Cesar Victora, epidemiologista que recusou comenda para protestar contra sabotagem do governo à Saúde, fala sobre a importância do SUS, o inconformismo da Ciência e sua obra, cujo reconhecimento internacional cresce a cada dia
Ao recusar a Grã Cruz da Ordem do Mérito Científico, na última sexta-feira (5/11) o Cesar Victora agitou o combalido mundo da ciência brasileira. A renúncia à medalha, “concedida” pelo governo Bolsonaro, estimulou outros pesquisadores a agirem de modo semelhante. Também deve repercutir na comunidade internacional, devido ao grande prestígio que Victora angariou por seu trabalho pioneiro, marcante no campo a que se dedica. Ainda em maio, ele foi agraciado pelo Prêmio Richard Doll, o mais importante e prestigiado da epidemiologia.
Professor emérito da Universidade Federal de Pelotas, defensor do SUS e autor de importante estudo sobre a covid, Victora, em sua recusa, declarou que não podia aceitar homenagem de um governo “que não apenas ignora, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva”. Como disse a Outra Saúde, “no instante em que eu recebi a notícia, dia 4, eu já decidi que eu não ia aceitar a medalha”. Disse também ter ficado muito contente pelo fato de vários outros pesquisadores tomarem a mesma decisão que ele.
“Eu até esperava que alguns outros colegas reagissem”, contou Victora. “Mas me surpreendeu o fato de que, dos trinta pesquisadores agraciados, 21 também já estavam sentindo o mesmo que eu e resolveram expressar isso numa carta coletiva”. Isso é super importante, acredita ele. “Fico feliz porque mostra inconformidade da ciência brasileira com os rumos do governo federal”. Dois homenageados, nesse meio tempo, foram retirados da lista inicial de 25 nomes pelo presidente: o médico infectologista, Marcus Lacerda, autor de um dos primeiros estudos sobre a ineficácia da cloroquina contra a Covid-19, e a médica, doutora em saúde pública, Adele Benzaken, afastada do ministério da Saúde após a posse de Jair Bolsonaro.
Victora considera o SUS “a maior conquista de saúde pública da população brasileira”. Ele argumenta que todo sistema de saúde tem imperfeições, tem falhas, é alvo de críticas. “Mas é de enorme importância para nós mantermos o SUS, que é o maior sistema público de saúde do mundo. Não tem nenhum outro sistema de tal tamanho”. Ele fala alicerçado por um conhecimento notável da Saúde pública. Atuou como pesquisador ou consultor em mais de 40 países, assessorando a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Entre suas contribuições científicas únicas estão a documentação da importância do aleitamento materno exclusivo para prevenir a mortalidade infantil e a construção de curvas de crescimento infantil atualmente adotadas em mais de 140 países. Victora é membro do conselho editorial de várias revistas, inclusive a prestigiada The Lancet. Aposentado de 2009, continua produzindo sem perder o ritmo. É autor de mais de 700 publicações científicas e tem mais de 44.000 citações no Web of Science.
O senhor causou uma agitação considerável na comunidade de saúde nacional com sua recusa da promoção conferida pelo governo. Disse que não reagiu de pronto, mas já tinha a percepção negativa que definiu sua decisão. Pode-se dizer que o senhor de fato avaliou a conveniência de realizar, ou não, um movimento de rejeição ao governo naquela oportunidade?
No instante em que eu recebi a notícia, dia quatro, eu já decidi que eu não ia aceitar a medalha. Então escrevi a carta. Mas como eu não gosto de tomar decisões intempestivas eu resolvi dormir em cima da carta. Deixei ela salva e no dia seguinte abri a internet e vi que dois dos condecorados tinham sido retirados da lista, e haviam sido justamente duas pessoas que contrariam políticas do governo. Então eu não tive mais opção, eu apertei o enviar e mandei a mensagem. Em seguida eu fiquei muito contente que vários outros pesquisadores também tomaram a mesma decisão.
O senhor esperava que seu movimento provocasse reação por parte de outros pesquisadores? Imagina que possa haver repercussão na comunidade internacional, tendo em vista o seu trabalho em diversas instituições, como o conselho editorial de várias revistas, inclusive The Lancet, pelo fato de estar inscrito no Clarivate, catálogo na internet dos pesquisadores mais citados do mundo, e ter um trabalho muito relevante de assessoramento da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)?
Eu até esperava que alguns outros colegas reagissem, mas me surpreendeu o fato de que, dos trinta pesquisadores agraciados, vinte e um também já estavam sentindo o mesmo que eu e resolveram expressar isso numa carta coletiva. O que aconteceu foi que eu fiz uma coisa individual e em seguida houve uma negociação entre os pesquisadores, trocamos dezenas e dezenas de e-mails e resolvemos todos juntos então fazer uma carta coletiva. Isso é super importante. Eu acho que, como eu tenho bastante visibilidade fora do Brasil – pelas razões que a pergunta mesmo menciona –, houve uma repercussão grande, e eu fico feliz com isso porque mostra inconformidade da ciência brasileira com os rumos do governo federal.
Poderia nos contar um pouco sobre seu trabalho como pesquisador? Por exemplo, o que o levou a documentar a importância do aleitamento materno? O senhor contou uma história curiosa sobre seu primeiro orientador, em relação à importância do trabalho de campo. Já tinha, em parte, essa percepção? No sentido de sua proximidade com populações das favelas de Pelotas e Porto Alegre? Quando decidiu a estudar mortalidade infantil e desnutrição?
Antes de ir pra Londres fazer o meu doutorado, eu já estudava mortalidade infantil no Rio Grande do Sul, mas era basicamente através de dados da secretaria de Saúde. Quer dizer eu não ia a campo fazer pesquisa epidemiológica e colher os dados. Eu usava os dados da secretaria. Eu escrevi um artigo sobre isso e enviei para um pesquisador inglês, Patrick Homent, que acabou sendo meu orientador. Quando eu cheguei lá, e disse, olha eu quero fazer esse tipo de análise, ele falou para mim que não acreditava em epidemiologia de poltrona. E que eu teria que ir a campo [buscar] os dados. Então, isso que gerou o meu trabalho. Tanto o trabalho que eu fiz antes de ir pra Londres, quanto a minha tese, foram ambos sobre essa questão da estrutura agrária, o latifúndio apresentando índices mais altos de mortalidade e de subnutrição de crianças.
Como chegou à construção de curvas de crescimento infantil? Quanto tempo de trabalho foi preciso dedicar a um tópico que atualmente é uma referência universal, adotada em 140 países?
Sobre o estudo de amamentação, eu sempre achava a mortalidade muito alta, a subnutrição muito alta aqui no Rio Grande do Sul, na década de 1970 e 1980, e a duração do aleitamento, muito curta. A duração média do leitamento aqui era de menos de três meses, o que é absolutamente insuficiente. A OMS recomenda vinte e quatro meses de aleitamento, que é o ideal, sendo que os seis primeiros meses seriam de aleitamento exclusivo. Ou seja, a criança não precisa receber mais nada Nem água, nem chá, nem suco, nem uma outra comida, nem leite em pó, além do leite materno. Com essa pesquisa, que foi publicada em 1987, eu fiquei bastante conhecido, começaram a me convidar para outras atividades. Inclusive ser um dos líderes do estudo que gerou as curvas de crescimento da OMS. E, posteriormente, também essa avaliação multinacional da ação integrada às doenças da infância. Então eu passei a viajar muito, trabalhar em vários países – trabalhei em mais de cinquenta países, gerando pesquisas sobre saúde da criança.
Desde o início de suas pesquisas, na década de 1980, com seu primeiro estudo da importância do aleitamento, poderia nos falar um pouco sobre como chegou a trabalhar junto à Organização Mundial da Saúde? Especialmente como consultor para a Avaliação Multinacional da Estratégia de Atenção Integrada às Doenças da Infância, que envolveu 12 países? E também sobre a coordenação na The Lancet/Bellagio Child Survival Series?
Complementando a resposta anterior, nós estávamos muito preocupados, ao redor do ano 2000, porque a saúde da criança estava recebendo pouca atenção e poucas verbas dos organismos internacionais e dos financiadores e agência de fomento a pesquisa. Aí que nós resolvemos criar então essa série Lancet, que foi um divisor de águas mostrando a necessidade de continuar a investir na prevenção das doenças da mortalidade de crianças pequenas. Essa série foi super influente e gerou inclusive a criação de um mecanismo que é o Countdown 2015 [Contagem regressiva], que ia até 2015, porque visava a monitorar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Nós agora rebatizamos porque vai até 2030. Continuamos super atuantes nisso.
Gostaríamos que nos contasse um pouco sobre seu trabalho atual no Centro Internacional de Equidade em Saúde.
Essa pergunta é muito relacionada com o que eu acabei de falar do Countdown. Nós começamos a colecionar inquéritos de saúde nos quais eu inclusive tive uma participação em 1994. Foi quando foram criados os inquéritos UNICEF. Eu passei um ano em Nova Iorque elaborando a metodologia desse inquérito, que já foi usado em uma centena de países. É super importante. É super recompensante para mim estar recebendo agora os dados desses inquéritos e analisando-os no nosso Centro de Equidade com ênfase em desigualdade de saúde. Quer dizer, como é que estão os meninos, como é que estão as meninas? Como é que estão as crianças da área urbana e da rural? Como é que estão crianças de famílias mais ricas e mais pobres? Como é que estão crianças de diferentes grupos étnicos e assim por diante. A gente faz as tabulações. Divulga para os países e interage com os países e publica essas estatísticas de desigualdade em saúde materno-infantil.
O senhor acaba de receber, em maio, um prêmio importante, o Prêmio Richard Doll em Epidemiologia, por um trabalho pioneiro e de muita relevância, estabelecendo conexão considerada inequívoca entre o tabaco e diversos problemas de saúde, como doenças vasculares e câncer. Como foi feito esse trabalho, distinto do seu campo principal de pesquisa?
O prêmio Doll é o prêmio máximo da epidemiologia. Ele até hoje só foi dado cinco vezes. De três em três anos se seleciona um epidemiologista para recebê-lo e eu sou o primeiro a receber que não trabalha na Europa nem nos Estados Unidos, foi o primeiro da área em desenvolvimento e eu fico superfeliz. É o maior reconhecimento que eu poderia ter na minha carreira, juntamente com aquele prêmio do Canadá, que é o Prêmio Gairdner, também, que é o Prêmio Saúde Global, que eu recebi em 2017. São as duas premiações mais importantes da minha carreira.
O senhor atua em um setor sobre o qual há ampla expectativa entre os setores que apoiam e defendem o SUS – eu me refiro à coordenação da pesquisa EPICOVID-19. O que o sr. acha importante salientar, sendo esse o primeiro estudo brasileiro a estimar a proporção de casos de coronavírus e a monitorar o curso da pandemia em 133 cidades em todos os estados do país?
Eu acho que realmente a experiência aqui de Pelotas em fazer esses inquéritos populacionais – aquela história do epidemiologista que sai na rua e faz as avaliações dos programas de saúde, dos problemas de saúde na população – nos colocou numa posição que eu creio que é muito útil para o país inteiro. Porque a gente conseguiu – com o apoio do primeiro ministro de saúde do governo Bolsonaro – montar essa pesquisa. Que estudou então a pandemia em em 133 – a gente até brinca que é o nosso estudo do Oiapoque a Pelotas. Porque o Oiapoque entrou na amostra, Pelotas entrou, e depois do Chuí, que é uma cidade pequena e não entrou na amostra, a cidade mais ao sul da nossa pesquisa toda foi Pelotas.
Então a gente conseguiu, de norte a sul, de leste a oeste do Brasil, fazer esse estudo que trouxe importantes subsídios, mostrando que foi a Amazônia a região mais afetada, lá no começo da pandemia. Que foi muito inesperado. A gente até achava que cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, seriam mais afetadas. Vejam bem, a gente gosta muito de lidar com números relativos né? A gente como epidemiologista trabalha sempre com taxas populacionais. A gente calcula o número de mortes por milhão de habitantes, por exemplo. E aí, a região norte foi a que tinha mais alto índice, lá no começo da pandemia. É uma grande pena que, com a mudança do Ministério de Saúde, o ministério não mais achou importante financiar essa pesquisa. E a gente ficou então sem dados populacionais de prevalência no âmbito nacional.
Há percepções conflitantes sobre – ou uma dificuldade de avaliar com mais precisão – o resultado do trabalho do SUS na pandemia, tendo em vista algumas circunstâncias, como o elevado número de mortos no Brasil em proporção à população, e um estresse do sistema no cuidado de doenças usuais. Inclusive, possivelmente, levando, por exemplo, a aumento de infecções infantis. Qual a sua opinião a respeito disso? Acha que a sociedade aprovou o trabalho do SUS, passou a ter uma percepção mais favorável a ele e à importância da saúde pública?
O SUS é a maior conquista de saúde pública da população brasileira. Vocês já pensaram como seria uma pandemia dessas sem o SUS? Que as pessoas tivessem a pagar por consultas, ou pessoas tendo diferentes tipos de convênio? Algumas sendo atendidas, outras não? Pagar por UTI? Então, o SUS tem sido subfinanciado há muito tempo… Em 2011 nós escrevemos uma série de artigos para a revista Lancet, onde a gente mostrava todos os progressos que o Brasil alcançou – que foram muitos e muito importantes – que o Brasil apresentou em saúde nos últimos 50 anos, vamos dizer assim. Antes da pandemia. Mas o SUS já estava subfinanciado. O governo sempre fez orçamentos menores do que a gente precisaria.
Mas eu acho que o SUS melhorou muito na visão da população brasileira. Todo sistema de saúde tem imperfeições, tem falhas, é alvo de críticas. Mas é super importante pra nós mantermos o SUS. É o maior sistema público de saúde do mundo. Não tem nenhum outro sistema de tal tamanho, e é um sistema unificado, que trabalha nas instâncias federal estadual e municipal, e traz um uma consistência, uma oferta de serviços médicos desde atenção primária à saúde nos postos periféricos, o programa de saúde da família, até transplantes, quando necessários, e tratamento em UTIs. Esse espectro de atuação do SUS é super importante pra saúde da população brasileira e precisa ser reforçado.
A minha expectativa é que com o bom desempenho do SUS durante a pandemia — se a gente não tivesse o SUS não seriam seiscentas mil mortes, seria um milhão de mortes, talvez — a gente se dê conta de que o governo precisa investir mais seriamente na área de saúde pública.
por Flávio Dieguez
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