O absurdo de Belo Monte

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.

De gente de boa vontade o inferno está cheio

A preservação ambiental é uma prioridade global. O aquecimento global é uma realidade científica. E mesmo que isso estivesse ocorrendo apenas em função do aumento da atividade solar que é um evento natural cíclico, mesmo que o aumento de CO2 na atmosfera decorrente da atividade humana não estivesse ocorrendo, mesmo que nenhum dos dois fatores estivesse ocorrendo, ainda assim esta é uma questão fundamental de natureza ética e moral.

No passado, era até compreensível que a humanidade, por ignorância, tenha cometido inúmeros equívocos. É difícil amarmos o que não conhecemos ou não compreendemos realmente. Mas com o conhecimento que já conquistamos, a agressão ao nosso planeta não é mais tolerável. Entretanto, frequentemente causas importantes são “apropriadas” de forma completamente inadequada e essas apropriações indevidas acabam contribuindo, de forma desastrosa, para que a sociedade acabe tendo até sua percepção comprometida em relação à importância e legitimidade dessas causas. Não temos mais tempo nem espaço para isso. As consequências potenciais do aquecimento global, dentre elas a segurança alimentar e seus inúmeros impactos (a exemplo da questão migratória), são evidentes.

A obra da usina hidroelétrica de Belo Monte às margens do Rio Xingu, no coração da Amazônia, reuniu dezenas de milhares de trabalhadores e muito do que há de mais avançado no mundo na área da engenharia civil. Como bem resumido pelo consórcio construtor, “um esforço monumental de planejamento, de gestão de pessoas e de insumos”. Estamos falando da terceira maior usina hidroelétrica do mundo, vindo atrás apenas da Usina Três Gargantas na China e da Usina de Itaipu na fronteira do Brasil com o Paraguai. É a maior usina exclusivamente brasileira. Um projeto / obra no valor de 40 bilhões. Mas o resultado que vemos hoje transformou aquilo que seria uma grande solução para os desafios energéticos e de segurança nacional para o Brasil em perplexidade e indignação.

De toda forma, no contexto das narrativas que dominam as mídias, chega a surpreender que ainda existam profissionais independentes no jornalismo brasileiro e que têm a coragem de expor os fatos como eles realmente são (sugiro assistir esta breve reportagem / vídeo de apenas 4 minutos da Band News para se ter um sumário abrangente da situação).

Belo Monte foi projetada para produzir 12% da energia do país. Hoje está gerando em torno de 0,65%. Das 18 turbinas instaladas só uma está em operação e gerando ainda assim 50 % de sua capacidade. Durante metade do ano, justamente no período de seca onde a segurança energética é mais crítica em função do período de seca, é essa a realidade de Belo Monte. Sim, durante o período de chuvas a usina pode produzir energia em todo o seu potencial, mas na outra metade do ano, quando mais precisamos dela, é o que estamos vendo agora.

O ex-deputado e ex-ministro Aldo Rebelo (PCdoB, PSB e Solidariedade) sintetiza o ocorrido da seguinte forma: “No dia em que for realizada uma investigação séria sobre o processo de construção de Belo Monte, nós vamos encontrar os abusos nas cobranças de indenizações indevidas, a participação do Ministério Público em coisas absolutamente erradas, as ONGs que chantagearam o poder público, o setor privado responsável pela construção, isso tudo vai aparecer”.

Neste texto não estamos, no entanto, abordando a questão da corrupção pela perspectiva mais direta das ações que foram descortinadas de maneira tão contundente através da Operação Lava Jato e investigações correlatas. Essa é uma parte de nossa história que nunca será apagada ou esquecida. Nosso foco aqui é a ambição, a vaidade e o egoísmo, tríade basilar da ignorância e dos males imensos que podem causar. Nossa perspectiva é a da ética, embora esta esteja também, evidentemente e inevitavelmente, na essência da corrupção mais “explicita” e que não estaremos focando aqui.

É evidente que a questão ambiental e da sustentabilidade de uma forma mais ampla é fundamental. Projetos de engenharia que não sejam sustentáveis são hoje cada vez mais inconcebíveis, até porque se não o forem, será cada vez mais difícil (ou mesmo inviável) obter recursos para esses projetos. Mas o que estamos presenciando aqui é outra coisa. Mesmo que nos foquemos apenas no meio ambiente e esqueçamos as duas outras dimensões da sustentabilidade que são as dimensões econômica e social. Muitos dos problemas ambientais e a questão dos reservatórios poderiam ser mitigadas a médio e longo prazos. A natureza bem respeitada também coopera.

Claro que no curto prazo haveria alguns desafios e desequilíbrios, mas isso poderia ser superado. Com os devidos recursos, o conhecimento e a tecnologia que temos, algumas realocações poderiam não somente ser feitas com a devida dignidade, mas com abertura de opções e até oportunidades de melhoria. Não estamos mais nos séculos 17, 18, 19 e mesmo no 20.

Como argumenta a reportagem da Band News, “aí veio a pressão social que envolveu ambientalistas, indígenas, ONG brasileira, ONG estrangeira, artista daqui artista de Hollywood, e essa pressão foi acolhida, foi embalada por uma visão ideológica ultrapassada que virou governo”. É obvio que existem ONGs sérias. Mas no contexto do jogo econômico e geopolítico global é uma ingenuidade acreditar no desinteresse e lisura de todas elas.

A questão humana é sempre central. A questão indígena é fundamental. Da mesma forma que o papa Francisco nos chama a atenção para a questão dos refugiados aqui caberia a mesma reflexão: “e se eu fosse um deles”? Tratar a questão e as decisões sobre Belo Monte apenas sob a perspectiva da teoria utilitarista do que é mais útil para a grande maioria é uma simplificação grosseira.

A tirania de maiorias é um risco permanente e frequentemente / assustadoramente subestimado. É preciso se colocar na posição do outro. Mas também é preciso realmente estar disposto a ouvir o outro. A interferência em outras culturas e civilizações, e há evidências consistentes e contundentes sobre isso, têm sido causa de tragédias. Mas artificialmente impedir que culturas tenham opções e possam por livre arbítrio exercê-las, pode ser igualmente trágico. A narrativa de “tutelar” o livre arbítrio não se sustenta.

Como já comentei aqui neste espaço em textos anteriores, as ideologias de qualquer lado do variado espectro político têm em comum algumas características basilares: elas se consideram detentoras da verdade absoluta, não se conectam a fatos, ignoram dados / evidências da realidade e excluem qualquer divergência e tudo e todos que possam ter uma visão / perspectiva diferente.

No final das contas a reportagem resume assim a situação da usina:

“todo mundo querendo ficar bem na foto e tendo apoio de procuradores, promotores e até do Poder Judiciário que concedeu dúzias de liminares contra essa obra. Belo Monte que deveria ser solução… venderam que o reservatório era o problema (essa era a versão), venceram os fatos. Aí restou essa usina aí, sem reservatório. Com uma turbina funcionando, 17 paradas. A turma do contra se mandou, foi toda embora, foi pressionar em outra freguesia e a bomba caiu no colo da gente. Está aí de novo: falta d’agua, risco de novo apagão, e uma das contas de luz, mais caras do mundo”

Neste conjunto, como em tudo na vida, tem todo o tipo de gente. Gente boa e gente ruim. Mas muitas dentre elas é que nos fazem entender pelo menos uma das interpretações de um ditado que quando criança me parecia totalmente incoerente: “de gente de boa vontade o inferno está cheio”.

No contexto de Belo Monte não há dúvida que muita gente agiu de má fé. A questão ética neste caso é linear, a compreensão é direta. O desastre ético frequentemente desconsiderado e ou minimizado é aquele que resulta não de uma má fé consciente ou mesmo direta, mas da vaidade (“vaidade de vaidades, tudo é vaidade” – Ec 1.1) alimentada de ambições e pela busca desenfreada por prestígio e aceitação. Pessoas que querem se posicionar como paladinas da justiça, mas cuja cegueira derivada da ignorância não permite que conheçam a importância e o significado da humildade. Desconhecem e não reconhecem o mal que causam. Dependendo das posições que ocupam e da visibilidade que têm, este mal é potencializado em larga escala. Destroem quando estão “construindo”. Depois haverá ranger de dentes e alegações de que não sabiam. Na verdade, não percebem que são antiéticos e obviamente tão afetados por isso quanto tudo que causam em seu entorno.

Por José Antônio de Sousa Neto

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