Reportagem do Le Monde revela como o ex-juiz Sergio Moro, condenado pelo Supremo Tribunal Federal por parcialidade, trabalhou para empobrecer o Brasil
Na edição de sábado (10), o jornal francês Le Monde destacou como a Operação Lava Jato, chefiada pelo procurador Deltan Dallagnol e orientada pelo ex-juiz Sergio Moro, declarado pelo Supremo Tribunal Federal como parcial, agiu para destruir o Brasil e beneficiar os Estados Unidos.
No Brasil, o naufrágio da operação anticorrupção “Lava Jato”
Um magistrado considerado “tendencioso”, às vezes ilegal e à sombra dos Estados Unidos: a maior operação anticorrupção da história do Brasil tornou-se seu maior escândalo jurídico. Meses de investigação foram necessários para que o “Le Monde” traçasse o outro lado dessa cena.
Por Gaspard Estrada e Nicolas Bourcier
Existe algo podre no Reino do Brasil. Todo o país é atingido por uma série de crises simultâneas, uma espécie de tempestade perfeita – recessão econômica, desastres ambientais, polarização extrema da vida política, Covid-19… A isso deve ser adicionado o naufrágio do sistema judicial. Um trovão adicional em um céu já pesado, mas carregado de esperança há sete anos, quando um jovem magistrado chamado Sergio Moro lançou, em 17 de março de 2014, uma vasta operação anticorrupção chamada “Lava Jato”, envolvendo a gigante do petróleo Petrobras, construtoras e um número expressivo de lideranças políticas.
De uma só tacada, dizia-se, o requerente e sua equipe de investigadores, apoiados pelo judiciário e pela mídia, iam limpar e salvar o Brasil, finalmente! Foram emitidos 1.450 mandados de prisão, apresentadas 533 denúncias e 174 pessoas foram condenadas. Nada menos que 12 chefes ou ex-chefes de Estado brasileiros, peruanos, salvadorenhos e panamenhos foram implicados. E a colossal soma de 4,3 bilhões de reais (610 milhões de euros) foi recuperada dos cofres públicos de Brasília. Até o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, adorado pela maioria de opinião, não resistiu à onda, e foi parar atrás das grades.
E então, de repente, quase nada. Em menos de dois meses, a extensa investigação desmoronou como uma explosão. No início de fevereiro, o Ministério Público Federal deixou estourar o anúncio do fim do “Lava Jato” , desmontando-a com uma frieza que não se conhecia sequer a principal equipe de promotores. Em seguida, um juiz do Supremo Tribunal Federal ordenou a anulação das acusações contra Lula. Quinze dias depois, em 23 de março, foi a vez da mais alta corte brasileira decidir que o juiz Moro foi “tendencioso” durante sua investigação.
Irregularidades e confusões
A maior investigação anticorrupção do mundo, como a chamou um magistrado sênior, tornou-se o maior escândalo jurídico da história do país. Depois de mais de sete anos de processos, o próprio cerne da Justiça brasileira acaba de se retrair tanto na substância quanto na forma, abrindo um abismo de questionamentos sobre seus métodos, seus meios e suas escolhas.
É certo que o site de notícias The Intercept – criado por Glenn Greenwald, jornalista americano radicado no Rio de Janeiro e o bilionário do Vale do Silício Pierre Omidyar – não parou, nos últimos dois anos, de apontar irregularidades e equívocos à investigação. Cento e oito artigos publicados até o momento, por sua vez, levantaram o véu sobre as mensagens comprometedoras trocadas entre promotores e o juiz Moro, lançando luz sobre os vínculos mantidos, às vezes fora de qualquer quadro legal, por investigadores brasileiros com agentes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ), ou mesmo sublinhou o viés político de alguns integrantes da “Lava Jato”, obcecados com a ideia de bloquear o Partido dos Trabalhadores (PT).
A independente Agência Publica, agência de jornalismo investigativo, fundada em São Paulo por repórteres mulheres, também mostrou como o processo foi marcado por irregularidades e inúmeras confusões. Após essas revelações deslumbrantes, no entanto, permanece um forte gosto pelo inacabado, a sensação de um julgamento fracassado e uma bagunça ontológica para uma investigação que queria ser um modelo de seu tipo.
Para compreender essas voltas e reviravoltas sucessivas, temos que voltar às origens desta novela político-jurídica. Estabelecer o arcabouço e distinguir como seus principais atores encontraram subsídios e arcabouço jurídico com juristas e personalidades influentes, primeiro no Brasil, depois com agentes de uma administração norte-americana que desejam continuar seu trabalho de aproximação com seu grande vizinho do sul.
Quando assumiu a Presidência da República em 2003, Lula sabia que era esperado na virada, principalmente no combate à corrupção.
Meses de investigação, entrevistas e pesquisas foram necessários para que o Le Monde desenhasse o outro lado dessa cena. Se algumas áreas permanecem nas sombras, alguns episódios de Lava Jato evidenciam cumplicidades vergonhosas. Outros, ao contrário, revelam como certos juízes e investigadores têm por vezes aproveitado a sua independência – muito real – a serviço de um projeto político, embarcando numa corrida louca, estabelecendo os motivos, os meios e os desmentidos. “Foi como uma bola atirada em um jogo de boliche”, admite, em condição de anonimato, um ex-assessor próximo ao governo Obama, responsável por questões jurídicas em relação à América do Sul. Um “jogo” que virou armadilha.
Quando assumiu a Presidência da República em 2003, Lula sabia que era esperado que mudasse. Principalmente no que diz respeito ao combate à corrupção, antigo demônio da vida política brasileira e um de seus principais argumentos de campanha. Assim, confiou ao seu novo ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, a tarefa de reformar o sistema judiciário, aceitando a nomeação como chefe de acusação de um procurador nomeado pelos seus pares, enquanto os seus antecessores costumavam escolher quem fosse mais complacente com o poder.
Uma das primeiras traduções concretas desse compromisso é a criação de cursos dedicados ao combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado. Sergio Moro seria um dos primeiros juízes indicados para presidir esses tribunais. Ao mesmo tempo, uma estratégia nacional de luta contra a lavagem de dinheiro e a corrupção foi posta em prática com o objetivo assumido de “facilitar as trocas informais” dentro da administração, e tornar mais eficiente o exame dos casos.
O jovem magistrado radicado em Curitiba, responsável à época do caso Banestado, investigação sobre lavagem de dinheiro em banco público regional, está entre os mais fervorosos adeptos dessa estratégia, que permite obter com mais rapidez o fornecimento de impostos e ativos informações e compartilhá-las com várias autoridades, inclusive estrangeiras.
Medo do terrorismo
É verdade que, no mundo da cooperação judiciária internacional, a luta contra a corrupção, a lavagem de dinheiro e o terrorismo ocupa um lugar especial. Após os ataques de 11 de setembro, os Estados Unidos estavam procurando por todos os meios neutralizar ataques futuros, em particular visando as redes financeiras dessas organizações. Porém, no Brasil, a inteligência americana estava preocupada com a presença, na tríplice fronteira entre Argentina, Paraguai e Brasil, de possíveis células do Hezbollah, entidade apoiada pelo Irã e colocada por muito tempo na lista negra americana.
O governo Bush busca então aumentar a ação contraterrorista de Brasília que, na época, polidamente se recusa a fazê-lo. Para contornar a frieza das autoridades brasileiras – que consideram que o risco terrorista é deliberadamente exagerado pelos Estados Unidos – a embaixada americana em Brasília estava tentando criar uma rede de especialistas locais, capazes de defender as posições americanas “sem parecer peões” de Washington, para usar a frase do embaixador Clifford Sobel em um telegrama diplomático americano que o Le Monde pôde consultar.
Sergio Moro, que estava então colaborando ativamente com as autoridades americanas no caso Banestado, é então abordado para participar de um programa de relacionamento financiado pelo Departamento de Estado. Ele aceita. Foi organizada então uma viagem aos Estados Unidos em 2007, durante a qual fez uma série de contatos dentro do FBI, do DoJ e do Departamento de Estado, ou seja, relações exteriores.
Em dois anos, a Embaixada dos Estados Unidos em Brasília formou uma rede de magistrados e advogados convencidos da relevância do uso das técnicas americanas.
A Embaixada dos Estados Unidos está procurando aumentar sua vantagem. No desejo de estruturar uma rede alinhada às suas orientações no meio jurídico brasileiro, cria nela o cargo de assessor jurídico ou assessor jurídico residente. A escolha recaiu sobre Karine Moreno-Taxman, procuradora especializada na luta contra a lavagem de dinheiro e o terrorismo.
Desde 2008, esta especialista desenvolve um programa denominado “Projeto Pontes” que, a fim de apoiar as necessidades das autoridades judiciárias brasileiras, organiza cursos de formação que lhes permitem se apropriar dos métodos de trabalho americanos (grupos de trabalho anticorrupção) , a sua doutrina jurídica (as delações premiadas, em particular), bem como a sua vontade de partilhar informação de forma “informal”, isto é, fora dos tratados bilaterais de cooperação judiciária.
A embaixada passa então a aumentar o número de seminários e reuniões com juízes, promotores e altos funcionários especializados, com foco nos aspectos operacionais da luta contra a corrupção. Sergio Moro participa como palestrante. No espaço de dois anos, o trabalho de Karine Moreno-Taxman dá frutos: a embaixada constitui uma rede de magistrados e advogados convencidos da relevância do uso das técnicas americanas.
Em novembro de 2009, o assessor jurídico da embaixada é convidado a falar na conferência anual de policiais federais brasileiros. O encontro estava sendo realizado em Fortaleza, uma cidade litorânea e sem charme do Nordeste do Brasil, onde cerca de 500 profissionais da manutenção da ordem, da segurança e do direito são convidados a debater o tema “luta contra a impunidade”.
“Em um caso de corrupção, é preciso correr atrás do ‘rei’ de forma sistemática e constante para derrubá-lo”, afirma o assessor jurídico da embaixada dos Estados Unidos em Brasília
Sergio Moro está lá, presente desde a primeira hora do congresso. É ele mesmo quem abre os debates, pouco antes de passar a palavra ao deputado norte-americano. O juiz de Curitiba se lança citando o ex-presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt, depois ataca desordenadamente os crimes do colarinho branco, a ineficiência e as falhas de uma justiça brasileira doente, segundo ele, de um sistema de “recursos infinitos” muito favorável aos advogados de defesa. Ele defende a reforma do Código Penal, destacando que as discussões nessa direção estão ocorrendo paralelamente no Congresso de Brasília. Aplausos na sala.
Na frente da platéia, a senhora Moreno-Taxman está sentada. Ela fala em um tom muito menos seco e sério do que seu antecessor, mas tão direto: “Em um caso de corrupção” – ela diz – “você tem que correr atrás do ‘rei’ de uma maneira sistemática e constante para derrubá-lo”. E é mais explícita: “Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção, é necessário que o povo odeie essa pessoa”. Finalmente: “A empresa deve sentir que realmente abusou de sua posição e exigir sua condenação”. Mais uma vez aplausos do público.
O nome do presidente Lula, enredado no escândalo do “Mensalão”, caso de suborno e compra de votos no Congresso, revelado em 2005, não é citado em nenhum momento. Mesmo que ele esteja presente na mente de todos, ninguém imagina então que este se tornará o “rei” designado pela senhora Moreno-Taxman. No entanto, é isso que vai acontecer.
Espionagem ilegal
Por enquanto, o governo petista não vê nada chegando. Três meses depois da reunião de Fortaleza, em vez de fazer uma reforma política para acabar com o financiamento ilegal de campanhas eleitorais, o partido prefere fazer promessas à opinião pública apresentando um projeto de lei anticorrupção. Espera, assim, responder às críticas recorrentes desde que o PT assumiu o poder e ganhar influência na cena internacional ao cumprir, em particular, os padrões da OCDE, onde o grupo de trabalho contra a corrupção (Grupo de Trabalho da OCDE sobre Suborno em Transações Comerciais Internacionais), fortemente influenciada pelos Estados Unidos, está pressionando o Brasil a reformar sua legislação nessa área.
Sergio Moro, por sua vez, se posiciona publicamente no sentido de endurecer as penas previstas no projeto de lei e garantir a adoção das confissões premiadas como instrumento jurídico válido. Aquele que agora se tornou uma das figuras do debate brasileiro sobre questões de lavagem de dinheiro usa métodos que beiram a legalidade – usurpação das prerrogativas do Ministério Público, instrução de ordens preventivas de prisão apesar da oposição de autoridades superiores, escuta telefônica de advogados ou personalidades com parlamentares imunidade – e com isso desperta a desconfiança de alguns dos magistrados.
“Os crimes ligados ao poder são por natureza, tendo em vista a posição de seus autores, difíceis de comprovar por meio de provas diretas”, daí “a maior elasticidade na aceitação de provas por parte do Ministério Público”
O magistrado de Curitiba é, porém, nomeado, no início de 2012, desembargador assistente de Rosa Weber, recém-eleita juíza do Supremo Tribunal Federal. Esta última, especialista em direito do trabalho, pretendia ter um perito em direito penal que a pudesse apoiar no julgamento final do “Mensalao”. Sergio Moro escreverá assim em parte a polêmica decisão da juiza neste caso. “Os crimes ligados ao poder são por natureza, tendo em vista a posição de seus autores, difíceis de comprovar por meio de provas diretas”. Portanto, especifica o texto: “a maior elasticidade na aceitação de provas por parte da acusação”. Um precedente que será levado ao pé da letra pelo juiz e pelos promotores de “Lava Jato” à época da denúncia e condenação de Lula.
O processo foi iniciado em 2013. Os parlamentares brasileiros, que debatem o projeto de lei anticorrupção há três anos, decidiram votar em meados de abril. Para ficarem bem em relação ao grupo de trabalho da OCDE, eles incluem a maioria dos mecanismos previstos em uma lei americana, que está começando a ser falada no meio empresarial: a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA).
Criada em 1977 a partir de Watergate, o objetivo principal dessa lei era combater atos de corrupção de empresas americanas no exterior, impondo-lhes sanções financeiras. Até o final da Guerra Fria, isso raramente era aplicado. Tudo mudou na década de 1990. O governo Clinton começou a reformar a FCPA, o que iria acompanhar a adoção de uma convenção anticorrupção dentro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a fim de “multilateralizar os efeitos”, de acordo com um telegrama da embaixada americana.
É o critério de competência da lei que detona: qualquer empresa que tenha qualquer ligação com os Estados Unidos e que tenha pago um funcionário estrangeiro para fins de corrupção pode ser objeto de uma acusação. Qualquer vínculo é entendido como o trânsito de fundos por uma conta bancária americana, ou a transmissão de um e-mail cujo servidor esteja localizado em solo americano.
Na verdade, praticamente todas as empresas ao redor do mundo estão expostas à lei, incluindo aquelas que competem com empresas dos Estados Unidos por grandes contratos, como venda de armas e equipamentos, construção e serviços financeiros. Esse desenvolvimento levará a um aumento das penalidades vinculadas à implementação da FCPA: de alguns milhões de dólares na década de 1990, passamos a vários bilhões na década de 2010. E, neste contexto, a América Latina em geral e o Brasil em particular será de interesse para os promotores do DoJ.
Violações das regras de procedimento
Estes últimos, que dependem do poder executivo, embora sejam considerados “autônomos” do resto da administração americana, sabem que a próxima implementação da lei anticorrupção brasileira lhes permitirá sancionar as empresas brasileiras nos termos da lei FCPA. Em novembro de 2013, por ocasião da Conferência da FCPA, o encontro anual de personalidades do mundo jurídico americano, o procurador-geral adjunto do DoJ, James Cole, anunciou que o chefe da unidade da FCPA dos Estados Unidos faria uma viagem ao Brasil na esteira, com o objetivo de “treinar promotores brasileiros” no uso da lei.
Poucos meses antes, Sergio Moro retomou um antigo caso de lavagem de dinheiro, ligado ao “Mensalão”, que deixava de lado desde 2009. Diz respeito às relações de vários intermediários desonestos (Carlos Chater e Alberto Youssef), com José Janene, membro do Partido Progressista (partido de direita que apoia a coligação governamental). O juiz curitibano está interessado nos investimentos dos dois empresários na empresa Dunel Indústria, feitos por meio das contas bancárias de um posto de gasolina chamado “Posto da Torre”, em Brasília. A pedido do senhor Moro, Chater é grampeado de julho a dezembro de 2013: trata-se de saber se esses investimentos servem para mascarar possíveis atos de lavagem de dinheiro em favor do senhor Janene.
É fazendo a ligação entre a Dunel Indústria, com sede no Estado do Paraná, e o posto de abastecimento, por onde passam grandes somas, inclusive para determinados executivos da Petrobras, que Sergio Moro afirma sua competência para julgar o caso. Manipulação curiosa: a maior parte dos atos de lavagem de dinheiro e corrupção de MM. Chater e Youssef acontecem em São Paulo. De acordo com o processo penal brasileiro, isso deveria ter levado um juiz daquela jurisdição a tratar do caso – e não Sergio Moro. Mas o magistrado de Curitiba entendeu os meandros do judiciário brasileiro. Ele sabe que, ao ocultar a localização dessas empresas de fachada, poderá manter o controle da investigação. Desde que os tribunais superiores o permitam. E é isso que vai acontecer.
Seduza a opinião pública
A partir de agosto de 2013, alguns juristas viram o perigo decorrente da implementação da nova lei anticorrupção. Uma nota premonitória, publicada pelo escritório de advocacia americano Jones Day, prevê que terá efeitos deletérios para a justiça brasileira. Alerta contra seu funcionamento “imprevisível e contraditório” devido ao seu caráter de “influência” no plano político, bem como a ausência de procedimentos de “aprovação ou controle” . Segundo o documento, “cada membro do Ministério Público é livre para iniciar o processo segundo as suas próprias convicções, com reduzida possibilidade de ser prevenido por uma autoridade superior” .
Apesar dos alertas, o governo e seus aliados seguem em frente. A presidente Dilma Rousseff, sempre nessa vontade de acariciar uma opinião pública cada vez mais crítica, decide até endurecer seus critérios de aplicabilidade. Os parlamentares acreditam que esta lei não os afetará mais do que as anteriores.
Após seis meses de investigação, o juiz de Curitiba tem informações suficientes para expedir os primeiros mandados de prisão. Em 29 de janeiro de 2014, a lei anticorrupção entra em vigor. No dia 17 de março, o grupo de trabalho “Lava Jato” é formalmente criado pelo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot. À sua cabeceira, ele nomeia o procurador Pedro Soares, que se opõe a que Sérgio Moro receba o tratamento do caso, uma vez que os supostos crimes de Alberto Youssef ocorreram fora de Curitiba. Sua abordagem falhará. Ele será substituído por outro procurador, Deltan Dallagnol, 34, que não só será favorável a Moro no caso, mas também se tornará o principal sustentáculo do magistrado.
Para os Estados Unidos, trata-se de reduzir a influência geopolítica do Brasil na América Latina, mas também na África
Desde o nascimento, a Lava Jato atrai a atenção da mídia. A orquestração das prisões e o ritmo das acusações do Ministério Público e de Moro transformam a operação em uma verdadeira novela política e judicial fora do comum. Enquanto o Brasil se prepara para embarcar em uma campanha presidencial e legislativa, a elite política e econômica do país de repente parece tomada de medo com a ideia de ser varrida por essa cascata interminável de revelações. E a lista continua.
Ao mesmo tempo, o governo de Barack Obama viu um aumento nos protestos de países aliados, destacando-se a França, preocupada com a proliferação de sanções impostas pelo DoJ, no âmbito do combate à corrupção, visando certas bandeiras nacionais, como o Grupo Alstom. Para sinalizar seu apoio político às ações anticorrupção empreendidas por seu governo, a Casa Branca publicou uma “agenda anticorrupção global” em setembro de 2014.
Lá está escrito que a luta contra a corrupção no exterior (por meio da FCPA) pode ser usado para fins de política externa, a fim de defender os interesses de segurança nacional. Um mês depois, Leslie Caldwell, então procurador-geral adjunto do DoJ, faz um discurso na Duke University: “A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que prestamos à comunidade internacional, mas sim uma ação de fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses de segurança nacional e a capacidade de nossas empresas americanas de competir no futuro”.
No terreno sul-americano, as gigantes brasileiras da construção Odebrecht, OAS ou Camargo Correa, em plena expansão, entraram diretamente na linha de fogo das autoridades norte-americanas. Não só porque ganham mais contratos, mas também porque participam do fortalecimento da influência geopolítica do Brasil na América Latina e na África, ao financiar, ilegalmente na maioria das vezes, as campanhas eleitorais de personalidades próximas ao PT, lideradas pelo consultor de comunicação da legenda, João Santana. Só em 2012, o estrategista eleitoral, confortavelmente financiado pela Odebrecht, organizou três campanhas presidenciais na Venezuela, República Dominicana e Angola, sem falar no município de São Paulo. Todas vencidas pelos candidatos de Santana.
Promessas de boa vontade
Diante de diversos jornalistas que integram o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), Thomas Shannon, embaixador americano estacionado em Brasília de 2010 a 2013, disse que o projeto político brasileiro para a integração econômica da América do Sul suscita sérias preocupações no Departamento de Estado. Este último “considerou o desenvolvimento da Odebrecht parte do projeto de poder do PT e da esquerda latino-americana”, afirma o diplomata.
“Se somarmos a tudo isso as péssimas relações pessoais entre Barack Obama e Lula, e um aparato petista que ainda desconfia do vizinho norte-americano, podemos dizer que tínhamos trabalho a fazer para remediar a situação. Barre” , reconhece um ex-membro do DoJ encarregado de casos latino-americanos. A tarefa será ainda mais difícil a partir das revelações do informante Edward Snowden, em agosto de 2013, sobre a espionagem da Agência de Segurança Nacional Americana (NSA) contra Dilma Rousseff, que sucedeu Lula em 2011, e a Petrobras, ainda mais frias as relações entre Brasília e Washington.
Várias alavancas de influência são ativadas. Há a FCPA e as redes de promotores e magistrados treinados em técnicas de investigação implantadas nos últimos anos. Para atingir seus objetivos, o DoJ usa uma grande isca: o compartilhamento das multas que serão impostas pelas autoridades americanas às empresas brasileiras no âmbito da FCPA.
Para prestar garantias de boa vontade às autoridades americanas, os investigadores brasileiros estão organizando a visita confidencial a Curitiba, em 6 de outubro de 2015, de dezessete membros do DoJ, do FBI e do Ministério da Segurança Interna para que este receba um explicação detalhada dos procedimentos atuais. Eles dão acesso a advogados de empresários potencialmente chamados a “colaborar” com a justiça americana, sem que o Poder Executivo brasileiro seja informado. Mas isso tem um preço: cada uma das multas impostas às empresas brasileiras pela FCPA terá que incluir uma parcela destinada a Brasília, mas também à operação “Lava Jato”. Os americanos aceitam. Com o negócio fechado, os promotores brasileiros irão pescar empresas que possam estar sob o controle do DoJ.
“Os policiais devem estar cientes de todas as ramificações políticas potenciais desses casos, já que os casos de corrupção internacional podem ter efeitos importantes que influenciam as eleições e as economias”, disse um funcionário do FBI.
Enquanto sua maioria parlamentar derrete como neve ao sol diante da proliferação de negócios, a presidente Dilma Rousseff decide convidar seu mentor, Lula, para participar do governo. Uma manobra vista como a última tentativa de salvar sua coalizão. Ao mesmo tempo, membros da Polícia Federal, por ordem dos promotores, grampearam – fora de qualquer marco legal – os telefones dos advogados de Lula (vinte e cinco defensores no total), e até mesmo do próprio presidente. Sergio Moro vai, assim, monitorar uma conversa entre este e Dilma Rousseff. Uma troca de palavras enigmáticas sobre o futuro de Lula, que o magistrado envia prontamente à Rede Globo e que selará a demissão da presidenta poucos meses depois.
Durante este período conturbado, os promotores do DoJ estão monitorando de perto a situação política no Brasil. De acordo com Leslie Backshies, então chefe da unidade internacional do FBI, que desde 2014 tem a tarefa de ajudar os investigadores de Lava Jato, “os oficiais devem estar cientes de todas as ramificações políticas potenciais desses casos, porque os casos de corrupção internacional podem ter grandes efeitos que influenciam as eleições e as economias”. O especialista esclarece: “Além de conversas regulares de negócios, os supervisores do FBI se reúnem com os advogados do DoJ trimestralmente para analisar possíveis ações judiciais e possíveis consequências”.
É, portanto, com pleno conhecimento dos fatos que estes últimos encerram sua denúncia contra a Odebrecht nos Estados Unidos. No entanto, os líderes do grupo relutam em assinar o acordo de “colaboração” proposto pelas autoridades americanas, que inclui o reconhecimento de atos de corrupção não só no Brasil, mas em todos os países onde esta gigante da construção está instalada.
Para dobrá-los, os magistrados ordenam ao banco Citibank, responsável pelas contas da subsidiária americana da empresa, que dê à Odebrecht trinta dias para encerrá-los. Em caso de recusa, os valores depositados nessas contas serão colocados em liquidação judicial, situação que excluiria o conglomerado do sistema financeiro internacional e, portanto, o colocaria em falência.
A Odebrecht concorda em “colaborar”, o que permite aos promotores de Curitiba, embora não tenham competência normativa para julgar atos de corrupção ocorridos fora do Brasil, para obter as confissões premiadas dos executivos da empresa. Confissões que irão posteriormente enriquecer a acusação do DoJ sob a FCPA.
O comunicado foi divulgado na véspera das festas de fim de ano de 2016. A Operação Lava Jato está na capa da mídia internacional. Sergio Moro é convidado para a lista das cem personalidades mais influentes da revista Time. O semanário New York Americas Quarterly dedica sua capa a ele. Por sua vez, os promotores do DoJ acolhem publicamente essa cooperação sem precedentes. Em conferência realizada nas instalações do Atlantic Council, em Washington, Kenneth Blanco, então procurador-geral adjunto do DoJ, declarou que “Brasil e Estados Unidos trabalharam juntos para obter provas e construir negócios” . E diz: “É difícil imaginar uma cooperação tão intensa na história recente como a que ocorreu entre o DoJ e o Ministério Público brasileiro”.
Moro e sua equipe começam 2017 com confiança. Não que tenham obtido provas contundentes contra Lula – suas conversas privadas via Telegram provam o contrário –, mas sim porque sua influência política e midiática é tal que eles vão tirar vantagem, às vezes desafiando a maioria dos princípios.
Ameaças do Exército
Quando Lula foi condenado por “corrupção passiva e lavagem de dinheiro” em 12 de julho de 2017, poucos jornalistas relataram que essas acusações foram pronunciadas “por fatos indeterminados”. O argumento é, no entanto, explicitamente declarado no documento de 238 páginas detalhando a decisão do Sr. Moro. Nos anexos à condenação, o magistrado esclarece que “nunca afirmou que os valores obtidos pela empresa OAS com os contratos com a Petrobras foram usados para pagar vantagens indevidas ao ex-presidente”.
Outra estranheza que revela o peso adquirido pela operação Lava Jato no judiciário brasileiro: a prisão do ex-presidente Lula, embora seja contrária à Constituição brasileira. O artigo 5 diz, de fato, que nenhum litigante pode ser preso antes do final do processo. No entanto, sob a intensa pressão da opinião pública conquistada pela operação Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência na matéria, em 2016.
O pedido de habeas corpus dos advogados de Lula é rejeitado por seis votos contra cinco na sequência de um tweet de o comandante do Exército ameaçando a Suprema Corte de “assumir suas responsabilidades institucionais” no caso de esta decidir a favor do ex-presidente.
Poucas horas após a decisão dos juízes, Sergio Moro emite seu mandado de prisão: Lula é preso no dia 7 de abril. Ele não poderá participar da eleição presidencial de 2018. Enquanto o magistrado parece ter sido conquistado pela arrogância, a máquina infernal é lançada. Jair Bolsonaro vence a eleição presidencial com folga e nomeia aquele que eliminou Lula como chefe do Ministério da Justiça. Do lado americano, nos congratulamos por ter minado os sistemas de corrupção implantados pela Petrobras e pela Odebrecht, bem como suas capacidades de influência e projeção político-econômica na América Latina.
Para os procuradores de Curitiba, o DoJ planejou reembolsar 80% de todas as multas impostas ao grupo petrolífero pela FCPA, que eles podem administrar como entenderem. Uma fundação de direito privado deve ser criada para administrar 50% desse maná. Os membros da diretoria dessa fundação são nada menos que os próprios promotores da Lava Jato e vários líderes de ONGs, inclusive da seção brasileira da Transparência Internacional, que ao longo dos anos se tornou um dos principais guardiões. Dois procuradores da equipe, o senhor Dallagnol e Roberson Pozzobon, chegam a pensar em criar uma estrutura jurídica em nome de seus respectivos cônjuges, a fim de cobrar por serviços de consultoria na área de “anticorrupção”.
Um denunciante preso
Eleito Bolsonaro, a imprensa internacional não demora a se distanciar do “vigilante de Curitiba”. Vem sublinhar a sua inconsistência ética ao aliar-se, assim, a um presidente de extrema direita, membro, há décadas, de uma pequena formação especialmente conhecida por ter estado envolvida em inúmeros casos de corrupção.
Por sua vez, os juízes do STF não escondem o espanto ao tomarem conhecimento, em março de 2019, do conteúdo do acordo negociado em segredo entre os promotores de Lava Jato e seus congêneres do DoJ. O juiz Alexandre de Moraes decidirá suspender a criação da fundação da Lava Jato e colocará em liquidação as centenas de milhões de dólares em multas pagas pela Petrobras.
É neste contexto que a primeira revelação de The Intercept estoura. Em maio de 2019, o Sr. Greenwald recebeu de um denunciante, Walter Delgatti, 43,8 gigabytes de dados de conversas privadas, via Telegram, da equipe Lava Jato. Após verificação, três artigos são publicados em um domingo de junho. Moro e os promotores não reconhecem a veracidade das trocas. Eles afirmam não ter cometido ilegalidade, embora se recusem a entregar seus telefones para exame.
Várias semanas depois, quando o Sr. Greenwald decide oferecer acesso aos dados a vários meios de comunicação, ficamos sabendo de um comunicado à imprensa do governo que Sergio Moro foi aos Estados Unidos de 15 a 19 de julho. Aproveitou esta estadia para consultar os seus homólogos? As autoridades americanas, solicitadas pela Agência Publica, se recusarão a confirmar ou negar as informações. Mesmo assim, o Sr. Delgatti foi preso pouco tempo depois pela Polícia Federal.
Embora essas revelações não tenham afetado significativamente a popularidade do magistrado, a aura do juiz continua a se desgastar na imprensa internacional. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal acaba reconhecendo a inconstitucionalidade da prisão de Lula. Ele foi libertado em 8 de novembro de 2019. O ex-presidente foi absolvido de sete das onze acusações contra ele (a promotoria apelou em quatro casos). Lula ainda não foi julgado em quatro casos que os especialistas consideram menos importantes.
Sergio Moro acabou renunciando ao cargo em abril de 2020. A elite política de Brasília dá as costas e as pesquisas se invertem. Segue-se na ponta dos pés, rumo a Washington, onde reproduz o modelo das portas giratórias, esses gateways que permitem que ex-magistrados do DoJ que trabalharam em casos relacionados à FCPA revendam as informações privilegiadas obtidas durante suas investigações para grandes escritórios de advocacia e ganhem muito dinheiro.
O anúncio cai em novembro de 2020, em meio às eleições municipais no Brasil. Ficamos sabendo que o ex-juiz de Curitiba foi recrutado pelo escritório Alvarez & Marsal. Agência especializada em assessoria empresarial e contencioso com sede na capital federal em 15 Shet NW, em frente ao Tesouro dos Estados Unidos e a 200 metros da Casa Branca.