Lula-Alckmin – um passo atrás, dois na frente?

Leia mais

Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Como enfrentar a devastação socioeconômica, ambiental e política levada a cabo pelo autoritarismo neofascista embutido no bolsonarismo?

“Os militantes mais lúcidos e melhor intencionados de minha geração revelaram-se, em virtudes de concepções ultrapassadas, quase cegos durante as tormentas” (Victor Serge, Mémoires d’un révolucionaire).

A práxis, de per se, contribui poderosamente para o conhecimento do processo político em geral, das suas contradições e potencialidades, mormente quando os que a exercitam são políticos argutos, experimentados e sagazes. Mas, se só isso bastasse, não se valorizaria as ciências sociais, a filosofia e a história, como instrumentos essenciais para o conhecimento mais aprofundado do referido processo.

Contudo, até mesmo os que nelas se movimentam com grande desenvoltura, podem tropeçar em escolhos de natureza ideológica, conforme lembrou o grande Victor Serge, mormente em uma “conjuntura tormentosa” como é a atual, não conseguindo enxergar mais profundamente as questões nela embutidas (1951).

Assim, os posicionamentos “à esquerda da esquerda” não podem elidir os ensinamentos da história recente. Ela nos mostra que há momentos ou períodos dramáticos experimentados por muitos países que levam os seus partidos e suas lideranças políticas mais eminentes, de posições político-ideológicas bastantes distintas, até mesmo antagônicas, a dar uma trégua nas suas diferenças, com vistas ao enfrentamento do inimigo comum, interno ou externo, que ameaça a paz e o progresso social.

Depois da Segunda Guerra Mundial, na Europa, constituíram-se na França e em diversos outros países democráticos desse continente, governos de salvação nacional, destinados à reconstrução desses países, destroçados pela guerra. Esses governos do pós-guerra eram compostos por partidos que iam da direita à esquerda do espectro político. Na França, o aguerrido Partido Comunista – o mais poderoso do país, durante parte da década de cinquenta do século passado – integrou o governo de União Nacional representado pelo seu maior expoente: Maurice Thorez, Secretário Geral desse partido , investido nas funções de Vice-Primeiro Ministro (COOK: 2008).

O mesmo ocorreu em vários outros países que resistiram ao nazi-fascismo na Europa, e essa “co-habitação” em nada comprometeu, na sequência, a combatividade e firmeza dos comunistas, especialmente franceses, na sua luta em prol dos interesses da classe trabalhadora.

Aqui no Brasil, causou surpresa o anúncio de uma provável chapa Lula- Alckmin, representando, cada um deles, lideranças de peso nas suas respectivas áreas de influência. Como nos exemplos anteriores, não se trata de ”uma guinada à direita”, com a esquerda assumindo o projeto neoliberal, como muitos temem (TRANJAN:2021). Mas, sim, de uma escolha política incontornável, que tem como objetivo maior fazer com que o país dê passos à frente, garantindo a derrota das hostes neofascistas, e o consequente retorno à normalidade democrática.

Em Israel, acaba de se constituir um governo ancorado em aliança ainda mais improvável, pois envolve partidos antagônicos que vão da extrema direita à esquerda. Ela ocorreu porque era preciso derrotar um inimigo comum, o então Primeiro Ministro Netanyahu, pelo perigo de convulsão social que representava sua permanência no poder (ISRAEL: 2021).

Em que pese tratar-se de momentos históricos e conjunturas políticas diversas, a questão a ser enfrentada, no momento atual do Brasil, é a mesma que foi posta na Europa, no pós-guerra, e alhures: qual estratégia política eleger, que alianças firmar para reconstruir o país e “normalizar” a democracia?

Dito de outra forma: como enfrentar a devastação socioeconômica, ambiental e política levada a cabo pelo autoritarismo neofascista embutido no bolsonarismo, inimigo número um da Nação, no poder, e que tem como base de sustentação uma legião de fanáticos, mas também importantes setores do establisment econômico, político e militar?

Para Tarso Genro, trata-se de “colocar a unidade pela democracia em torno da repulsa contra a extrema-direita violenta e golpista, e sua “reconstrução ”dentro da ordem” (2021). As forças populares, durante todo o período do governo neofascista, mostraram-se incapazes de reagir à altura. Não será agora, às vésperas das eleições presidenciais, como pretendem respeitáveis intelectuais e lideranças de esquerda, que elas poderão, sozinhas, derrotar o bolsonarismo.

Não é possível fazê-lo no estado em que se encontra a esquerda, combalida, desesperançada e sem programas e palavras de ordem até agora capazes de mobilizar o seu potencial de luta.

Sou dos que sempre criticaram o distanciamento do PT de suas bases, e, especialmente na atual conjuntura, sua incapacidade de conferir destaque a bandeiras e palavras de ordem que denunciem a fome e o descalabro social que a alimenta. Será que essa gritante omissão não teria a ver com as comoventes indagações de Bucci “como explicar o nosso desprezo pelo sofrimento alheio? Por que não fizemos nada, quando podemos fazer tudo?

Os petistas também não foram capazes de mobilizar a sociedade, principalmente assalariados e socialmente excluídos para exigir que as grandes fortunas, as corporações financeiras e os setores mais abastados das chamadas “classes produtivas” deem sua contribuição, através de taxações compulsórias, ao soerguimento do país.

Mas não podemos chorar sobre o leite derramado, tampouco desconhecer que as urgências do momento não nos permitem sonhar com a tomada instantânea de consciência e com a mobilização imediata das “massas”, de modo que estas possam, agora, garantir a vitória de Lula, na sequencia, a governabilidade.

Tarso Genro observa, com muita pertinência, que, até o momento, foi principalmente o Supremo Tribunal Federal que funcionou como “dique de contenção” do bolsonarismo, fazendo-o recuar nas suas investidas contra a autonomia dessa Corte e na sua ameaça de não mais se comportar “nas quatros linhas da Constituição”. Somente podemos deplorar que o autoritarismo esteja incrustado nas formações de esquerda, cada uma delas tendo um cacique que toma as decisões mais importantes no seu âmbito. Mas também, nesse aspecto, não é possível erradicar em um átimo uma cultura partidária que favorece o personalismo, que se consolidou durante muitos anos e se exacerbou com a ascensão da esquerda ao poder.

Portanto, será a nível político-partidário, de cima para baixo, na “malsinada” superestrutura, que a definição da chapa presidencial irá ocorrer – se é que o martelo já não está batido. Ainda assim, entendemos que a união do centro democrático com a esquerda, representados por Lula e Alckmin, é a estratégia mais indicada, por apresentar uma chapa praticamente imbatível, e pelo que ela representa para a estabilidade do próximo governo.

Isso não significa que se deva assistir, impassível, ao desenrolar das negociações entre os dois candidatos. Todos os setores interessados que o novo mandato do Presidente Lula redefina as políticas públicas, preservando o interesse nacional, os das classes subalternas e o papel ativo do Estado, precisam se mobilizar para que esses temas sejam contemplados em acordo programático transparente e executável?

Não obstante, cultivar ilusões, como vem fazendo Lula, ao prometer que seu novo mandato corresponderá a avanços nas políticas sociais e em outros aspectos de seu futuro governo, somente poderá resultar em prejuízo para a credibilidade dos novos mandatários, e para a governabilidade de sua gestão.

Com efeito, para evitar retrocessos, há um preço a pagar, já que os recursos orçamentários destinados ao soerguimento do país estarão muito aquém do que se necessitaria para produzir os avanços cogitados pelo ex-Presidente. Esse é o passo atrás inevitável para que, mais adiante, sejam dados muitos passos à frente.

Azevedo tem razão em dizer que “não há razão para assombro” pois que composições aparentemente exóticas já ocorreram e veem ocorrendo mundo afora (França, Israel, Chile, Itália etc.), não faltando exemplos históricos de alianças bem sucedidas entre progressistas e conservadores. O próprio Lula fez alianças para governar com partidos e lideranças adversárias históricas do PT (AZEVEDO: 2021).

Se o acordo com Alckmin interessa eleitoralmente o PT – inclusive porque tornaria praticamente certa uma vitória no primeiro turno – o mais importante é que ele facilitaria a condução do próximo governo. Desafio maior do que o de vencer o pleito, será administrar o país em caso de vitória, em especial a economia (SCHWARTSMAN:2021).

Mas não se pode desconsiderar dois subprodutos, nada desprezíveis, da aliança Lula-Alckmin: a modificação da imagem do PT perante a opinião pública, com a desmoralização da narrativa delirante segundo a qual esse partido pretenderia “comunizar o país”, e a consequente desagregação da “terceira via”.

Intuindo o que poderia ocorrer, ninguém menos de que Michel Temer dá a sua involuntária contribuição para o enterro sem glória do discurso maniqueísta hipocritamente assumido pela suposta Terceira Via, que não passa de linha auxiliar do bolsonarismo. Eis o que disse sobre Lula: “é pragmático e homem de diálogo”, afirmando “não se lembrar de ver empresários reclamando do petista quando ele governou o país” (BERGAMO:2021).

Com a aproximação de Alckmin, ínclito representante do centro, em direção à esquerda, a “terceira via” recebe a sua última pá de cal, restando claro perante todos que o embate se dará entre a extrema-direita bolsonarista e as forças políticas democráticas de maior expressão, em torno da chapa Lula-Alckmin. Assim, Lula, o ‘bicho-papão’ que a direita quis demonizar, como suposto representante do extremismo à esquerda, passa a ser, no imaginário do eleitor e na vida real, a única opção para os verdadeiros democratas.

Para concluir: a esquerda poderá, para desmentir de forma ainda mais cabal a construção fantasiosa sobre os perigos de um governo de esquerda, divulgar experiências exitosas como a levada a cabo em Portugal. Nela, as responsabilidades governamentais foram conferidas ao Partido Socialista após o partido firmar com as formações políticas à sua esquerda um compromisso escrito sobre pontos essenciais das políticas públicas a serem implantadas.

Lá como aqui, a direita procurou desmoralizar o que se revelou a mais exitosa experiência governamental da esquerda portuguesa, antes de ela ocorrer, denominando a sua aliança de Geringonça. Não deu certo. Esse nome passou a ser usado pela própria esquerda, e tornou-se sinônimo de acordo político exitoso.

Nesse período, Portugal teve um crescimento econômico maior do que a média das economias europeias; a confiança interna e externa dos investidores atingiu um máximo histórico. Além disso, a taxa de desemprego caiu de metade nos seis anos de governo socialista: lembramos, com o indispensável e renovado apoio do que aqui no Brasil seria denominado de extrema-esquerda. Por último: nesse período, o salário mínimo subiu quarenta por cento, tendo a taxa de pobreza e exclusão social caído para abaixo da média quer da União Europeia, quer da Zona Euro (CÉSAR: 2021).

Como estamos à beira do precipício, não poderemos esperar resultados tão animadores do possível novo governo Lula. O seu período será de reconstrução da economia, do meio ambiente e da democracia. Mas a sua existência será conditio sine qua non para que, na sequência, governos de esquerda, “puro sangue”, possam, no bom sentido, imitar o exemplo de Portugal.

Tudo dependerá do senso crítico e autocrítico e da capacidade dos partidos de esquerda, especialmente o PT, renovar seus mecanismos decisórios, de modo a estabelecer interação permanente com as bases, de tal forma que a participação popular, inclusive nos seus processos decisórios, possa servir de bússola para sua atuação. (BOAVENTURA: 2020).

Se isto ocorrer, as chances de a esquerda “turbinar” o processo eleitoral no Brasil e influenciar o governo eleito, como fizeram os Verdes, o Bloco de Esquerda e os comunistas em Portugal, aproximando as políticas públicas dos interesses das classes dominadas, serão consideráveis. Oxalá as lições que nos ofereceu a Geringonça alcancem a práxis política de nossos partidos de viés socialista e seus líderes.

por Rubens Pinto Lyra em Outras Palavras

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

- Publicidade -spot_img

More articles

- Publicidade -spot_img

Últimas notíciais