O que muda com o apoio dos EUA à quebra de patente da vacina contra a covid

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Em guinada histórica, Casa Branca relativiza propriedade intelectual de imunizantes contra o novo coronavírus e dá apoio de peso à mudança de regras na Organização Mundial do Comércio

O governo do presidente americano Joe Biden anunciou na quarta-feira (5) que vai apoiar a quebra de patente das vacinas contra a covid-19 nas negociações em curso na OMC (Organização Mundial do Comércio).

O anúncio representa uma mudança histórica e inesperada de posição dos EUA, um país tradicionalmente protecionista em relação à propriedade intelectual e engajado na defesa dos lucros de empresas privadas do setor de saúde, seja em governos republicanos ou democratas, como o atual.

“A administração [Biden] acredita fortemente na proteção das propriedades intelectuais, mas com vistas a encerrar essa pandemia, apoia a anulação dessas proteções para as vacinas contra a covid-19” (Catherine Tai embaixadora e representante da USTR (Escritório de Representação Comercial dos Estados Unidos, na sigla em inglês), em comunicado de 5 de maio de 2021)

A justificativa para a mudança de posição foi a excepcionalidade da pandemia da covid-19 que, até o dia do anúncio, já havia deixado mais de 3,2 milhões de mortos e 155 milhões de contaminados em todo o mundo. A doença vem provocando sucessivas ondas de contágio e atingindo novos picos de morte à medida que a propagação do vírus foge de controle em países populosos como Índia e Brasil, o que levou ao surgimento de novas variantes potencialmente mais perigosas.

A vacinação avança nos países desenvolvidos, mas patina nas nações em desenvolvimento. Essa disparidade não apenas representa um “fracasso moral”, como dito em janeiro de 2021 pelo diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde), o etípoe Tedros Adhanom, como também traz consigo o risco de que a continuidade da circulação do vírus favoreça o surgimento de novas mutações virais que ponham a perder os avanços já alcançados até aqui.

 

Biden, de máscara, sentado na mesa do presidente dos EUA, no Salão Oval da Casa Branca

FOTO: TOM BRENNER/REUTERS – 20.01.2021JOE BIDEN NO SALÃO OVAL DA CASA BRANCA APÓS A CERIMÔNIA DA POSSE REALIZADA NO CAPITÓLIO

Com a quebra das patentes das vacinas atualmente existentes, os EUA esperam acelerar a produção de novas doses e a vacinação massiva nos países em desenvolvimento. A posição americana é uma resposta à iniciativa liderada pelos governos da Índia e da África do Sul na OMC, mas, para se tornar realidade, dependerá da formação de um consenso no organismo, que é responsável pela fixação de regras de comércio mundial.

O consenso é a forma primordial de tomada de decisões entre os membros do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Porém, em caso de impasse, pode haver arbitragem e voto.

“Esses tempos e circunstâncias extraordinárias pedem medidas extraordinárias. Os EUA apoiam a anulação das proteções à propriedade intelectual das vacinas contra a covid-19 para ajudar a acabar com a pandemia, e vai participar ativamente das negociações na OMC para garantir que isso ocorra” (Catherine Tai embaixadora e representante da USTR (Escritório de Representação Comercial dos Estados Unidos, na sigla em inglês), em comunicado de 5 de maio de 2021)

O que é a quebra de patente

Patente é o nome dado à propriedade de um determinado medicamento, o que dá ao dono da descoberta o direito de explorá-lo comercialmente, repondo o valor investido na pesquisa e obtendo adicionalmente uma margem de lucro.

O debate sobre a manutenção ou a quebra dessas patentes – hoje protegidas pelo Acordo Trips (Tratado sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, da sigla em inglês), da OMC – opõem médicos especialistas em saúde pública e executivos da indústria farmacêutica.

As empresas detentoras dos direitos agem para manter o máximo controle possível sobre a produção dos medicamentos que desenvolvem, mas especialistas em saúde pública argumentam que esse direito deve ser relativizado quando se trata de debelar crises sanitárias de grandes proporções.

 

Médico com roupa de proteção e máscara segura cartaz onde se lê "vacina" escrito em inglês

FOTO: LINDSEY WASSON/REUTERS – MÉDICO AMERICANO SEGURA CARTAZ ONDE SE LÊ “VACINAS” EM CENTRO DE VACINAÇÃO DE SEATLE

A quebra de patentes não obriga os laboratórios a compartilharem suas fórmulas, mas permite que qualquer um possa fazer uma engenharia reversa e, a partir do estudo da substância em si, encontrar a própria maneira de produzir a droga e disponibilizá-la para consumo. Dessa forma, multiplicam-se as fontes de produção e o acesso ao medicamento.

O chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Fiocruz, Jorge Bermudez, que é também colaborador da OMS, explicou em junho de 2020, em entrevista ao Nexo, que o lucro das empresas não é afetado nesse processo.

Ele diz que, mesmo sendo privados, esses laboratórios se beneficiam com milhões em subsídios governamentais e fazem uso de pesquisas realizadas em laboratórios de universidades e outros centros de estudos criados e mantidos com recursos públicos.

No caso dos EUA, o Congresso destinou US$ 10 bilhões em recursos para uma operação de subvenção às pesquisas e aquisição de vacinas do setor privado, batizada warp speed (velocidade dobrada), cuja intenção é acelerar ao máximo a imunização da população do país.

“As companhias recuperam em pouco tempo o valor dos investimentos que elas alegam terem feito nas pesquisas. A recuperação do valor investido acontece em poucos anos, e esses são valores estimados em bilhões de dólares” (Jorge Bermudez chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Fiocruz, em entrevista ao Nexo em junho de 2020)

Um dos principais laboratórios envolvidos nesse setor, a Pfizer divulgou na terça-feira (5) um faturamento de US$ 3,5 bilhões no primeiro trimestre e uma projeção de entre US$ 15 bilhões e US$ 26 bilhões no acumulado do ano de 2021.

O lucro obtido com a venda das vacinas contra a covid-19 é estimado em 20% do valor das vendas dos imunizantes, que se tornaram a principal fonte de ingresso para Pfizer e outros laboratórios.

“O nosso país pagou mais do que o dobro do valor pago pelos países da União Europeia pelas duas milhões de doses da vacina desenvolvida pela AstraZeneca: US$ 5,25 por dose. Países da União Europeia pagaram US$ 2,16. Não podemos ficar reféns das indústrias farmacêuticas” (Paulo Paim (PT-RS) Senador autor do PL 12/2021, que propõe a quebra de patente das vacinas contra a covid-19, em artigo no Nexo, em 5 de fevereiro de 2021)

Outros gargalos

O anúncio da guinada na posição americana foi celebrado por organizações ativistas do setor, que pressionavam para que a experiência de quebra de patentes de remédios ligados à aids, na primeira década dos anos 2000, fosse repetida agora, na pandemia do novo coronavírus.

De outro lado, representantes da indústria farmacêutica ponderaram que não é o oligopólio das patentes que torna as vacinas insuficientes ou inacessíveis atualmente, mas os gargalos de produção do IFA (Insumo Farmacêutico Ativo) e as dificuldades da cadeia logística. Esse processo vai da manufatura à aplicação das doses, passando pela acomodação adequada e pela distribuição.

“A suspensão de patentes talvez não seja suficiente para aumentar a capacidade produtiva dos países. Direitos de propriedade intelectual não afetam a falta de matérias-primas para produzir as vacinas” (Elizabeth Carvalhaes presidente da Interfarma, que representa no Brasil 51 laboratórios do setor, em declaração dada ao jornal Folha de S.Paulo, no dia 6 de maio de 2021)

A posição do Brasil

O governo do presidente Jair Bolsonaro não está alinhado com os países que defendem abertamente a quebra imediata de patentes das vacinas da covid-19. Essa posição era consonante com a política implementada pelo governo americano sob a administração de Donald Trump até então, mas agora passou a destoar da política adotada por Joe Biden.

Não está claro ainda de que maneira o Brasil pretende lidar com a mudança de posicionamento da Casa Branca. O chanceler brasileiro, Carlos França, deve conversar nesta sexta-feira (7) com a representante comercial americana Catherine Tai para estudar a mudança de cenário.

 

Bolsonaro diante de bandeiras brasileiras em seu pronunciamento por teleconferência na cúpula do clima promovida pelos EUA

FOTO: MARCO CORREA, PALÁCIO DO PLANALTO/VIA REUTERS  PRESIDENTE BRASILEIRO, JAIR BOLSONARO, FALA NA CÚPULA DO CLIMA PROMOVIDA PELO GOVERNO AMERICANO

Em audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, nesta quinta-feira (5), França ecoou as ponderações feitas pelos representantes dos laboratórios privados, de que o gargalo não está nas patentes em si, mas “nos limites materiais da capacidade de produção das vacinas”.

Além disso, o chanceler afirmou que “segundo os especialistas, vacinas são quase impossíveis de copiar, a curto ou médio prazo, sem o apoio dos laboratórios que as desenvolveram, mesmo com o auxílio da [quebra da] patente”.

O chanceler considera que o Brasil já dispõe de instrumentos legais que permitem o “licenciamento compulsório de patentes de forma ágil e adequada, sem qualquer ruptura com nossos compromissos internacionais”. Nesse sentido, a fala do ministro coincide com a de especialistas como Bermudez, segundo quem “o artigo 72 da nossa lei [nº 9.279, de 14 de maio de 1996] estabelece a possibilidade de emissão de licenças compulsórias nos casos de emergência nacional ou de interesse público”.

Sob o governo Bolsonaro, entretanto, o Brasil optou por não alinhar-se à Índia, África do Sul e outros 110 países em desenvolvimento que pediam a quebra imediata de patentes das vacinas contra a covid-19 na OMC, mas optou por propor um caminho alternativo. Segundo a proposta brasileira, os laboratórios privados que desenvolvem esses imunizantes poderiam transferir espontaneamente e de forma “consensual” seu “expertise e know-how” para a fabricação das doses em países em desenvolvimento.

Essa “terceira via”, como foi apelidada a proposta, recebeu o apoio dos governos de Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Nova Zelândia, Noruega e Turquia, mas é possível que a mudança americana mude a posição dos propositores no futuro.

Pressão parlamentar

O Senado aprovou no dia 29 de abril um projeto de lei de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que estabelece parâmetros para a quebra de patente das vacinas contra a covid-19. O texto, que espera votação na Câmara dos Deputados, deve ganhar novo impulso com a mudança de posição dos EUA no plano internacional.

 

CPI da Previdência do Senado

FOTO: JEFFERSON RUDY/AG. SENADO – SENADORES HÉLIO JOSÉ E PAULO PAIM (À PARTIR DA ESQ.), EM SESSÃO DA CPI DA PREVIDÊNCIA

O relator do projeto no Senado, Nelsinho Trad (PSD-MS) disse em suas redes sociais que a mudança de postura da Casa Branca é “uma sinalização política e corajosa que já criou ondas de impacto inclusive internacional”.

Paim, autor do projeto, disse que a nova posição americana pode provocar um “efeito Robin Hood” ao equalizar a cobertura vacinal contra a covid-19 no momento em que 90% das vacinas foram aplicadas em moradores de países desenvolvidos. “O apoio à quebra de patentes de vacinas pelo presidente Joe Biden dos EUA pode salvar bilhões de vidas. A União Europeia já dá sinal positivo para o tema. O Senado já aprovou o PL 12 das patentes. Falta a Câmara. O Brasil não pode perder o trem da história”, disse o senador.

Nexo Jornal

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