Mafalda reprovada e um Enem com “a cara do governo”

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Reportagem acessa documento inédito com as questões censuradas na edição do Exame de 2019 – excluídas da prova sem ouvir servidores do Inep e sem justificativa. De Laerte, Ferreira Gullar a Chico Buarque: veja o que tanto incomoda a Bolsonaro

Mafalda, personagem de quadrinhos criada pelo cartunista argentino Quino, é um sucesso conhecido no mundo inteiro e traduzido em mais de 20 países. Em conversas com a mãe, com o pai e com os amigos de escola, a menina expressa seu inconformismo diante do mundo. Numa dessas tirinhas, publicada originalmente cinquenta anos atrás, Mafalda, prestes a entrar para o jardim de infância, nota que sua mãe está apreensiva com a nova fase na vida da filha. Por isso, Mafalda tenta tranquilizá-la: “Sabe, mamãe, eu quero ir para o jardim de infância e estudar bastante. Assim, mais tarde não vou ser uma mulher frustrada e medíocre como você!” A mãe fica desolada e Mafalda sai andando, feliz. “É tão bom confortar a mãe da gente!”

Famoso, esse diálogo entre Mafalda e sua mãe não agradou a uma comissão montada pelo governo Bolsonaro para avaliar as questões que seriam aplicadas na versão 2019 do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio. “Gera polêmica desnecessária”, concluiu a comissão, ao justificar por que decidiu censurar a questão que trazia a personagem argentina.

Naquele ano, atendendo aos desejos do presidente Jair Bolsonaro, o então presidente do Inep, Marcus Vinícius Rodrigues, montou uma equipe para analisar ideologicamente as questões do exame. O grupo, composto por um procurador de Justiça, um diretor do Inep e um ex-aluno de Ricardo Vélez Rodríguez, então ministro da Educação, se reuniu ao longo de dez dias em março de 2019 e usou carimbos de “sim” e “não” para aprovar ou rejeitar questões. Ao final dos trabalhos, eles excluíram 66 questões da prova, sem consultar a equipe técnica do Inep, que já havia aprovado todos aqueles itens. Numa planilha de Excel, os censores apresentaram justificativas sucintas – e mal explicadas – para suas escolhas.

Como a comissão só usou três palavras, não fica claro o motivo de terem achado “polêmica” a tirinha de Mafalda. É possível deduzir que ficaram incomodados com uma interpretação feminista da história em quadrinhos. Também não se sabe mais detalhes da questão. Nenhuma das perguntas foi divulgada. Isso porque elas não foram deletadas do Banco Nacional de Itens; elas apenas não foram utilizadas na prova daquele ano. No futuro, essas questões poderão aparecer no Enem, e, por isso, precisam permanecer em sigilo.

piauí, no entanto, teve acesso a um documento até hoje não divulgado em que servidores do Inep pediram a reabilitação de parte das questões censuradas em 2019. Esse contraparecer, ainda que não revele todo o conteúdo das perguntas, permite saber os assuntos que incomodaram o governo, assim como as alegações usadas para retirá-los da prova. Os servidores responsáveis pelo Enem pediram que 38 das 66 questões fossem reabilitadas ou reconsideradas, e concordaram com a exclusão de 28 itens. O contraparecer até hoje não foi avaliado pela presidência do Inep. Com isso, as questões censuradas, embora ainda pertençam ao banco de itens, estão num limbo: não estão totalmente descartadas, mas também não podem ser utilizadas até que haja uma nova decisão.

Os registros de 2019 talvez ajudem a elucidar o que o presidente Jair Bolsonaro quis dizer, na última segunda-feira (15), quando afirmou que o Enem deste ano terá “a cara do governo”. A prova será aplicada nos próximos dois domingos, dias 21 e 28 de novembro, em meio a uma crise sem precedentes no Inep, que levou 37 servidores a entregarem seus cargos. Eles acusam o atual presidente do instituto, Danilo Dupas, de assédio moral, de desrespeito às decisões técnicas dos servidores e de interferência indevida no exame.

Assim como Mafalda, a cantora Madonna foi censurada no Enem de 2019. Uma questão da área de linguagens usava a letra da música Papa Don’t Preach para falar de gravidez na adolescência. Na música, Madonna interpreta uma adolescente que confessa para seu pai que está grávida. “Gera polêmica desnecessária”, disseram novamente os censores. Essa foi a justificativa mais usada de todas: serviu para excluir 28 questões da prova.

No contraparecer, os servidores responsáveis pelo Enem pediram que a questão fosse reabilitada. Explicaram que a música ajuda a explorar “as tensões associadas ao contexto” da gravidez adolescente, e que a questão utiliza os conhecimentos de língua estrangeira “como meio de ampliar as possibilidades de acesso a informações, tecnologias e culturas”. Argumentaram em vão, já que até hoje a questão continua barrada no banco de itens.

Outras seis questões foram censuradas por fazerem referência à ditadura militar. Uma delas citava o poema “Maio 1964”, escrito por Ferreira Gullar, que fala sobre a violência e as prisões políticas ocorridas nas semanas seguintes ao golpe. “Mas quantos amigos presos! / quantos em cárceres escuros / onde a tarde fede a urina e terror”, diz uma das estrofes. No gabarito desse item constava apenas que a poesia tratava do “contexto em que o Brasil se encontrava após o golpe militar”. A comissão de censura do Inep, ainda assim, decidiu excluir a questão do exame. A justificativa? “Descontextualização histórica do texto.”

A suposta “descontextualização histórica” também foi usada pelos censores para excluir uma pergunta que se baseava num poema de Paulo Leminski e tratava da ditadura. Uma outra questão, que citava uma letra de música escrita por Chico Buarque (não se sabe qual), foi censurada com a seguinte explicação: “Leitura direcionada da história / Sugere-se substituir ditadura por regime militar.” Os servidores pediram que a exclusão fosse revista.

Em alguns casos, os servidores – talvez sabendo que não poderiam comprar todas as brigas – aceitaram os argumentos dos censores. Na questão que falava de Ferreira Gullar, eles concordaram que o gabarito era inadequado porque, segundo eles, o poema revela o “sentimento” de Gullar, “mas não necessariamente esse texto revela o contexto brasileiro”. Também foi censurada uma questão sobre a prática de tortura pelos militares. Ao consentir com a exclusão da pergunta, os servidores comentaram: “Um instrumento que apresente itens que se refiram apenas a um lado da história se mostraria inadequado e polêmico.”

Não foram poucas as charges barradas na prova do Enem. Uma delas mostrava uma pessoa na igreja, se confessando para um padre. “Padre, eu pequei”, diz o personagem. O padre, sentado em frente ao computador, acessando o Facebook, responde: “Eu já sabia…” A religião não era o assunto central da questão. Segundo os servidores, o item “provoca o estudante a analisar criticamente e lançar mão de outros recursos linguísticos”. Ainda assim, a comissão de censura excluiu a questão, dizendo que ela “fere o sentimento religioso”.

Charge censurada no Enem em 2019 — Crédito: Reprodução/Autor desconhecido

A mesma justificativa foi usada para censurar uma poesia de Manoel de Barros, usada em uma das questões. A partir da descrição feita pelos servidores, pode-se deduzir que se tratava do poema VII, de O Livro das Ignorãças, em que Barros faz alusão à Bíblia: “No descomeço era o verbo”, diz o primeiro verso do poema. Diante dessa heresia, os censores excluíram a questão e justificaram: “Fere sentimento religioso e a liberdade de crença.”

A comissão de censura do Inep usou a palavra liberdade para proteger sentimentos religiosos. Mas ignorou-a ao excluir da prova de ciências humanas uma charge da cartunista Laerte que, segundo o registro dos servidores, propunha uma “reflexão crítica sobre o reconhecimento à diversidade na sociedade contemporânea”. Ao censurar a charge, a comissão fez o seguinte comentário: “Leitura direcionada da história / Direcionamento do pensamento.” Ao excluir uma outra questão, dessa vez na prova de matemática, os censores do Inep foram além: disseram que o item “gera polêmica desnecessária em relação à ideia de casal”.

Não faltam exemplos exóticos. Uma outra questão, dessa vez na prova de ciências da natureza, falava sobre os cuidados com relação ao vírus HIV e afirmava que o uso de camisinha é “o meio de prevenção mais barato e eficaz” contra a Aids. “Gera polêmica desnecessária / Direcionamento do controle de saúde”, assinalou a comissão de censura do Inep. Na mesma toada, foi excluída uma questão que falava sobre a proliferação de doenças. O item explicava que a hanseníase tende a se espalhar com facilidade em presídios no Brasil, devido à superlotação e às condições precárias em que vivem os presos. “Gera polêmica desnecessária em relação ao sistema penal”, disse a comissão.

Nem mesmo uma questão sobre agricultura escapou à caneta dos censores. Ao se deparar com uma charge sobre a produção de milhos transgênicos, os bolsonaristas não titubearam: “Gera polêmica desnecessária em relação à produção no campo.” A questão foi excluída.

A comissão de censores foi fiel ao pensamento de Bolsonaro. Questões sobre escravidão, violência policial ou movimentos sociais foram parar na gaveta em 2019. Três questões que falavam de “conflitos sociais” foram excluídas do Enem com a alegação de que faziam “leitura direcionada da história” (essa justificativa foi usada para censurar 19 itens). Um item que falava sobre a abolição da escravatura e a “persistência das condições precárias dos pobres negros no Brasil” foi excluída da prova porque, segundo a comissão, houve uma “descontextualização histórica do texto”. Uma outra questão que falava sobre segurança pública mencionava, em uma das alternativas de resposta, a violência da polícia na Bahia. Também foi censurada. “Ofensivo à força policial baiana”, explicou o trio de censores.

Discutir feminismo foi proibido na prova. Uma questão de ciências humanas que falava sobre a Marcha das Vadias, mostrando uma foto de mulheres de sutiã durante uma manifestação do grupo, foi barrada por gerar “polêmica desnecessária”. Outra questão que debatia a maioridade penal foi excluída do exame. “Gera polêmica desnecessária a favor da não redução da maioridade penal”, escreveu a comissão de censura, alinhada com o presidente. Naquele ano, Bolsonaro pressionava o Senado para aprovar um projeto que reduzisse a maioridade penal para crimes hediondos, uma velha bandeira de campanha.

Também houve cuidado com os assuntos de política externa. Uma questão da área de ciências humanas que falava sobre as relações entre o governo Donald Trump e Israel foi cortada do exame. A justificativa da comissão de censura foi a seguinte: “Leitura direcionada da história / Interferência desnecessária na soberania de outro país.” Já uma pergunta que falava sobre a Liga das Nações e a “implantação da sociedade judaica na Palestina do início do século XX” – tema relevante para uma prova de ciências humanas – foi excluída porque, segundo a comissão, fazia “leitura direcionada de geografia / história”.

Os censores fizeram questão de mostrar sua preocupação com a juventude. Excluíram da prova uma questão de ciências da natureza que versava sobre o canibalismo entre animais. “Induz o jovem a comportamento antissocial”, justificou a comissão de censura do Inep.

O governo também garantiu que não se falasse sobre armas de fogo no Enem. Na área de linguagens, um texto falava sobre uma tragédia ocorrida em 2013, na cidade de Burkesville, nos Estados Unidos: um menino de 5 anos disparou acidentalmente um fuzil que havia ganhado de presente e matou sua irmã mais nova dentro de casa. O objetivo do item, segundo os servidores, era discutir o risco existente “em ambientes domésticos em que há a possibilidade de acesso à arma por crianças”. Mas a comissão de censura do Inep não achou que o tema deveria ser apresentado aos 5,1 milhões de alunos que se inscreveram no Enem em 2019. A questão foi banida da prova sob a alegação quase onipresente nas justificativas dos censores: “polêmica desnecessária.”

Por Luigi Mazza, na Piauí

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