretamente compararam Vladimir Putin com Hitler. Por exemplo, o conselho editorial do Washington Post iniciou assim seu editorial de 8 de janeiro sobre a Ucrânia:
Um ditador brutal, tendo reivindicado o poder com base em teorias conspiratórias e promessas de restauração imperial, reconstrói suas forças militares. Ele começa a ameaçar confiscar o território de seus vizinhos, culpa as democracias pela crise e exige que, para resolvê-la, elas reescrevam as regras da política internacional – e redesenhem o mapa, para adequá-lo aos seus interesses. As democracias concordam com as conversações de paz, esperando, como é necessário, evitar a guerra sem premiar indevidamente a agressão.
O que aconteceu em seguida em Munique em 1938 é uma questão histórica: A Grã-Bretanha e a França negociaram um pedaço da Tchecoslováquia com a Alemanha de Adolf Hitler em troca de sua falsa promessa de não fazer guerra.
Os jornais continuam, em toda parte, a martelar a ideia de que Putin é igual a Hitler. Espera-se que os editoriais representem a sabedoria coletiva do pessoal sênior e deem o tom para o resto da equipe de reportagem e mais amplamente por todo o ambiente da imprensa. Assim, o conselho editorial estava deixando muito claro o tipo de cobertura que espera.
O New York Times e o Wall Street Journal advertiram regularmente contra os “panos quentes” (appeasement) em relação a Putin – um termo geralmente reservado para o período de colaboração branda das potências do Ocidente com o regime de Hitler, antes que mudassem de rumo e se opusessem a ele. No início desta semana, o Times reclamou que o mundo estava “prendendo a respiração esperando que Vladimir Putin mordesse uma fatia da Ucrânia da mesma forma que outro ditador revanchista europeu uma vez tomou uma fatia da Tchecoslováquia” – outra referência a Hitler. A mensagem transmitida era simples: esta é uma repetição da Segunda Guerra Mundial.
Vladimir Putin ser poderia credivelmente chamado de muitas coisas, mas fazer dele a encarnação de Hitler é esticar os parâmetros da credulidade. Incapazes de introduzir um contexto relevante que se desviasse desta linha, no entanto, os generais de pijama que exigem a guerra resolveram psicanalisar o líder russo, além de lhe lançarem todo tipo de insultos. Apenas nesta amostra de três semanas, Putin foi declarado um “ditador maligno” um “bandido“, um “sociopata da KGB” e um “patético retrocesso”. Thomas Friedman, ex-companheiro de longa data do colunista do Times, em seu estilo único, descreveu-o como “o ex-namorado abusivo dos Estados Unidos”, continuando:
Putin é um psicodrama de um homem só, com um enorme complexo de inferioridade em relação aos Estados Unidos, o que o deixa sempre tentando vigiar o mundo, com uma ombreira tão grande que é incrível que ele consiga passar em qualquer porta.
No entanto, apesar de toda a psicanálise, eram os “especialistas” ocidentais que pareciam estar em pânico, obcecados com a suposta necessidade de parecer durões diante de Putin. Citando o deputado da Carolina do Sul Joe Wilson (R-SC), o Post declarou que “a fraqueza é provocativa”. “Vladimir Putin não pensa como nós”, advertiu Michael McFaul, ex-embaixador falcão dos EUA na Rússia, afirmando que Putin via a destruição dos EUA e da ordem global como seu “destino sagrado”.
A alegação de Putin de que a Ucrânia estava sendo convidada a se juntar a uma aliança militar hostil foi recebida com desprezo e zombaria na mídia ocidental. “Nenhum dos receios da peça de propaganda do Kremlin (sic) se baseia na realidade… Ninguém estava seriamente considerando a adesão da Ucrânia ou da Geórgia à OTAN. Os planos de instalação de mísseis americanos no leste da Ucrânia, visando a Rússia, são pura fantasia”, informou um artigo de opinião do Post aos seus leitores na semana passada, ao qual acrescentou seu conselho editorial:
Toda esta crise foi fabricada por Putin como parte de seu esforço de longo prazo para impedir o desenvolvimento democrático e a crescente orientação ocidental da Ucrânia e restaurar a hegemonia russa sobre o antigo império soviético. Ela não tem nada a ver com a expansão da OTAN, cujo tratado fundador autoriza apenas a ação militar defensiva.
Os leitores na Iugoslávia, Afeganistão, Somália ou Líbia podem ter opiniões diferentes quanto à OTAN ter sido utilizada de forma puramente defensiva.
No entanto, ao mesmo tempo em que negavam categoricamente a possibilidade adesão da Ucrânia à OTAN, os artigos estudados desclassificavam (como “tolo”, “extravagante”, “irrealista” e “inaceitável” o pedido central de Putin, de que a aliança simplesmente estabelecesse por escrito o veto à entrada de Kiev na aliança militar ocidental. É difícil de entender, se bastava isso para evitar a Terceira Guerra Mundial… Na realidade, a OTAN está tentando admitir tanto a Ucrânia quanto a Geórgia, tendo prometido aos dois países que o faria já em 2008.
Política de oleodutos e fissuras na aliança da OTAN
Na semana passada, o colunista do Washington Post, Daniel Drezner, proclamou que “Putin conseguiu criar seu pior resultado estratégico: unificar a OTAN”. Parece mais um desejo. A Alemanha e a França, nações mais poderosas da Europa Ocidental, expressaram abertamente sua relutância em agravar a situação. O governo alemão não permitiu que aviões de guerra britânicos carregando armas para a Ucrânia passassem sobre seu espaço aéreo, e bloqueou os carregamentos de armas de fabricação alemã dos países bálticos para a Ucrânia. Ainda mais significativa foi a condenação pública, pelo vice-almirante da Marinha alemã, Kay-Achim Schönbach, do que viu como um acirramento imprudente de tensões. Schönbach declarou que o Ocidente se recusava a dar a Putin mesmo um pouco de respeito, e que a anexação da Crimeia deveria ser aceita como um fato consumado. Por estas falas, foi forçado a renunciar.
Do outro lado da fronteira, na França, o presidente Emmanuel Macron está tão alarmado com a pressão dos EUA e do Reino Unido para aumentar as tensões que pediu à União Europeia que iniciasse suas próprias negociações com a Rússia – negociações que excluem os EUA e o Reino Unido. Por tentarem um entendimento, a Alemanha e a França foram desclassificadas como “apaziguadoras” de um ditador pelo Washington Post, e como fantoches de Putin e do primeiro-ministro chinês Xi Jinping pelo Wall Street Journal…
Grande parte da relutância da UE em ficar por trás de uma guerra liderada pelos EUA contra a Rússia é atribuível a sua dependência energética de Moscou. Atualmente, a Rússia fornece quase metade do gás da UE e cerca de um quarto de seu petróleo. Este percentual provavelmente aumentará com a iminente conclusão do gasoduto Nord Stream 2, que corre submarino da costa báltica da Rússia diretamente para o norte da Alemanha. Os Estados Unidos têm repetidamente exigido da Europa o cancelamento deste projeto, insistindo que a Europa atenda suas necessidades energéticas junto às ditaduras do Oriente Médio controladas por Washington ou diretamente junto aos EUA – pagando cerca de quatro vezes o preço do gás russo. Os Estados Unidos estão atualmente considerando impor sanções às empresas alemãs envolvidas no Nord Stream 2.
“Se Biden não pode fazer frente à Alemanha, como ele pode fazer frente a Putin?”, perguntou um colunista do Washington Post na semana passada, numartigo exigindo que a Alemanha seja “punida” com a remoção das tropas americanas de seus territórios. “Por que a Alemanha… deveria continuar sendo recompensada com o benefício econômico das bases americanas”, perguntou o autor, enquadrando a ocupação americana sob uma luz que alguns leitores talvez não compartilhem…
Enquanto isso, o cético conselho de mudanças climáticas do Wall Street Journal aproveitou a oportunidade para afirmar que a Rússia havia se infiltrado no movimento ambiental europeu, convencendo-o a assumir posições “estúpidas”, como ser contra a extração de carvão ou de petróleo por meio de fragmentação rochosa. Era tudo, alegava o jornal, parte de um esforço bem-sucedido para manter a Europa dependente do gás russo.
A checklist da máquina de guerra
Se os movimentos das tropas russas são em sua maioria comuns, e não diferem dos que aconteceram quase todos os anos desde 2014, o que explica o circo da mídia?
Para responder a esta pergunta, devemos examinar um relatório preparado para o presidente Joe Biden em março pelo think tank da OTAN, o Conselho do Atlântico Norte. Intitulado “Biden e Ucrânia: Uma estratégia para o novo governo”, o documento estabelece um conjunto de objetivos a serem alcançados pelo novo presidente. Na parte das “Recomendações-chave”, desenha uma série de ações que o governo deve tomar. Entre elas estão incluídas: “Trabalhar com o Congresso para aumentar a assistência militar à Ucrânia para US$ 500 milhões por ano”; “Aprofundar a integração da Ucrânia com a OTAN”, potencialmente “estabelecendo uma presença militar permanente dos EUA” no país; e “lançar um Plano de Ação de Adesão à OTAN (MAP) para a Ucrânia”, se a Rússia permanecer “intransigente”. “Manter a linha quanto ao Nord Stream 2” e uma “abordagem estratégica para sanções” também estão incluídos na lista, bem como apoiar uma série de iniciativas de privatização na Ucrânia.
Compiladas por ex-embaixadores dos EUA na Ucrânia, Polônia e Rússia, bem como pelo ex-secretário geral da OTAN, as recomendações do relatório servem quase como uma checklist de tudo o que os EUA estão tentando impulsionar atualmente. Na semana passada, o Congresso começou a aprovar às pressas uma lei emergencial de armas no valor de US$ 500 milhões que tornaria a Ucrânia o terceiro maior destinatário de armas dos EUA no mundo, rivalizando apenas com o Egito e Israel. Os EUA estão enviando milhares de soldados para a Europa Oriental. Sua oposição ao Nord Stream 2 continua tão forte quanto sempre; enquanto o governo ucraniano sob a presidência de Volodymyr Zelensky está de fato caminhando para o tipo de terapia de choque econômico que o Conselho do Atlântico Norte quer ver. Tudo isso pode levar um cínico a ver a crise atual como pouco mais do que uma desculpa para forçar os objetivos de longo prazo do establishment dos EUA.
“Não precisamos desse pânico”
Nada disso ajuda as pessoas comuns que vivem no país que a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, chamou de “nosso flanco oriental”. Os ucranianos estão inquietos com a terrível situação econômica que mergulhou mais da metade do país na pobreza – a maior taxa em toda a Europa. A inflação e o custo crescente do aquecimento e da eletricidade são as maiores preocupações entre os cidadãos, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Republicano Internacional, patrocinado pelo governo dos Estados Unidos. A mesma pesquisa constatou que o país estava dividido sobre para onde quer ir politicamente, com 54% desejando aderir à OTAN e 58% à União Europeia, mas com minorias significativas preferindo uma maior integração com a Rússia. Os ucranianos consideram tanto a Rússia (63% da população) quanto os Estados Unidos (51%) como uma ameaça, de acordo com um relatório recente de um grupo de reflexão alinhado com a OTAN.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, apesar da discussão na mídia, há um apetite limitado do público por qualquer conflito com a Rússia. Na semana passada, uma pesquisa Rasmussen constatou que apenas 31% dos norte-americanos acham que tropas de seu país deveriam ser enviadas à Ucrânia, mesmo que a Rússia lance uma invasão. O próprio presidente Biden tentou jogar água na fervura da guerra, alegando que os EUA não reagiriam a uma “pequena incursão” da Rússia – declaração que escandalizou os falcões em Washington.
Os que lucram com a guerra estão claramente esperando um aumento das encomendas. Na semana passada, o executivo-chefe da Raytheon, Greg Hayes, disse confiante: “Espero absolutamente que vejamos alguns benefícios [da crise da Ucrânia]”. As ações da Raytheon e da Northrop Grumman estão atualmente se aproximando de seus recordes de todos os tempos. A mídia financiada pela indústria de armas, como Politico, publica conteúdo perguntando se os EUA devem “chacoalhar a gaiola de Putin”, e os jornalistas nas conferências de imprensa da Casa Branca continuam a provocar o governo para que adote uma postura mais agressiva.
O próprio presidente ucraniano Volodymyr Zelensky condenou a imprensa ocidental por sua cobertura hiperbólica da situação. “A imagem que a mídia de massas cria é que temos tropas nas estradas, temos mobilização, as pessoas estão saindo para tomar posições. Não é esse o caso. Não precisamos desse pânico”, disse ele. Estudar as páginas de opinião dos três veículos mais prestigiados dos EUA sugere que Zelensky está certo: ninguém quer a guerra, exceto os falcões inseridos nos órgãos de segurança nacional e entre a imprensa, que cada vez mais faz suas vontades.
Por Alan MacLeod, no MintPress News | Tradução: Maurício Ayer | Outras palavras
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!