O momento militar

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Os líderes civis sempre acreditaram que a conciliação demoveria os chefes militares de uma nova agressão à legalidade.

Mais do que no período 1946-1964, a estabilidade eleitoral entre 1989 e 2014 proporcionou a ilusão de que estávamos num mero embate de valores diferentes, porém ancorados num consenso democrático. Uma leitura unilateral de Gramsci e outros autores nos movimentos sociais e partidos fundamentava aquela avaliação.

Não é a toa que a extrema direita mimetizou e distorceu o “gramscianismo” como se a esquerda tivesse uma secreta estratégia cultural de penetração nas instituições para subvertê-las por dentro. Mas a esquerda eleitoral no mundo todo mais se adaptou do que mudou o Estado. A proposição de Gramsci de que devemos levar em conta a estrutura econômica, assim como os movimentos políticos e as forças militares, foi esquecida. Revisitar a História do Brasil demonstra que esse não foi um equívoco novo. A época pré-1964, com seus motins militares e a campanha ideológica preparatória do golpe, é um exemplo.

Anticomunismo

É depois do levante comunista de 1935 que os militares encontraram um espantalho para buscar sua unidade baseada no anticomunismo e na ideologia da hierarquia e disciplina, raramente seguida por eles. Sustentaram o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas até derrubá-lo em 28 de outubro de 1945, pouco depois do dia da lealdade na Argentina.

A coincidência é importante porque Getúlio Vargas havia perdido o apoio dos setores da elite liberal e a tolerância dos militares. Em contrapartida, havia se aproximado de suas bases sindicais e de uma concepção trabalhista, e o exemplo de Juan Domingo Perón era manipulado por Goes Monteiro para levantar suspeitas sobre Vargas, a quem ele vinha traindo.

A solução de compromisso foi o governo Dutra, militar e anticomunista, mas que não atacou a estrutura corporativa sindical. O Partido Comunista do Brasil foi colocado na ilegalidade e as greves reprimidas. Mas diferentemente da Argentina, o PCB apoiou Vargas em 1945 e, apesar de recuos e oscilações, incorporou-se ao campo trabalhista gradualmente.

Getúlio Vargas voltou ao poder em 1950 “nos braços do povo”. Embora sua vitória fosse contestada por políticos do principal partido direitista, a União Democrática Nacional (UDN), pela imprensa conservadora e por oficiais militares, sua posse foi garantida por setores do exército ainda legalistas.

Da mesma forma, após o seu suicídio, diante da iminência de um golpe militar em agosto de 1954, poucos meses depois da queda de Jacobo Arbenz na Guatemala e um ano antes da deposição de Perón na Argentina, o novo governo do vice-presidente Café Filho não teve sustentação militar para inverter completamente o rumo estatizante e desenvolvimentista da Era Vargas. Em novembro de 1955, após as eleições que deram a vitória a Juscelino Kubitschek o Marechal Teixeira Lott liderou o contra-golpe militar que garantiu a posse do novo presidente.

O novo governo, tendo Lott como Ministro da Guerra, enfrentou duas sedições militares da Aeronáutica em regiões desoladas do país: Jacareacanga, na região amazônica, e Aragarças, em Goiás. Neste caso, os rebelados se refugiaram em Buenos Aires e na Bolívia, sendo depois anistiados. Também houve a trama de um sequestro do próprio presidente, mas que não foi colocada em prática. Outras intentonas militares se sucederam, umas mais conhecidas como a tentativa de impedir a posse de João Goulart, outras menos, como o atentado a bomba na Exposição Soviética de São Cristóvão, em 1962 no Rio de Janeiro.

No entanto, dois golpes de resultados distintos expressam em suas particularidades um processo geral pelo qual passava a sociedade brasileira e que parece não ter se interrompido ainda hoje: a massificação da política expunha a incompatibilidade entre democracia e burguesia.

Acontecimentos

O golpismo se efetuava em sucessivas ondas desde agosto de 1954, como revela a narrativa factual de Edgard Carone. Animavam os conspiradores ostensiva atitude de oficiais da Aeronáutica, da Igreja Católica e da maior parte da imprensa contra o “comunismo”; serviam-se ainda de organizações criadas depois da eleição de Vargas. Em 1952 surgiu a Cruzada Democrática, integrada por oficiais do Exército; no ano seguinte fundaram-se o Clube da Lanterna e a Cruzada Brasileira Anticomunista, ambas de natureza civil.

No primeiro de novembro de 1955, no enterro do presidente do Clube Militar, general Canrobert, o coronel Jurandir Mamede fez um discurso contra a “mentira democrática” e a “pseudolegalidade imoral e corrompida”. Mamede era conhecido agitador político nos quartéis e signatário do Memorial dos Coronéis de 1954. Lott, então Ministro da Guerra, procurou obter de Café Filho a punição de Mamede, mas o presidente alegou problemas de saúde, licenciando-se. Assumiu o presidente da Câmara Carlos Luz, em 8 de novembro. Luz não aceitou a punição de Mamede e forçou Lott a se demitir.

O historiador Nelson Werneck Sodré, naquela altura major, escreveu que na noite de 10 para 11 de agosto de 1955 chefes militares com responsabilidade de comando reunidos em diversos locais decidiram apoiar a continuidade de Lott no Ministério da Guerra. Foi imperativo o respaldo do General Odylio Denys, comandante da Zona Militar Leste. Numa tarde literalmente tempestuosa, pois chovia a cântaros, líderes da direita civil e militar fugiram em desabalada carreira para o cruzador Tamandaré e o golpe foi debelado.

A importância do contra-golpe de 1955 foi mostrar uma séria divisão das Forças Armadas. Um movimento militar constitucionalista se estruturou com um comando central e comandos regionais. Estabeleceu contatos com imprensa, congresso e personalidades civis e se considerava preparado para responder a vários tipos de golpe que poderiam ser desencadeados. Porém, a posição do Congresso foi vital tanto em 1955 quanto em 1964, como veremos.

Embora o Movimento Militar Constitucionalista em seu boletim interno apontasse o bloco de partidos (Socialista, Liberal, Democrata Cristão e UDN) ao lado do golpismo, no momento crucial tanto a Câmara, quanto o Senado destituíram Carlos Luz e, em seguida, o próprio Café Filho. Assim, deu posse ao Presidente do Senado Nereu Ramos, a única autoridade na linha sucessória que aceitava entregar o poder legalmente ao presidente eleito Juscelino Kubistchek. Já no dia 21 de outubro de 1955 os líderes dos principais partidos políticos tinham assinado um manifesto a favor da legalidade. Logo depois, todos os líderes partidários estavam na mesma posição anti-golpista, com a exceção da UDN.

Portanto, foi mediante uma combinação de ação militar com a hegemonia parlamentar que os partidários da legalidade conseguiram sustar o golpe. A intervenção dos militares na vida política jamais se fez sem o conluio com líderes da elite civil empresarial, política e da imprensa. No plano exclusivamente militar, o legalismo foi vitorioso porque os golpistas representavam uma grave ameaça à disciplina sem que houvesse a expectativa de uma “revolução” vitoriosa que empolgasse o conjunto das Forças Armadas.

Interpretações

O contragolpe não foi dirigido por uma esquerda militar. Lott atuou como totem do estabelecimento militar, na acepção de Oliveiros Ferreira. O estabelecimento militar não é neutro e depende de uma forma mentis fortemente marcada pelo anticomunismo. Por ser “anti” ele não define de antemão o “pró” e pode haver clivagens de interesses. Outra poderia ter sido a solução de 1955 se o supracitado Movimento Militar Constitucionalista tivesse dirigido o contra-golpe. O legalismo militar teria feito os expurgos e sanções necessários e os civis teriam feito o mesmo nos três poderes. Uma “revolução dentro da ordem”. Mas não foi assim.

Obviamente o legalismo de 1955 pode ser questionado devido à deposição de um presidente. Mas se formos além da superfície dos fatos, veremos que Café Filho conspirava contra a democracia, enquanto Lott a defendeu. Maria Vitória Benevides afirmou que o legalismo foi um mito porque tanto em agosto de 1954 quanto em novembro de 1955, o objetivo dos militares seria o mesmo: “a tomada em mãos da condução do processo político”. Diante da falta de unidade “o objetivo real do 11 de novembro teria sido adiar esse momento”.

A trajetória posterior dos dois principais líderes do 11 de novembro foi diferente. O General Denys em 1961 tentou impedir a posse de João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros; Lott defendeu a legalidade. Depois, manifestou-se contra mudanças na lei de remessas de lucros e o futuro projeto Radam (aerofotogrametria). A questão, logo se vê, não reside em divergências interna corporis, porque estas exprimem indecisões inerentes à própria sociedade civil. Um golpe sem os militares não teria eficácia. Mas um puramente militar também não. Só um golpe civil e militar poderia ser bem-sucedido.

Tanto civis quanto oficiais precisavam de um projeto comum. Oliveiros Ferreira afirmou que o movimento sedicioso vinha sendo derrotado porque a uma nação em desenvolvimento “não se pode oferecer apenas a moralização dos costumes administrativos como programa”.

Em 1964 o partido militar se apoiou nos Estados Unidos e na elite empresarial, promoveu ampla propaganda ideológica prévia e formulou um programa liberal. Vitoriosa, a direita fez expurgos permanentes tanto no meio civil quanto no militar. Entre 1964 e 1970, foram punidos 1.487 militares, sendo: 53 oficiais generais e 274 oficiais superiores, 111 oficiais intermediários, 113 oficiais subalternos e 936 entre sargentos, suboficiais, cabos, marinheiros, soldados e taifeiros.

O Brasil não estava isento da tutela que os EUA exerciam sobre a América Latina. O golpe foi mais um entre outros apoiados pelo imperialismo. Em 1962, Argentina e Peru; no ano seguinte Guatemala, Equador, República Dominicana e Honduras; e em 1964 Bolívia. Ainda assim, cada intervenção estadunidense se fez valer mediante causas internas dos países atingidos.

A disputa de hegemonia

No período 1945-1964, três grandes partidos consolidaram campos políticos estabelecidos. O PTB ocupou a área sindical e “popular de esquerda” com discurso voltado aos trabalhadores urbanos; o PSD ocupou o centro, sem ideologia definida e com base na oligarquia rural e nos proprietários rurais. A UDN voltou-se para as classes médias, iludidas com o “gigantismo” estatal e a corrupção e defensoras de uma moralidade seletiva.

A UDN manteve permanente contato conspiratório com uma fração estratégica dos setores médios: os oficiais militares, o que tingiu o seu liberalismo com tinturas de estatismo. Um liberalismo bastante ambíguo e pragmático. Somente quando se instalou uma crise de regime em 1964, a maioria do PSD aderiu ao golpismo da UDN e todo o terreno político fundado no consenso desenvolvimentista cedeu lugar à modernização conservadora.

O PSD foi o fator de estabilidade política porque sua maioria não dependia da sigla ou de um programa, mas do poder local. Assim como o MDB mais tarde, ele exibia uma “unidade sem união”. Seu programa era meramente formal, embora tivesse na “ala moça” um grupo reformista: “o fato do PSD representar o poder torna secundária a questão da ideologia”, como escreveu Edgard Carone.

O PSD garantia o apoio dos coronéis, embora o coronelismo fosse uma realidade em decadência diante da centralização do Estado após a Revolução de 1930. A expansão da sindicalização rural, das Ligas Camponesas em Pernambuco e conflitos agrários em São Paulo, Paraná e Goiás etc. levaram ao declínio do próprio PSD. Os políticos udenistas e pessedistas atuavam na estrutura governamental para bloquear a extensão da legislação trabalhista ao campo.

A política brasileira, ancorada no avanço das forças materiais da produção, massificou-se e a sociedade civil se tornou mais complexa, embora desarticulada pelas desigualdades sociais, pelas assimetrias regionais de desenvolvimento, pelo imperialismo, pelos valores dominantes autoritários e, fundamentalmente, pela repressão à Esquerda. Houve ainda uma significativa mudança na relação de forças partidária. O eleitorado nacional cresceu 18% entre 1945 e 1964. PSD e UDN elegeram cerca de 80% dos deputados federais em 1945 e 51% nas eleições de 1962. O PTB passou de 7,6% a 28,3% no mesmo período.

A crise que levou ao golpe de 1964, diferentemente do que aconteceu em 1955, teve ampla participação do Congresso que buscou legalizar a intervenção militar ao declarar que o presidente João Goulart havia abandonado o cargo.

O conflito entre um Congresso conservador e um executivo pressionado por demandas reformistas de movimentos sociais acentuou-se no início dos anos 1960. As frações empresariais se uniram a militares conspiradores e à imprensa para preparar minuciosamente a intervenção armada. A conjuntura que combinou transformações estruturais da economia e da sociedade com os acontecimentos que precipitaram o golpe foi marcada pelo restabelecimento do presidencialismo, o Plano Trienal, as reformas de base, a Vigília Cívica e os conflitos de março de 1964.

O sistema de alianças ruiu no Congresso porque no momento em que os grupos dominantes creram que seus privilégios fundamentais estavam em questão (a propriedade da terra e o controle total das decisões empresariais de investimento), seus representantes colocaram em segundo plano os privilégios de relacionamento com o governo central e foram seduzidos pelo histórico engajamento golpista da UDN. A contrarrevolução preventiva agora parecia possível. Por fim, os custos políticos de tentativas anteriores revelaram-se pequenos, já que os envolvidos sofriam punições brandas e voltavam a conspirar.

Democracia e empresariado

O regime de 1946 a 1964 não recebeu uma nomeação unânime da historiografia. Edgard Carone o chamou de “república liberal”; Pedro Estevam Pomar de “democracia intolerante”; Jorge Ferreira e Lucila Delgado foram mais otimistas e deram a um dos volumes de sua coleção Brasil Republicano o subtítulo de “o tempo da experiência democrática”. Carlos Marighela definiu o regime republicano brasileiro como uma “democracia racionada”.

Essa dificuldade talvez venha a reaparecer com a retomada da crítica que a esquerda fazia nos anos 1980 ao termo Nova República, que de “nova” tinha muito pouco. Afinal, que tipo de República depende do arbítrio de empresários e militares a cada vez que forças progressistas ganham eleições?

A explicação depende de inúmeras considerações, como o baixo nível do excedente, o imperialismo, a posição geopolítica, o comportamento das camadas médias, a caracterização das sociedades latino americanas (ocidental, oriental, híbrida) etc. Mas se há algo que se deveria aprender logo é que não existe governo reformista que sobreviva sem um dispositivo militar. Ou melhor: sem que o partido militar considere que sua adesão à ruptura constitucional terá um custo muito alto em termos econômicos e corporativos.

As diversas intentonas de 1954 a 1964 ficaram impunes porque os líderes civis acreditaram que a conciliação demoveria os chefes militares de uma nova agressão à legalidade. Mas era exatamente o contrário: eles interpretavam a tibieza civil como uma falta de disposição para o exercício pleno do poder.

Se um futuro regime democrático usar a legalidade para punir as cliques privilegiadas das Forças Armadas e policiais que atuam como um partido militar, então saberemos que nome dar à próxima República.

por Lincoln Secco – professor do Departamento de História da USP.

 

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