Superar o neoliberalismo ou eleger um seguidor de Pinochet? País latinoamericano em que as disputas políticas aparecem de forma mais crua terá disputa decisiva em 19/12. O programa avançado de Boric. Ódio e fake-news, as armas da ultradireita
O primeiro turno das eleições presidenciais no Chile, realizado neste domingo (21/11), foi acirrado. O ultradireitista José Antonio Kast, pinochetista e ultraliberal assumido, considerado o “Bolsonaro chileno”, terminou em primeiro lugar, com 27,91% dos votos, seguido por Gabriel Boric, o candidato da esquerda, com 25,83%. Uma diferença de apenas 146 mil votos. Um fato surpreende: outro candidato da direita, Franco Parisi, com uma campanha toda realizada a partir dos EUA, país que sequer deixou para ir votar em sua terra natal, terminou em 3º lugar.
O que estará se passando no Chile dos gigantescos protestos de rua de 2019, após duas vitórias monumentais das esquerdas – o plebiscito em favor da elaboração de uma nova Constituição e a eleição de maioria progressista e popular na Convenção Constituinte? Frente a um segundo turno que promete ser ainda mais acirrado, voto a voto, quais são as propostas de Boric que desafiam a ordem neoliberal? Como impulsionar o clima rebelde do “estallido social” e do processo constituinte, frear as investidas de Kast e sepultar o legado de Pinochet, através da nova Constituição, que será votada ano que vem?
O jornalista brasileiro da Agência Pressenza, Gunther Aleksander, que vive há anos em Santiago, tem algumas pistas. A primeira é que há uma dissociação entre as recentes conquistas (e insatisfações) no Chile e a corrida presidencial. A esquerda acreditava que o embate seria fácil, mas agora Boric terá a tarefa de mobilizar forças e se colar mais ao clima de efervescência suscitado pela Constituinte e outras rebeldias que agitaram as ruas chilenas. Para isso, já começa a organizar sua base para uma postura de escuta e diálogo com os que não votaram nele no primeiro turno. A tática é virar voto a voto.
A segunda é que o candidato das esquerdas também terá que articular um contra-ataque (ou, no mínimo, se esquivar) da poderosa redes de fake news montada por Kast, que tenta se vender como candidato antissistema e implacável, mas, sob o discurso truculento e publicitário, esconde sua face pinochetista em flerte aberto com os super-ricos do Chile. “Na comunicação digital, enquanto estamos de arco e flecha eles estão armados até os dentes”, analisa ele. (Rôney Rodrigues)
O Chile começou ontem a eleger seu presidente – a primeira eleição depois das grandes jornadas de protesto que sacudiram o país e questionaram o modelo neoliberal, em 2019. Mas os resultados mostraram tanto o crescimento de um projeto alternativo quanto o da ultradireita, saudosa do general Pinochet. Como você vê o panorama pós-primeiro turno?
O cenário pós-primeiro turno é de muita instabilidade política, social e cultural. Com uma diferença de apenas 146 mil votos, o panorama é de disputa ferrenha que irá se desenrolar até o último minuto do segundo turno. Vai ser voto a voto. E está havendo um boom de participação em relação a candidatura de Boric, após o resultado de domingo, tanto nos comandos de campanha e mobilização quanto nas redes sociais. Parecia que ninguém queria ver o que estava acontecendo no primeiro turno, uma estratégia midiática usada pela extrema direita muito parecida com a do Brasil nas eleições de 2018.
É correto dizer que ele [o primeiro turno]destroçou o antigo sistema em que a direita tradicional e um centro-esquerda muito próximo ao neoliberalismo revezavam-se no governo?
Apesar da reviravolta na eleição para o executivo, ainda é cedo para afirmar que o antigo sistema foi destroçado. Nas eleições parlamentárias, paralelas à presidencial, a direita tradicional e a centro-esquerda tiveram uma votação menor que a de antes, mas ainda considerável. Eles saíram enfraquecidos, mas não destroçados, tendo muita capacidade de se rearticulação. A direita poderá formar uma coalizão com [Antonio] Kast [candidato da extrema direita]; e a centro-esquerda, com o Boric.
Gabriel Boric, o candidato da esquerda – e da alternativa ao neoliberalismo – ficou em segundo lugar, com 25,8%. A coalização de forças que o elegeu teve muito mais apoio que no pleito anterior. Porém, as eleições para a Convenção Constituinte, há apenas poucos meses, sugeriram que as propostas de Boric tinham um apoio ainda mais amplo na sociedade. O que ocorreu?
É preciso ressaltar que as propostas que o Boric defende são majoritárias hoje no Chile, afinal, são aquelas que levaram a população para as ruas em 2019 e elegeram a maioria de esquerda na Convenção Constitucional. Porém a população ainda não associa a corrida presidencial com a defesa da constituinte, é como se fossem dois canais separados: processo constituinte e eleições presidenciais. Algo similar ocorre com a eleição parlamentar.
Além disso, Boric foi alvo de uma campanha suja não somente por parte da imprensa neoliberal, como dos bots de Kast e [Franco] Parisi [também candidato à presidente, mas com uma campanha feita toda nos EUA, país que sequer deixou para ir votar em seu país natal. Ficou em 3º lugar]. Num processo de difamação sistemática e cirúrgica, impulsionada desde os EUA em conjunto com os filhotes da ditadura de Pinochet.
A questão anterior nos remete aos trabalhos da própria Convenção. Como estão se desenvolvendo seus trabalhos? Os representantes estão sendo capazes de construir uma Carta em sintonia com o forte desejo de mudança expresso nos protestos de 2019 e no próprio pleito que escolheu a Convenção?
A constituinte presidida por Elisa Loncon [professora e linguista mapuche] está fazendo um trabalho ímpar, absolutamente impressionante. Ao mesmo tempo, também estão sofrendo muita pressão – e perseguição midiática e por parte do governo Piñera (inclusive com a prisão de familiares de deputados constituintes). Além de terem o trabalho “invisibilizado” pela mídia tradicional, estão sob constante ameça e coação. Apesar de tudo, os representantes estão conseguindo avançar muito, acredito que muitos irão se surpreender com nova carta magna do Chile. Eu arriscaria, sob as condições atmosféricas em que ela está nascendo, pode ser uma das mais progressistas da região. Mas ainda é cedo, um processo que começou há pouquíssimos meses – e, se Boric não for eleito, infelizmente será muito difícil colocá-la em prática depois, principalmente sob um governo pinochetista como o de Kast.
O ano de 2019 foi marcado por protestos populares em dezenas de países, mas o Chile foi o país em que esta ebulição política foi mais longe, provocando um forte desgaste do velho sistema político e obrigando os conservadores a aceitarem a Convenção Constituinte. A esquerda chilena ressente-se de estar travando quase sozinha uma luta de relevância mundial?
Nunca ouvi ninguém se queixar disso aqui no Chile. Ao contrário, creio que a esquerda chilena está bastante orgulhosa de seus feitos recentes e de haver conseguido uma boa convergência política e social em um momento tão fragmentado e crítico. Arriscaria, sim, dizer que ela está um pouquinho autoafirmada, e o segundo turno pode ser algo para eles repensarem que nem tudo está já está ganho – e é preciso trabalhar duro e não “dormir no ponto”. Antes, eles estavam, em alguns aspectos, num estado de negação quanto a ascensão de Kast; agora viram que a luta contra a ultradireita é coisa séria. Mas, em síntese, como o Chile sempre foi um laboratório do neoliberalismo estadunidense, a esquerda chilena tem muita clareza da importância destas eleições para dar um sinal de esperança para toda a região. Afinal, desde que a Frente Ampla surgiu, muitas atenções se voltaram para cá.
Quais as propostas essenciais da candidatura Boric? Como elas estão sendo recebidas pelas instituições – em especial a mídia, o Judiciário, os economistas ortodoxos?
Antes de tudo, é defender o processo constituinte – e colocar em prática todos os pontos aprovados. Logo depois, vêm as outras. Segue um resumo de alguma das propostas principais da Coalizão Apruebo Dignidad, representada por Gabriel Boric:
1) A Criação de um Sistema de Saúde Universal, inspirado no inglês e no brasileiro, já que o sistema público no país não é um direito garantido e não atende a população. A limitação é grande, sobretudo na saúde que requer cuidados e procedimentos mais complexos.
2) Aumentar a proteção ambiental, garantindo que a água se torne um direito humano fundamental. Atualmente a água é privatizada, os conglomerados mineiros e os latifundiários estão deixando centenas de cidades sofrer desabastecimento e secas.
3) Redução da jornada de trabalho e financiamento para micro e pequenas empresas. Para desespero da direita chilena, faz dois anos que a jornada de trabalho foi reduzida para 40 horas semanais, após intensa pressão popular.
4) Criação de um novo sistema de pensões e aposentadorias sem fins de lucro, que garanta aos menos 250 mil pesos chilenos para cada pessoa [cerca de R$ 1.670,00]. A derrubada do atual sistema AFP foi uma das principais reivindicações que levaram a população em peso para as ruas, em multitudinárias mobilizações ao longo dos últimos três anos.
5) Educação gratuita e de qualidade em todos os níveis e colocar freio nas dívidas educacionais. No Chile ultraliberal que tanto se preocupa com investidores estrangeiros, nem sequer o direito à educação está garantido na atual Constituição, herança da ditadura.
6) Reforma tributária para aumentar os impostos aos super-ricos para financiar as mudanças que Chile necessita. Esta taxação é um dos pontos que mais tira o sono dos ricaços chilenos.
7) Criação de um governo feminista que combata a violência de gênero e garanta o direito de cada mulher decidir sobre o seu corpo. Com um programa de governo com feminismo transversal a todas as pautas, se estabelecerá uma nova política de cuidados com subsídios trabalhistas.
8) Impulsionar o direito à moradia com oferta pública de qualidade, para diminuir a especulação imobiliária, que está galopante.
9) Criação de um estado plurinacional com reconhecimento constitucional dos povos originários e autonomia político-administrativa dos territórios. Além de desmilitarizar os territórios mapuche no Sul do Chile, o governo de Boric fomentaria o direito coletivo ao território e seus recursos para todos os povos originários de diferentes regiões.
10) Defender o processo constituinte e colocar em prática a nova Constituição, assim que ela for aprovada.
Esse é apenas um breve resumo das propostas que os super-ricos não querem que passe de jeito nenhum. O programa completo pode ser acessado neste link.
A grande surpresas das eleições – que já podia ser observada há alguns meses – foi o ressurgimento de uma extrema direita que parece se orgulhar da ditadura Pinochet. Seu candidato, José Antonio Kast, foi inclusive o mais votado no primeiro turno, com 27,9% dos votos. Há poucos meses, o Chile parecia disposto a enterrar o legado de Pinochet? Que levou ao ressurgimento da ultradireita?
É verdade que o ressurgimento da direita foi maior do que o previsto, porém a grande surpresa das eleições foi o terceiro candidato mais votado. Parisi teve 12% de votos com discurso apolítico contra a esquerda e a direita, fazendo campanha pela internet, desde os EUA. Sequer chegou a pisar no Chile durante toda a sua campanha e foi o terceiro colocado.
Ressalto o fenômeno do terceiro colocado porque é muito emblemático e ajuda a entender a profunda “virtualização” que ocorreu na política – e que a ultradireita está sabendo aproveitar melhor do que os outros setores. Na comunicação digital, enquanto estamos de arco e flecha eles estão armados até os dentes. É uma briga desigual, que fez duvidar até os mais céticos. Como as pessoas estão muito confusas, inseguras e solitárias, estão se tornando presas fáceis do discurso de ódio.
Como Jose Antonio Kast se coloca diante do projeto neoliberal? Como Pinochet, que o abraçou antes mesmo de Margaret Thatcher e Ronald Reagan? Ou como os governantes da Hungria e Polônia, que combinam autoritarismo político com alguma tentativa, ainda que parcial, de amenizar as desigualdades produzidas pelo mercado?
Kast é um neoliberal convicto no pior estilo pinochetista, abraça a mesma cartilha de Bolsonaro. Raposa velha de fala mansa, conhece todos os códigos da elite chilena e sabe como meter medo nos super-ricaços para que apoiem seu projeto fascista. Até onde acompanhei, não vi uma proposta sequer de amenizar as desigualdades, tudo que sai de seu palanque é discurso de ódio disfarçado de bom mocismo. É o popular “pacífico armando guerra”.
Junto com as eleições presidenciais foram eleitos todos deputados e 27 dos 50 senadores. Que indicam os resultados deste pleito?
No Congresso, a maior bancada será a de Chile Podemos Más (alinhada com Kast) seguida da Bancada Apruebo Dignidad (alinhada com Boric e com o processo constituinte). A esquerda sobe de 33 deputados nacionais para 44. As antigas coalizões da direita tradicional e da centro-esquerda encolheram um pouco, porém continuam significativas para definir os rumos do próximo governo.
No Senado, a direita obteve a maioria, mas houve um ressurgimento do Partido Comunista Chileno e um aumentou do número de senadoras mulheres.
O segundo turno das eleições presidenciais está marcado para 19 de dezembro. Como você vê as perspectivas e as quatro semanas de luta pela frente?
As próximas semanas serão muito acirradas e tensas. Boric chama sua base para uma postura de escuta e diálogo com os que não votaram nele no primeiro turno. Kast infla seus seguidores para uma espécie de confronto nas redes sociais, utilizando gritos de torcida como se fosse um jogo de futebol.
Sem dúvida trata-se de uma votação histórica que definirá os rumos das próximas décadas em todo o país. A ansiedade está gerando um boom de participação que lembra muito o segundo turno das eleições de 2018, no Brasil. Como a diferença entre os dois candidatos é praticamente virtual, o voto útil praticamente desaparece e o convencimento dos indecisos passa a ser peça central de preocupação em ambos comandos de campanha.
Se Boric conseguir associar sua candidatura com a renovação da política e conscientizar a população da importância de sair eleito para a manutenção da constituinte, ele ganha disparado. Porém, não será tarefa fácil.
Gunther Aleksander, em entrevista a Antonio Martins | Outras Palavras
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