Médicos conservadores e pró-cloroquina têm ligação com Ministério da Saúde

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Ainda Há Bem espalhou dez outdoors antiaborto e em defesa de um suposto tratamento precoce para Covid-19 em Fortaleza.A médica Mayra Pinheiro virou uma verdadeira porta-voz do governo federal para o uso do chamado ‘tratamento precoce da Covid-19’, cuja eficácia nunca foi comprovada (Twitter Reprodução)

“Quem defende a vida não pode ser a favor do aborto”; “atendimento precoce salva sua vida”. Essas mensagens estão em dez outdoors espalhados por Fortaleza (CE). A ação é do Ainda Há Bem, um movimento formado por médicos conservadores do Ceará que surgiu de forma um tanto misteriosa. Sem divulgar a lista de seus integrantes, lançaram, em pleno feriado da Semana Santa, uma articulada campanha de marketing, com publicações em redes sociais, mídia exterior, jornais e distribuição de alimentos em bairros periféricos. Embora se diga apartidário, o grupo, que associa aborto e um suposto tratamento precoce contra a Covid-19, tem ligações com gestores do Ministério da Saúde e com o grupo político do senador Eduardo Girão (Podemos).

Girão é autor do Projeto de Lei (PL) 5.435/2020, que ficou conhecido como “bolsa estupro”, porque queria criar um incentivo financeiro para que as vítimas de estupro não abortassem. Esse dispositivo foi retirado do PL depois da grande repercussão na mídia, mas os movimentos feministas defendem que a proposta seja cancelada por completo. “A ‘bolsa estupro’ é apenas um detalhe sórdido em um projeto cujo objetivo final é criminalizar ainda mais o aborto no Brasil”, comentou Jolúzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea). 

Nas redes sociais, o Ainda Há Bem se apresenta como um movimento estadual de médicos cristãos que pretende se tornar nacional. O site do movimento foi registrado no fim de março em nome da Inovates, uma organização que trabalha com o desenvolvimento de soluções sustentáveis para empresas. O responsável pelo domínio, de acordo com o site Registro.BR, é Gabriel Fabres Beliqui, diretor-presidente da Inovates. No registro aparece também o nome de Vinícius Nunes Azevedo, diretor do Ministério da Saúde. Ele é sócio de Gabriel Beliqui e de Anselmo Buss Júnior (o presidente da Inovates) na Inovates Consult, que tem outro CNPJ, mas o mesmo telefone e o mesmo endereço eletrônico da Inovates no cadastro da Receita Federal.

Vinícius foi nomeado diretor do Departamento de Gestão da Educação na Saúde (Deges) em julho do ano passado, ainda na gestão do ministro Eduardo Pazuello, substituído pelo médico Marcelo Queiroga em março deste ano. Chegou a ser exonerado do cargo em fevereiro pelo ministro chefe da Casa Civil, general Braga Netto, mas a decisão foi revista poucos dias depois. A reportagem procurou o Ministério da Saúde para esclarecimentos, mas não obteve retorno até a publicação.

Em abril, pouco depois da aparição do Ainda Há Bem, Marcelo Queiroga designou Vinícius como substituto eventual da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, atualmente Mayra Pinheiro, a pediatra cearense conhecida como “capitã cloroquina”. Mayra ganhou relevância no Ministério da Saúde durante a gestão de Pazuello, quando virou uma espécie de porta-voz do chamado “tratamento precoce da Covid-19”, que inclui ivermectina e cloroquina – medicações sem eficácia comprovada no combate à doença e que têm sido associadas a sérios efeitos colaterais, como hepatite.

A secretária Mayra divulgou o lançamento do Ainda Há Bem no seu perfil do Facebook. A postagem, em 31 de março, mostra os outdoors que já estavam sendo instalados em várias avenidas de grande circulação de Fortaleza e no município de Juazeiro do Norte, região do Cariri cearense. Cada outdoor custa aproximadamente R$ 750, segundo funcionários da Divulcart, empresa que assina as peças. Porém, ainda de acordo com as fontes consultadas pela reportagem, as dez peças da campanha de mídia exterior do Ainda Há Bem foram instaladas “sem custo, a pedido de representantes da empresa Coco Bambu”. A rede de restaurantes nascida no Ceará pertence ao empresário bolsonarista Afrânio Barreira, que, assim como o presidente, é devoto da cloroquina.

Pelo Whatsapp, Gabriel Beliqui informou que é “apoiador do projeto” que chamou de “bela iniciativa”. Ele disse que ajudou “apenas com o registro do domínio” do movimento Ainda Há Bem e negou que a Inovates tenha envolvimento institucional com o grupo, embora o site esteja registrado com o CNPJ da empresa.

 

Outdoors aconselhando o ‘atendimento precoce’ foram espalhados palas ruas de Fortaleza, no Ceará (Reprodução/Facebook)Outdoors aconselhando o ‘atendimento precoce’ foram espalhados palas ruas de Fortaleza, no Ceará (Reprodução/Facebook)

Senador antiaborto e secretária pró-cloroquina

Em 17 de março, pouco antes do lançamento do Ainda Há Bem, a secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, se reuniu com o senador Eduardo Girão (Podemos) e com o presidente do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde), Wilames Freire Bezerra, que são seus conterrâneos. A reportagem solicitou detalhes sobre o assunto da reunião, mas não recebeu resposta do Ministério da Saúde. 

A relação entre o empresário e senador Eduardo Girão e a secretária bolsonarista é antiga. Ela se candidatou ao Senado em 2018, formando chapa com ele, que conseguiu se eleger na época pelo Pros. Eles compartilham pautas conservadoras e são nomes fortes do ativismo antiaborto no Ceará. Como presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará, ela mobilizou apoio para o movimento Pró-Vida de Fortaleza.

Desde 2008, a capital cearense é palco da Marcha pela Vida, um dos principais eventos do gênero Brasil, apoiado por artistas de relevo, como a cantora Elba Ramalho. A organização é do Movida (Movimento a Favor da Vida), pertencente a Eduardo Girão. Antes de assumir o mandato, Girão frequentava manifestações e audiências públicas, algumas ao lado da atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. 

 

Mayra Pinheiro e Eduardo Girão em vídeo da Associação Médicos pela Vida (Reprodução)Mayra Pinheiro e Eduardo Girão em vídeo da Associação Médicos pela Vida (Reprodução)

Conexões com o Sindicato dos Médicos do Ceará

No Ceará, o sindicato dos médicos ainda é comandado pelo grupo político ligado à secretária Mayra Pinheiro. Conselheiro fiscal da atual gestão, o cirurgião Marcelo Esmeraldo Holanda apresenta o movimento de médicos anti-aborto e pró-cloroquina Ainda Há Bem em um vídeo.  “Nós somos contra o aborto e a favor da vida porque somos cristãos por convicção”, diz na gravação. Ao lado dele está Fernando Dantas, da Associação Anjo Rafael, por meio da qual o grupo de médicos antiaborto distribuiu alimentos na comunidade do Barroso, em Fortaleza.

“O grupo que está no comando do sindicato é muito ligado a pautas reacionárias. Defende cegamente Bolsonaro (mesmo com mais de 380 mil mortes por Covid-19 no país), tratamento profilático ou precoce com medicações que as evidências científicas já demostraram ser ineficazes e inadequadas”, afirma  o Coletivo Rebento/Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS do Ceará, que reuniu assinaturas de 1.113 médicos do estado, em oposição a uma nota de apoio a Bolsonaro lançada por médicos de Fortaleza, cuja lista de assinaturas inclui o vice-reitor da Universidade Federal do Ceará, o médico José Glauco Lobo Filho; a secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro; Marcelo Esmeraldo e Edmar Fernandes de Araújo Filho, que é diretor financeiro do Sindicato dos Médicos do Ceará.

Edmar foi presidente da entidade na gestão anterior e candidato a vereador pelo Pros, mesmo partido que elegeu Eduardo Girão no Senado. Em seu perfil no Instagram, ele defende o uso profilático de azitromicina e ivermectina no combate à Covid-19, ambos remédios do chamado “kit covid”, que, como já dito, não têm eficácia comprovada contra a doença.

Por telefone, a comunicação do sindicato dos médicos do Ceará informou que o Ainda Há Bem é um movimento independente e que a adesão do médico Marcelo Esmeraldo não tem relação com a entidade. A comunicação da entidade disse não ter informações sobre a participação de outros integrantes da diretoria no movimento de médicos conservadores. O Ainda Há Bem informou, pela página do Facebook, que responderia os questionamentos da reportagem por telefone, mas não fez contato até a publicação.

Até o momento da publicação, não recebemos informações do Ministério da Saúde sobre o envolvimento dos seus servidores no movimento de médicos pró-cloroquina e contra o aborto. Também não conseguimos contato com o diretor Vinícius Nunes Azevedo.

Médicos conservadores se articulam no Brasil

O Ainda Há Bem não é o único movimento de médicos conservadores articulado em defesa de tratamentos ineficazes contra a Covid-19 no Brasil. O próprio Conselho Federal de Medicina tem se alinhado com o discurso bolsonarista pró-cloroquina. Em fevereiro deste ano, 11 grandes jornais brasileiros publicaram um informe publicitário pró-cloroquina da Associação Médicos pela Vida, que é bancada por indústrias farmacêuticas, como revelou o Estado de S. Paulo e tem manifestos na internet com mais de quatro mil assinaturas.

A secretária Mayra Pinheiro e o senador Eduardo Girão também estão envolvidos na Associação Médicos pela Vida. Eles até mesmo aparecem em um vídeo do movimento. “Todo brasileiro tem direito à sua própria autonomia de receber as medicações cloroquina e hidroxicloroquina associadas à azitromicina”, diz Mayra no vídeo. “A gente vai garantir isso ao povo cearense”, completa.

“Nunca tínhamos visto tantos movimentos articulados de médicos conservadores no Brasil como há agora”, comenta Cristião Rosas, ginecologista obstetra, representante da Rede Médica pelo Direito de Decidir. “Esses profissionais têm se empoderado politicamente e articulado redes estaduais e nacionais, com forte discurso religioso”, observa.

Cristião Rosas alerta que políticas públicas de saúde – como o enfrentamento da Covid-19 e do aborto, que é legalizado no Brasil quando a gestação traz riscos para a saúde da mulher, é resultante de um estupro ou se o feto for anencéfalo – não podem ser pautadas pela religião. “Sou presbiteriano, mas entendo que descriminalizar o aborto é reduzir as mortes das mulheres, sobretudo negras e pobres. Também sou médico pela vida, mas pela vida das mulheres. Ser pró-vida não é ser antidireitos”, diz.

Publicado originalmente em Agência Pública.

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