Como racionalidade da fé, toda teologia é tributária do contexto sociocultural no qual ela se articula
Como racionalidade da fé, toda teologia é tributária do contexto sociocultural no qual ela se articula. Não há, nem mesmo no Novo Testamento, uma teologia “neutra” que transcenda as categorias e os elementos ideológicos próprios à palavra humana ‑ inclusive quando esta palavra traduz a Palavra de Deus. Basta lembrar as quatro versões da existência histórica de Jesus: Mateus, Marcos, Lucas e João. São quatro diferentes enfoques teológicos, articulados a partir de situações e destinatários distintos. Do mesmo modo, hoje o universo cristão conta com tantas teologias quantas são as práticas organizadas das Igrejas.
Na América Latina, as Igrejas que preservam o pacto neocolonial, ideologicamente articuladas com o projeto das classes dominantes, insistem na ortofonia, ou seja, na mera repetição da ortodoxia oficial, sem nenhum tipo de vínculo (encarnação) com a realidade ‑ o que resulta em discursos abstratos, onde são diluídas, em nível epistemológico, às contradições que existem em nível do real.
Tal postura engendra o neoconservadorismo de corte fascista, capaz de detectar, com seu apurado faro anticomunista, sinais de evidentes heresias em tudo o que ameaça esse modelo eclesial que, sob a capa da “pureza da fé”, encobre a defesa intransigente do direito à propriedade privada ‑ do qual, evidentemente, a maioria da população deve ficar excluída.
A modernidade influiu naquelas Igrejas abertas aos projetos de reforma social e nas quais o pensamento cristão mantém permanente diálogo com as novas ideias dos centros acadêmicos. Entretanto, seria uma transposição inadequada imaginar que a Teologia da Libertação só se diferencia desse último modelo eclesial por estender seu diálogo também ao universo marxista, como uma espécie de fronteira avançada do campo onde se estabelece o intercâmbio entre fé e ciência, ética e tecnologia, revelação cristã e projeto político.
A Teologia da Libertação não se configura como uma tendência dentro da Igreja ou uma nova corrente de pensamento emanada do esforço acadêmico de alguns teólogos simpáticos ao socialismo. É esse enfoque míope que impede muitos de compreendê‑la em sua profundidade e extensão. A Teologia da Libertação é um novo método de se fazer teologia, que tem como ponto de partida a realidade da pobreza em que vive a grande maioria da população da América Latina. E, como ponto de chegada, o projeto de libertação integral, capaz de assegurar a esse povo o dom maior de Deus, confirmado pelo próprio Jesus ao definir o objeto de sua missão: “Vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João 10, 10).
Em nosso Continente, a teologia participa também da dependência aos centros hegemônicos do capitalismo, justificando modelos eclesiais que procuram legitimar a desigualdade social. Porém, a crescente mobilização dos oprimidos, como sujeitos de sua própria libertação, dentro de um âmbito cultural profundamente marcado pelo Cristianismo, faz com que, do interior desses processos sociais, surja um novo projeto pastoral. Através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a pastoral popular engendra tanto o novo modelo eclesial, identificado como Igreja dos pobres, quanto o fruto dessa reflexão que, no interior das lutas libertadoras, articula fé e política: a Teologia da Libertação.
Portanto, a Teologia da Libertação não é ato primeiro. É ato segundo, derivado da presença cristã, de corte popular e libertador, no seio dos movimentos que encarnam a proposta de construção de uma nova sociedade que erradique a luta de classes. Neste sentido, o teólogo da libertação deve estar organicamente vinculado à prática libertadora, assumindo o campo da política como esfera mediadora de seu desempenho evangélico.
A Teologia da Libertação penetra quase todo o âmbito eclesial da América Latina. Ela se expressa de modo popular nas CEBs, nos círculos bíblicos, nas celebrações camponesas e operárias, através de liturgias que resgatam as tradições, as festas e os símbolos das classes populares. Expressa‑se também na linguagem pastoral de agentes leigos, sacerdotes e religiosas que assumem a opção preferencial pelos pobres, desempenhando papel profético dentro de situações e estruturas que objetivamente negam o projeto de Deus na história. Adquire, enfim, conotação mais metódica e científica no trabalho de teólogos profissionais, como Gustavo Gutiérrez, Pablo Richard, Miguel Concha, Júlio de Santa Ana, Elsa Tamez, Maria Clara Bingemer, Tereza Cavalcanti, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Carlos Mesters, Marcelo Barros, Raúl Vidales, Juan José Tamayo, Jon Sobrino e tantos outros e outras que, a partir de seus vínculos com a prática libertadora, repensam a fé cristã nos parâmetros da Tradição, da Bíblia e do ensino do magistério eclesiástico a partir dos lugares social e epistêmico dos oprimidos.
O oprimido não é simplesmente ponto de referência da reflexão teológica libertadora, nem apenas o seu destinatário. É, sobretudo, o sujeito e o ator da libertação que se processa dentro de um marco cultural cristão. De tal modo suas reflexões se incorporam às do teólogo, que a Teologia da Libertação acaba por ser um produto comunitário. Antes de representar uma nova qualidade de hermenêutica da doutrina cristã, é principalmente um serviço à emulação na fé e no amor, um estímulo à comunhão com os semelhantes, com a natureza e com Deus. Uma proposta de madura inserção na Igreja e uma fonte dessa espiritualidade, que vai da oração pessoal, como silenciosa contemplação, aos sacramentos que restauram no Cristo vivo as energias que ‑ através de mediações populares, sindicais e políticas ‑ tecem na história humana o perfil do Reino prometido por Deus. (por Frei Betto)
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