Relatos do acosso à imigração brasileira em Portugal: ela representa 30% dos estrangeiros no país, mas amarga preconceitos em escolas e ao alugar imóveis. As estratégias: rebaixar o acento “verde amarelo” e acusações de serem peso à Previdência
“Agora na rua só oiço brasileiro”, me diz a vizinha, uma senhorinha de 92 anos que me trouxe coscorões (um biscoito frito crocante) nas festas de Ano-Novo. “Poiss!”, respondo, simulando, com o uso da interjeição que serve para concordar com tudo, alguma intimidade com o português local nesses poucos meses de Lisboa. Penso na seguinte resposta irônica sobre a suposta prevalência do falar do Brasil: “Não só na rua; em casa também.” Pois (conjunção explicativa) minha gentil e bem disposta vizinha parece gostar de conversar comigo. E a recíproca é verdadeira.
No começo, além de tropeçar nos falsos cognatos, não compreendia nem a metade do que ela me dizia. Que língua comum é essa em que até as palavras conhecidas, mas com sílabas engolidas e sons ríspidos de consoantes, “se entrechocam como pedras” (castelhanas)? Logo aprendi a superar os hiatos com os providenciais “pois” – e assim nosso estranho diálogo prossegue e evolui.
O introito acima é para mostrar que os revoltados pais de crianças conectadas nos youtubers do Brasil – o boneco de Luccas Neto foi sucesso absoluto no Natal – não são os únicos portugueses a pontuar, com nuances que vão da constatação à intolerância, a tal predominância do “brasileiro”. Foram apenas os primeiros a reclamar em alto e bom som, ecoado na mídia lisboeta.
Quem não se lembrará de uma professora da infância, brava, a nos dizer que nosso idioma se chamava português e não brasileiro? Hoje em Portugal querem nos convencer do contrário. Eis a primeira grande surpresa para quem aterrissa pensando no conforto e na facilidade de partilhar uma língua-mãe. Só que não. Esqueça também a ideia de que o sotaque brasileiro, exportado pelas músicas e telenovelas, seja considerado totalmente “cool”. Menos, menos.
A tentativa generalizada de rebaixar o português verde e amarelo talvez seja a primeira reação dos nacionais ao grande afluxo, nos últimos quatro anos, de brasileiros. Dos 714 mil estrangeiros em Portugal, 209 mil são brasileiros, o maior contingente, distribuído sobretudo por Lisboa, Porto e Braga. Um número oficial que não inclui os que ainda não se regularizaram e os com dupla cidadania.
Nos últimos meses, boa parte dos imigrantes com quem falei, mais de uma dezena, do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Distrito Federal, Pernambuco e Rio Grande do Sul, quase todos de classe média, disseram sentir que falar “brasileiro” é colocar-se em imediata desvantagem, sob o risco de abrir a porta para 500 tons de xenofobia.
Telefonar e ouvir um lacônico “não” já é um clássico, sobretudo na procura por imóvel. Ouvi esse relato de vários brasileiros até com cidadania portuguesa – dentre eles um casal paulista de empreendedores que demorou um ano para conseguir alugar, em condições justas, uma loja. Alguns me contaram que preferem se calar em público; outros decidem mimetizar logo o sotaque lusitano para tentar escapar de constrangimentos. Será que essa percepção pode ser medida?
Em 2020, a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) de Portugal apurou 50% a mais de queixas do que em 2019, ano em que já haviam subido 26%. Esses dados constam do Relatório Estatístico de 2021 do Observatório das Migrações, que registrou ainda aumento da percepção em Portugal de que discriminação étnica é comum ou muito comum (67% em 2019, acima da média europeia de 59%).
A Casa do Brasil de Lisboa, uma organização social com mais de 30 anos, publicou recentemente um relatório em que 75% dos 112 imigrantes ouvidos em 2021 – a maioria formada por brasileiras, brancas, jovens e com ensino superior – afirmaram ter sido alvo de discurso de ódio nas redes sociais (32% das menções), nas instituições de ensino (19,5%) e no serviço público (21%). Já há nas redes sociais iniciativas para divulgar exclusivamente casos vividos por brasileiras. Além de serem comuns as denúncias de assédio, mais da metade dos 51 relatos publicados apontou o modo de falar – e também de escrever – como motivo de discriminação.
Apesar de o Novo Acordo Ortográfico estar em vigor desde 2009, o português do Brasil foi classificado como “errado”, “incorreto”, “de bar”, “nordestino”, e a escrita repreendida nas universidades por ser “inadequada” e não usar a sintaxe e termos portugueses consagrados. Detalhe: no contingente que afirma ter sofrido xenofobia, mais de 21% têm também cidadania portuguesa. A questão se torna ainda mais contraditória porque Portugal é desde 2016 um dos países europeus que mais concedem cidadania.
Fora das universidades, nas escolas públicas, que chegam a ter mais de 10% de alunos estrangeiros, dispararam os registros de xenofobia com violência. Acompanhei a angústia da artista plástica Joana Passi, que não encontrou numa escola pública do Porto qualquer apoio do corpo docente – sequer resposta para os vários e-mails – ao defender o filho de bullying severo. Pelo contrário: a criança terminou o ano de 2021 ameaçada de expulsão. Esse desfecho, em que a vítima é que sofre punição, se repete em denúncias recentes feitas por outras famílias. Joana, que formalizou a queixa em nível federal, já voltou ao Brasil. Ela me contou que ouviu professores identificarem os alunos pela nacionalidade, dizendo que os ‘brasileiros estavam a fazer asneiras’ e ‘portavam-se como índios’.
Numa repartição pública, eu mesma fui brindada com um ofensivo “uma a menos” (expressão que significa sobra mais para nós) por uma atendente de saúde, quando reclamei ao ter negada a dose de reforço contra Covid. O motivo? Até 8 de fevereiro, Portugal não validava algumas vacinas reconhecidas pela OMS produzidas fora da União Europeia, como a AstraZeneca- Fiocruz, que tomei no Rio de Janeiro. Essa situação, que demorou seis meses para ser regularizada, levou para o fim da fila do reforço, no auge da onda de Ômicron, muitos (a menos) sul-americanos, africanos e asiáticos.
A falácia de que os estrangeiros seriam uma sobrecarga para a seguridade social – muito repetida na Europa pela extrema direita, que passou de um para doze deputados em Portugal –, está disseminada. Mas a verdade é que as contribuições dos estrangeiros para a previdência local somaram 1,075 bilhão de euros em 2020. Os brasileiros, campeões, responderam por 32% desse valor. Naquele ano, a balança dos estrangeiros foi superavitária para a seguridade portuguesa em 802 milhões de euros. Durante a campanha, o primeiro-ministro reeleito António Costa (PS) gabou-se de ter adiado em dez anos o déficit previdenciário. A projeção para 2022 mostra a previdência portuguesa com saldo de 1,4 bilhão de euros. O governo e boa parte da população sabem também que, com o quadro demográfico do país – perda de 217 mil habitantes, pelo Censo de 2021 –, setores de base da economia entrariam em colapso sem os imigrantes.
Voltando à guerra fonética, uma brasileira que faz doutorado em letras me contou que um dia foi surpreendentemente convidada a ler Camões em voz alta. Segundo explicou o professor, o Brasil, que nunca ensinou o tupi como disciplina nas escolas, teria conservado a sonoridade adequada, hoje perdida em Portugal, para declamar os versos da epopeia escrita no português do século XVI. Pois. Alguém dará um viva à lusofonia?
Publicado originalmente na Piauí
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