Não queremos estar no mesmo barco

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
O grito pela opacidade contra a ideologia da união de classes. Imagem: Bill Woodrow, Fósforo, 1994

1.

Soa belo e nobre todo discurso que pregue alguma espécie de união solidária entre indivíduos e grupos de diferentes identidades. Um ideal comunitário, em especial sem um fim muito definido – melhor falar pura e simplesmente em algo vazio, como o “progresso da nação” ou “colocar o país acima de tudo”. É muito bonito, sem dúvidas, querer que andemos de mãos dadas rumo a um futuro melhor. De Mussolini a Bolsonaro, mas passando por John Lennon, sempre foi comovente o discurso de que, independentemente de raça, cor, religião ou condição social, devemos nos unir em prol de um ideal comum — construído em torno, é claro, do projeto político pessoal e familiar de seus propagadores (talvez o Beatle não deva ser aqui inserido).

Evidentemente, não é a paupérrima retórica dos fascistas que encanta — aqui também não falamos da bela canção Imagine. A sedução da ideologia da união de classes pelo bem comum vem de outro lugar. Mais precisamente, da noção de que, com um simples ato de boa vontade, podemos nos livrar das profundas diferenças que nos separam. E, mais do que isso, que conseguiremos fazer com que o Outro abrace nosso norte político simplesmente porque, a partir do momento em que o aceitemos como nosso similar, ele já deverá se sentir parte de nosso grupo e, portanto, pensar como nós. Não importa se você é gay, abrace nossa histeria intolerante! Não ligamos para o fato de que você é asiático, contanto que ria conosco de nossas piadas sobre seu falo que supomos diminuto! Tudo bem que você é negra, afinal meus filhos são bem educados o bastante para não namorar com você!

É muito divertido pensar que, se dissermos para o objeto de nosso ódio e sarcasmo que ele pode se unir conosco, automaticamente ele não terá mais motivo para enxergar a barreira, o muro branco deleuziano, que nos separa. E, com isso, ganhamos o trunfo de poder dizer que, quando ele declara de alguma forma a existência dessas divisões, é ele quem está forçando esse tipo de ruptura. Solução Morgan Freeman para conflitos sociais: a apenas uma manobra discursiva de você!

O mais importante, nisso tudo, é que as divisões de que tanto falamos não são horizontais e, portanto, passíveis de solução por um mero ato pio de união. A própria colocação da questão como um problema de distinções horizontais já é um discurso que legitima o não-fazer-nada a respeito delas, já que o problema se torna a falta de interesse do Outro de ser nosso amigo. Ora, qualquer leitura mais ou menos científica da sociedade nos traz a noção da verticalidade dessas diferenças. O racismo, a LGBTfobia, o machismo, a xenofobia, em suma, a luta de classes são, todas elas, relações de dominação calcada em uma conflituosidade latente ou literal. Não se trata de uma mera distinção, de uma simples discordância, ou ainda de modos de vida diferentes. São questões de subjugo e opressão que, por óbvio, ao contrário do que insistem justamente os privilegiados pela manutenção desse status quo, não podem ser superados sem alterações sociais estruturais.

2.

Quem teve a oportunidade de visitar a 34ª Bienal de Arte de São Paulo pôde encontrar um auditório em que era apresentado um filme que trazia uma entrevista com Édouard Glissant. Nela, falava-se acerca do Droit à l’opacité (direito à opacidade), uma inspiração para os povos marginalizados na dinâmica internacional do capital à não submissão aos paradigmas das potências centrais, colocados em termos de transparência, esta que consiste em um querer-entender o outro a partir de seus próprios paradigmas conceituais e culturais. Opondo-se a isso, opacidade é o não-querer-se-fazer-entender, a ser-como-se-é à revelia do entendimento alheio, construindo uma singularidade independente, e mesmo contrária, à construção ideológica das subjetividades operada no modo de produção capitalista.

É irônico quando Glissant cita um comentário que ouviu a respeito de seu trabalho: “então precisamos ir à ONU reclamar nosso direito à opacidade!”. Ora, a lógica das Nações Unidas, dos Direitos Humanos e afins, é exatamente a da transparência, da pretensão de subsunção de todas as peculiaridades regionais e sociais a uma lei universal. Pedir a ela que reconheça o direito a ser opaco já é, em si, uma atitude de transparência, de “veja como eu posso me enquadrar na sua lógica se você reconhecer ao menos minha existência”. Tal é a dialética da luta por direitos, de maneira geral: construir uma barreira contra a opressão através do próprio sistema (o jurídico) que serve a ela, ainda que tenha certa serventia prática, apresenta um horizonte por óbvio limitado à própria lógica estrutural de tal estrutura opressiva que, em última análise, é advinda do modo de produção capitalista.

Com o discurso da união de classes não é a mesma coisa? Claro, entre um liberal universalista onusiano e um fascista, há diferenças significativas, apesar da base material comum. Mas o discurso da superação das diferenças em torno de um ideal comum é constante no que diz respeito exatamente à sua ideologia conciliatória a que subjaz a dominação. Não se trata, para grupos oprimidos e marginalizados, simplesmente de uma união harmoniosa com seus dominadores, mas sim a própria aceitação de sua condição subalterna. Não, não queremos nos unir pelo Brasil de vocês.

por Alexandre L. C. Tranjan | a Terra é Redonda

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