Introdução da autora do livro recém-lançado
Durante muito tempo, as considerações de Nietzsche sobre as mulheres foram tomadas com precaução, seja por causa da misoginia que se acreditava ver presente em seus textos, seja devido ao antifeminismo que se julgava neles se manifestar. Não se procurava examinar as questões teóricas que emergem de seus escritos nem refletir sobre o lugar que elas ocupam no conjunto da sua obra. Revelava-se muito mais prudente, ao que parece, ignorar suas posições acerca das mulheres.
Entre os raros estudiosos que levaram em conta os comentários do filósofo a esse respeito, houve quem, por considerá-lo um autor misógino, procurou explicar de diferentes maneiras suas observações aparentemente hostis. Houve também quem buscou defender a ideia de que elas não estavam à altura dos seus talentos ou simplesmente não eram de interesse filosófico.
Nos últimos tempos, escritos feministas se propuseram discutir as posições assumidas por Nietzsche acerca das mulheres; eles se situam sobretudo no contexto dos estudos publicados em língua inglesa. Investigar as eventuais contribuições do pensamento nietzschiano para a teoria feminista e discutir como interpretar as observações do filósofo sobre o feminino, essas têm sido as vias adotadas.
Quanto à primeira delas, deparam-se inúmeros trabalhos, que procuram avaliar as vantagens e desvantagens do uso dos textos de Nietzsche para as questões colocadas pelo feminismo. Há quem advogue a ideia de que a sua escrita é feminina e quem defenda a posição de que ele é antifeminista. Há também quem sustente que o seu pensamento permite proceder a uma releitura do cânon filosófico em voga, cânon esse que sempre afastou de seu horizonte de reflexão as mulheres e o feminino, e quem afirme que se deveria estender à sociedade patriarcal a crítica radical que ele faz do racionalismo, do cientificismo, do positivismo, em suma, da cultura ocidental. Mas essa nova maneira de encarar os discursos e práticas patriarcais da nossa sociedade acabou por levar a questionar os próprios discursos e práticas feministas.
Em nome do feminismo ou da pós-modernidade, evoca-se com frequência o pensamento nietzschiano, em particular nos Estados Unidos. Em que pese a seriedade e o rigor desses escritos, ocorrem casos em que, em vez de utilizar o filósofo como caixa de ferramentas, para diagnosticar os valores de nossa época, acabam por convertê-lo em instrumento para corroborar posições teóricas ou ideológicas já estabelecidas. Operam, em geral, recortes arbitrários em seus textos; a eles recorrem para sustentar determinadas concepções de feminismo ou mesmo de democracia. Adotando um ponto de vista demasiado específico, alguns escritos se atêm a polêmicas localizadas. Por demais marcados pelo tempo e pelo espaço em que surgem, respondem, por vezes, a interesses pontuais.
Importa ressaltar que vários trabalhos feministas tomam como ponto de partida, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, a leitura desconstrutivista inaugurada por Derrida. Em Esporas: os estilos de Nietzsche, livro publicado em 1978, o pensador francês fez um uso metafórico da “mulher”, uso esse que inspirou diversos trabalhos. Seguindo a trilha por ele aberta, Sarah Kofman e Luce Irigaray contribuíram com seus estudos para que leituras feministas tomassem o filósofo por um valioso interlocutor.
É bem verdade que, nos anos de 1890, Nietzsche pareceu vir arejar o século burguês que então se encerrava, século esse marcado pelo moralismo vitoriano e wilhelmiano. Traduções de seus textos eram publicadas na França, na Itália, na Inglaterra. Foram as vanguardas literárias e artísticas e os movimentos de emancipação, geracionais ou sociais e até nacionais, que primeiramente se reclamaram de suas ideias. Não só na Alemanha, mas também em outros países da Europa, ele se converteu no mentor intelectual dos que se batiam pela liberação corporal e sexual, em particular da mulher. Figurando nos meios libertários cosmopolitas, aparecia como o pensador iconoclasta, destruidor dos ídolos e demolidor da moral tradicional, burguesa e cristã.
Mas, logo no início do século XX, também ocorre que, caminhando em direções por vezes opostas, escritoras alertam para o caráter perigoso dos escritos do filósofo. Vale lembrar, por exemplo, que Jane Michaux declara, numa conferência intitulada “Nietzsche. Suas ideias sobre o feminismo. Sua moral”, que ele é “um inimigo” das mulheres que querem emancipar-se. E, alguns anos depois, Emilie Sirieyx de Villers deplora que a moda nietzschiana do início do século XX leve as mulheres a se esquecerem de seus deveres para com a família em proveito de um “egoísmo sobre-humano”.
Vale lembrar ainda que, em 1905, a propósito das observações que se encontram no capítulo “A mulher e a criança”, do primeiro volume de Humano, demasiado humano, Rémy de Gourmont escreve: “Os aforismos de Nietzsche sobre as mulheres constituem a parte menos interessante de sua obra”. E logo adiante afirma: “Nietzsche conhece tão mal as mulheres que ele, o grande criador de ideias, de relações novas, acha-se reduzido a redigir, sob uma forma nietzschiana, lugares comuns”.
Se os primeiros estudos sobre “Nietzsche e as mulheres” apareceram nos anos 1930, 50 anos depois, depararam-se uma vez mais muitos trabalhos elaborados por mulheres, com perspectivas e abordagens múltiplas, sobre as reflexões de Nietzsche acerca das mulheres. Basta lembrar que, praticamente na mesma época, Luce Irigaray, escritora, psicanalista e feminista, de um lado, e Noëlle Hausmann, religiosa do Sagrado Coração de Maria, de outro, trataram do assunto.
Luce Irigaray lança em 1981 o livro intitulado Amante Marina de Friedrich Nietzsche. Adotando uma maneira pessoal de se confrontar com o filósofo, ela compõe uma espécie de novo lamento de Ariadne, constituído por três partes e 29 seções, cujos títulos sublinham bem a distância que toma em relação a modos de proceder acadêmicos. Perseguindo o propósito de se engajar numa relação agonística com os homens, interroga Nietzsche sobre sua própria obra, explica-lhe o que significa o eterno retorno e alerta-o quanto a seus problemas em relação às mulheres.
Noëlle Hausmann, por sua vez, publica em 1984 o estudo que tem por título Frédéric Nietzsche, Thérèse de Lisieux: duas poéticas da modernidade. Entendendo que, na segunda metade do século XIX, Thérèse de Lisieux e Friedrich Nietzsche fizeram a experiência da noite e do nada, quer mostrar que dela extraíram consequências opostas. Embora para ambos fosse determinante a imagem da criança, o filósofo e a santa a viram de modo distinto. Um considerava que a criança era ao mesmo tempo criador e resultado de seu próprio vir-a-ser; a outra entendia que, adormecendo cheia de confiança nos braços do Pai, ela traduzia a experiência original de Deus. Embora aceitasse o sofrimento enquanto tal, Nietzsche não estaria pronto a sofrer por outrem; Thérèse, ao contrário, viveria sua existência como dom permanente e sacrifício ao amor misericordioso de Deus.
Até hoje, são posições diversas e, por vezes, opostas as que as reflexões do filósofo sobre as mulheres suscitam. É o que bem mostra, aliás, Angelika Schrober em seu trabalho sobre a recepção do pensamento nietzschiano na França. Ao examinar diversos escritos de mulheres acerca de Nietzsche, ela se pergunta se a mulher, esse “animal doméstico delicado” com sua “garra de tigre por baixo da luva”, esse “pássaro” raro que deveria permanecer engaiolado, teria algo a dizer a respeito dele. É precisamente um dos problemas de que trata Renate Reschke. Reunindo textos de mulheres, mas também de homens, ela levanta a dupla questão de saber se as mulheres constituem um tema nietzschiano e se Nietzsche constitui um tema feminino.
Não são poucos os trabalhos sobre as considerações de Nietzsche a respeito das mulheres. Contudo, no meu entender, faltam os que lidam com a estrutura filosófica em que se baseiam. É bem verdade que não é fácil a tarefa do comentador que se dispõe a examiná-las. Elas constituem uma pletora que vai de clichês a complexas e refinadas análises da condição humana, de digressões esparsas a reflexões que provêm de serrada argumentação. Excetuando-se os primeiros escritos, estão presentes praticamente em todo o corpus nietzschiano. Aparecem, por exemplo, num capítulo de Humano, demasiado humano, numa sequência de parágrafos do Segundo Livro da Gaia ciência, em diversos discursos de Assim falava Zaratustra, num grupo de aforismos de Para além de bem e mal, em certo número de passagens do Crepúsculo dos ídolos.
Examinar as imagens das mulheres que o filósofo constrói e os papéis que lhes atribui, indagar de que modo ele recorre à tipologia em suas análises das figuras femininas, inquirir a respeito das personificações femininas de entidades abstratas que cria, perguntar acerca das posições que assume sobre as mulheres que querem emancipar-se, investigar as razões que o levam a combater frontalmente as intelectuais são os problemas que presidem minha investigação.
É preciso deixar claro, desde logo, que não é meu intuito examinar o comportamento de Nietzsche em relação às mulheres com quem se relacionou. Tampouco é comparar suas reflexões sobre a emancipação feminina e o modo como lidou com as mulheres emancipadas que encontrou no decorrer da vida. As ambivalências que me interessam são essencialmente as que se encontram nos seus próprios escritos.
Neste livro, defendo a tese de que suas considerações sobre as mulheres não têm um lugar marginal em sua obra; elas não se reduzem a preferências pessoais e, menos ainda, a desvios eventuais. Bem ao contrário, inscrevem-se em sua empresa filosófica. É por essa razão que me empenho em relacioná-las com temas centrais do seu pensamento, como o perspectivismo e o experimentalismo, a crítica da metafísica e a luta contra o dogmatismo, a psicologia e a tipologia, os espíritos livres e os filósofos do futuro, a vontade de verdade e a ideia de interpretação, o conceito de vontade de potência e a noção de força, o eterno retorno do mesmo e o amor fati, as “ideias modernas” e a décadence.
A partir de uma leitura imanente dos textos do filósofo, tanto dos livros publicados quanto das anotações póstumas, segundo a ordem cronológica, persigo o propósito de realçar as estratégias a que ele recorre, para desmontar suas armadilhas. Conto examinar as ambivalências múltiplas e variadas presentes em suas considerações: elas concernem ao comportamento das mulheres casadas em face dos espíritos livres, às atitudes das mulheres que amam em relação a seus amantes, aos traços das mulheres bem-amadas de Zaratustra comparados aos das mulheres simplesmente humanas.
E pretendo mostrar que, quando se trata das mulheres que querem emancipar-se, Nietzsche não é de modo algum ambivalente. Mais contundente ainda será a sua crítica às mulheres que pretendem se expressar publicamente sobre política ou filosofia. Quanto a esse ponto, suas posições trazem a marca da exclusão que caracteriza a modernidade.
por Scarlett Marton
Referência
Scarlett Marton. Nietzsche e as mulheres: figuras, imagens e tipos femininos. Belo Horizonte, Autêntica, 2022, 220 págs.
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