Irmã Laura Vicuña, que atua junto ao povo karipuna, revela detalhes da conversa que teve com os colaboradores do Papa sobre a Amazônia
O Papa Francisco conta, desde o início de seu pontificado, com um grupo de nove cardeais conselheiros, que foi batizado pela imprensa de C9. A primeira missão da equipe, formada por de estreitos colaboradores do santo padre, era articular uma reforma da Cúria Romana, um projeto que começou a ser esboçado em 2013, logo após a eleição do pontífice argentino. Com a publicação do documento que prevê essas mudanças, o Praedicate Evangelium, o qual entrará em vigor em junho deste ano, após 9 anos de preparação, agora é hora de pensar na Igreja Católica como um todo. E o sínodo da sinodalidade, convocado por Francisco em 2021, é o momento propício para isso. De nada adiantaria impactar as estruturas romanas se a eclesiologia de Francisco não criasse raízes em outros lugares.
Como é de praxe, recebi o boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé sobre os assuntos tratados pelo C9, que se reuniu de 25 a 27 de abril. E, para minha surpresa, me deparei com a informação de que a irmã Laura Vicuña Pereira, religiosa de origem indígena, da etnia kariri, tinha sido ouvida pela equipe de purpurados. A irmã franciscana, que é membro da Comissão Eclesial da Amazônia, e trabalha atualmente com o povo karipuna, em Rondônia, disse para nós qual foi o conteúdo dessa conversa. Entre os vários assuntos tratados, foco sobre a atuação da Igreja Católica no território e o massacre dos povos indígenas na região. O seu apelo, sem cortes, foi gravado e entregue ao Papa Francisco.
Dom Total: O que foi falado nessa reunião, irmã?
Irmã Laura Vicuña: Falamos da realidade e das demandas aqui na região amazônica, especialmente dos povos indígenas, para que possamos promover uma evangelização mais inculturada. Há regiões muito isoladas e que são atendidas graças a homens e mulheres que atuam nesses lugares […]. Tratamos da violação dos direitos dos povos indígenas e fizemos um alerta sobre o avanço do agronegócio e o risco de que a região, a partir dessa exploração desenfreada, se torne um imenso deserto. Isso compromete muitos outros biomas e acaba tendo um efeito determinante no agravamento do aquecimento global, por exemplo. […] E nós, mulheres, temos um papel fundamental na defesa desses biomas e desses povos. Porque são as mulheres que educam as crianças e jovens para a sociedade. Eu disse aos cardeais que nós, mulheres, estamos à frente desses espaços de luta. Não somente das lutas sociais, mas também da evangelização.
Dom Total: A senhora chegou a denunciar, especificamente, os crimes cometidos contra a comunidade ianomâmi?
Irmã Laura Vicuña: A gente não citou um caso específico, mas quando eu falei do povo com o qual eu atuo, que é o povo karipuna, a gente trouxe essa realidade, dizendo que isso é um pequeno exemplo do que acontece em toda a Amazônia. Esse caso da criança ianomâmi, que nos traz muita dor, são violências múltiplas e sistêmicas que os povos indígenas vêm sofrendo desde a colonização. E essas violências vêm sendo aguçadas por por políticas de morte que vem sendo aplicadas na atualidade. Vivemos sob ameaça. Tanto os povos indígenas quanto os defensores desses direitos. Você ser, hoje em dia, defensor dos direitos deles, é estar na lista de persona non grata e, mais que isso: estar na mira da pistolagem. Aqui na Amazônia é muito fácil tirar a vida de uma pessoa. O que aconteceu com essa criança ianomâmi é o símbolo da banalização da vida por aqui. Diariamente, contra o povo guarani-kaiowá, por exemplo, são cometidas violências. Isso do povo ianomâmi choca pela brutalidade. Mas é algo que esse povo vem sofrendo há décadas; são décadas de denúncias contra o garimpo ilegal. Em 1993, houve o massacre de Haximu, onde uma aldeia toda foi exterminada pela ação de garimpeiros. E as histórias se repetem. […] Vemos uma solidariedade enorme para com a floresta, com o meio-ambiente e se esquecem que ali também vivem pessoas, vivem os povos originários. Falam de proteger os animais, os biomas, e muitas vezes falta essa atenção para com os seres-humanos, filhos dessa terra, que têm seus direitos violados.
Dom Total: E são os mesmo grupos, irmã?
Irmã Laura Vicuña: Sim, em todo o Brasil. Em 2020, uma liderança indígena do povo Uru-Eu-Wau-Wau foi morta brutalmente. Mas isso não ganha visibilidade, embora utilizemos os espaços que a gente tem. O povo karipuna, por exemplo, há 30 anos foi quase exterminado. Sobreviveram 8 pessoas. Hoje, eles são 60 pessoas, por causa dos casamentos interétnicos. Mas todos os dias eles recebem ameaças, do tipo: ?Nós iremos invadir as vossas casas e iremos matar todos vocês?. Vivem em constante tensão. As pessoas não dormem. Eu já cheguei lá e eles me disseram que estavam dormindo por causa da minha presença. Se não tem ninguém com eles e por eles, eles ficaram no anonimato. Dentro da terra ianomâmi, por exemplo, quantos povos isolados não foram assassinados e ninguém ficou sabendo?
Dom Total: Parece que o foco desses criminosos, muitas vezes, são as crianças indígenas. O que fazem com elas?
Irmã Laura Vicuña: Há casos de violência que não chamam muito a atenção da mídia. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, passou uma vez um avião [de pequeno porte] lançando veneno na área onde as crianças estavam brincando. Muitas ficaram intoxicadas, outras com problemas de pele. Mas nada disso acaba chegando ao conhecimento das pessoas.
Dom Total: O nome ianomâmi – me corrija se eu estiver errada – significa seres humanos. Mas os invasores o que menos fazem é tratar essas pessoas como seres humanos, não é, irmã?
Irmã Laura Vicuña: A definição, a auto identificação de um povo, traduzindo, significa ?somos gente?. Karipuna, por exemplo, foi o nome que os não indígenas deram a eles. Mas o nome original dessa etnia é ahé, que significa ?somos gente?.
Dom Total: A senhora já foi ameaçada de morte, por denunciar a violação dos direitos dos povos indígenas?
Irmã Laura Vicuña: Já, sim.
Dom Total: A senhora tem medo?
Irmã Laura Vicuña: Quem tem vida, tem medo. Mas a gente não pode ficar encolhido e deixar que o medo seja maior, porque se eles veem que a gente tem medo, mais poderosos eles ficam.