O veredicto de Chauvin

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Uma vitória histórica que aponta o caminho a seguir

O fato mais instrutivo sobre o julgamento de Derek Chauvin – além do vídeo e do que a acusação e a defesa apresentaram – foi a composição do júri. Se não conhecemos os seus nomes, sabemos agora algo relevante sobre os doze membros que votaram na condenação: quatro mulheres brancas, dois homens brancos, três homens negros, uma mulher negra e duas mulheres “mestiças” ou birraciais. Praticamente todos eles pertencem à classe trabalhadora.

Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um júri composto pela metade de pessoas que se identificam como brancas, condenou um policial branco em razão do assassinato em segundo grau de uma pessoa negra, a acusação mais grave realizada até o momento. Se houver uma exceção, certamente não é tão visível quanto esta instância. Portanto, trata-se de um marco histórico – uma conquista a ser celebrada, uma vitória extremamente importante, pelo fato de que aponta o caminho a seguir.

Para aqueles que insistem que a realidade social trata apenas de narrativas e não de fatos – e que a narrativa dominante nos Estados Unidos é a triunfante supremacia racial branca – o voto dos doze jurados é um fato inconveniente. Pena que, compreensivelmente, o público não teve a chance de ver o rosto do júri; não é exatamente a emblemática versão Hollywoodiana dos anos 1950 “Twelve Angry Man” [Doze Homens e uma Sentença] de um júri da classe trabalhadora nos Estados Unidos de hoje. Ignorar a diferença entre as duas eras é descartar, irresponsavelmente, as oportunidades que existem atualmente para construir sobre a vitória e fazer algo potencialmente de longo alcance.

Em 1992, um júri formado totalmente por pessoas brancas em Simi Valley, Califórnia, absolveu os quatro policiais brancos que torturaram e espancaram brutalmente Rodney King. Eles se recusaram, ao contrário dos seis brancos no júri de Chauvin, “a ver com os seus próprios olhos” – brutalidade policial que também foi registrada em um vídeo. A diferença fala das profundas mudanças de atitude que ocorreram nos EUA antes e desde então com relação à questão racial. Os dois homens brancos no júri de Chauvin tinham entre 20 e 30 anos. Minha experiência como afro-americano dentro e fora de sala de aula em Minnesota por quase meio século é que os homens brancos nascidos depois de 1980 (Chauvin nasceu em 1976) são pessoas muito mais abertas para entender a realidade das pessoas negras e pardas. Ser um homem branco da classe trabalhadora na América do século XXI vem com vantagens decrescentes, menores do que estavam disponíveis apenas algumas décadas anteriores.

Em alguns meses, saberemos quanto tempo de prisão a condenação de Chauvin realmente alcançará. Esta decisão encontra-se totalmente nas mãos do sistema judicial sobre o qual os trabalhadores têm menos controle. Não é à toa que Chauvin optou por ter a opinião do juiz e não a do júri como determinante na decisão. Seja qual for o resultado, um júri de trabalhadores em vários tipos de cor de pele (skin colors) e sexos fez algo histórico, por conta própria e coletivamente. Os militantes engajados na luta contra a brutalidade policial devem absorver seu significado.

Em relação ao chamado sistema de justiça criminal, ou melhor, business as usual nos EUA, considerem o que o jornal New York Times escreveu alguns dias antes das deliberações do júri de Chauvin. “Desde que o depoimento começou em 29 de março, pelo menos 64 pessoas morreram nas mãos das autoridades policiais em todo o país, com negros e latinos representando mais da metade dos mortos. No sábado [17 de abril], a média era de mais de três assassinatos por dia” – incluindo agora o de Daunte Wright (2001-2021). Pouco depois que o júri deu seu veredicto em 20 de abril, de fato, outro assassinato ocorreu, o de Ma’Khia Bryant (2004-2021) em Columbus, Ohio. Andrew Brown Jr. (1979-2021) na Carolina do Norte, no momento em que este artigo está sendo escrito, é apenas o mais recente.

Todos nós deveríamos estar indignados com as mortes, mas não surpresos. A polícia existe, desde tempos imemoriais, para impor a desigualdade de classes. Enquanto vivermos sob um sistema sócio-econômico-político que se baseia, reproduz e aprofunda a desigualdade social – o capitalismo – a polícia será necessária “para servir e proteger” os interesses dos ricos governantes. Esses corpos armados e sem coração – imagine aquela imagem indelével de Chauvin e seu joelho no pescoço de George Floyd – são indispensáveis para mantê-los no poder.

O ex-chefe de polícia de Minneapolis Tony Bouza quase admitiu isso há muitas décadas em seu livro Police Unbound: “o cerne do problema do crime e do abuso policial nos Estados Unidos é nossa estrutura de classe tacitamente aceita que separa os privilegiados dos pobres, é o racismo sistêmico que a sociedade como um todo ainda não está disposta a enfrentar”. Ao contrário de seus antigos empregadores, que convenientemente ignoram as confissões pós-aposentadoria de Bouza, trabalhadores de todas as cores de pele podem se relacionar visceralmente com sua visão e estão “dispostos a enfrentar” todas as implicações – o que sugere o voto dos doze jurados.

Steve Schleicher, que apresentou os argumentos finais da acusação, enfatizou que o sistema que ele representava não estava em julgamento: “Este não é um processo anti-policial; este é um processo pró-polícia”.

Por essa razão, a classe dominante de Minnesota mobilizou enormes recursos, tanto pro bono quanto na folha de pagamento, para condenar Chauvin e convencer os trabalhadores de que “o sistema funciona”. Uma derrota teria sido um duro golpe político em sua credibilidade. Se pareceu um exagero para a promotoria, foi por esse motivo. A Polícia de Minnesota e a Associação de Policiais da Paz, que financiou a defesa de Chauvin, não foram páreo para seus esforços. A disputa bastante desigual revelou que, quando necessário, a classe dominante está preparada para colocar em seu lugar o chamado “sindicato da polícia”, para deixar claro quem está no poder de Estado.

Após o julgamento, o procurador-geral de Minnesota Keith Ellison, o promotor-chefe do caso, disse o seguinte: “Eu não chamaria o veredicto de hoje de “justiça”, no entanto, porque justiça implica verdadeira restauração. Mas é a responsabilidade, que é o primeiro passo em direção à justiça”.

Mas para que isso realmente aconteça, um novo sistema – ou melhor – um novo sistema operacional teria que ser instalado, não apenas o upload de aplicativos como programas de treinamento “consciente” (“woke”) para policiais, a versão mais recente do controle comunitário da polícia ou mesmo o “defunding the police” (“desfinanciar a polícia”). Todas são, basicamente, atualizações compatíveis com o sistema operacional ainda instalado que produziu o resultado George Floyd (1973-2020) em primeiro lugar.

Outro fato inconveniente, pelo menos para alguns: o fenômeno George Floyd não existe em Cuba. Ou seja, não há nada comparável lá à realidade que os dados preocupantes que o New York Times relatou sobre as mortes promovidas por policiais nos EUA. Mesmo os mais duros críticos de Cuba não fazem tal afirmação. Se, como alguns afirmam, o “pecado original” dos EUA é determinante, então como explicar por que os cubanos de ascendência africana não experimentam resultados semelhantes? Afinal, a escravidão racial existiu na ilha caribenha por mais tempo do que nos Estados Unidos. Se alguma vez houve um exemplo de sociedade que instalou um novo sistema operacional e mandou o antigo para o lixo, certamente deve ser a Cuba revolucionária (começando em 1º de janeiro de 1959).

O voto dos doze jurados da classe trabalhadora no julgamento de Chauvin em toda a sua diversidade registra o potencial para fazer algo sem precedentes na história dos Estados Unidos. A decisão deles deve encorajar a todos nós em perceber o que os trabalhadores podem realizar agindo juntos, apesar de séculos de esforços da classe dominante para usar a cor da pele para nos dividir.

Forjar um movimento de massas anti-brutalidade policial que seja genuinamente inclusivo e que trate cada participante como igual, independentemente da cor da pele ou qualquer outra identidade, é, novamente, uma possibilidade, diferente de antes. Esse tipo de movimento é exatamente o que será necessário para fazer algo verdadeiramente transformador, ouso dizer, algo realmente revolucionário

VOZ DO PARA: Essencial todo dia!

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