Desde 2006, moratória proíbe a compra e exportação do grão cultivado em áreas do desmatamento. Multinacionais, como Cargill, usam intermediários para comprar “grão pirata” de fazendas embargadas por crimes ambientais
Se, por um lado, regras rígidas blindam a Amazônia contra o avanço da soja, por outro, imagens de satélite e documentos mostram uma realidade diferente: uma floresta que segue sendo destruída pela demanda global do grão – e com a participação de gigantes do agronegócio.
É o que revela uma investigação conjunta da Repórter Brasil, do Bureau of Investigative Journalism e do Unearthed, que descobriu que três multinacionais compraram soja de revendedoras que foram abastecidas por uma produtora rural multada em R$ 12 milhões por desmatar e incendiar a floresta amazônica. Trata-se da sojeira Alexandra Aparecida Perinoto, de Marcelândia, no norte do Mato Grosso, que vendeu para a chinesa Fiagril e para a russa Aliança Agrícola do Cerrado – duas intermediárias que, por sua vez, forneceram para as gigantes Cargill, Bunge e Cofco.
Incêndio em plantação de soja no Mato Grosso (Foto: Christian Braga/Greenpeace)
Usando imagens de satélite, registros de fiscalização e outras evidências, a investigação descobriu como a soja foi plantada ilegalmente por Perinoto em terras embargadas pelo Ibama por terem sido desmatadas – o que é proibido segundo a legislação ambiental. As descobertas expõem como a soja “pirata” – plantada de forma irregular e ligada ao desmatamento ilegal da Amazônia – pode entrar em cadeias de abastecimento internacionais supostamente “limpas”, apesar da existência da Moratória da Soja, mecanismo criado em 2006 para deter a destruição da floresta amazônica.
Assinada por todas as principais empresas do agronegócio, incluindo Fiagril, Aliança e os três gigantes internacionais (Cargill, Bunge e Cofco), a moratória proíbe a compra ou exportação do grão cultivado em áreas na Amazônia que foram desmatadas depois de julho de 2008. Estima-se que o acordo tenha evitado, em 10 anos, o desmatamento de cerca de 1,8 milhão de hectares – o equivalente a quase a extensão de Israel.
Contudo, nossa investigação revela brechas no sistema de monitoramento da moratória, que permite que as empresas continuem comprando soja de agricultores ligados ao desmatamento ilegal. Satélites detectaram uma série de grandes incêndios, ocorridos em junho do ano passado, em uma faixa de terra usada para plantação de soja e para a pecuária nas fazendas de Perinoto. Imagens mostram fumaça e chamas destruindo a vegetação.
Não foi a primeira vez. Além das queimadas, pelo menos 1.500 hectares de suas propriedades foram embargados em abril de 2019 pelo Ibama, após terem sido desmatados ilegalmente. Ao determinar um embargo, o Ibama proíbe que qualquer atividade econômica seja desenvolvida naquela área – uma forma de punir os desmatadores e possibilitar a recuperação da mata nativa.
Perinoto também foi alvo de outro embargo, desta vez do órgão ambiental estadual (Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso), aplicado em 2016. Somadas, as multas da sojeira totalizam R$ 12 milhões. Além disso, ela também é alvo de uma ação movida pelo Ministério Público por conta das infrações ambientais.
Usando a análise de satélite da plataforma de dados ambientais MapBiomas, a Repórter Brasil flagrou a soja sendo cultivada ilegalmente nesta porção de terra em 2018 e 2019, violando os embargos.
Além disso, Perinoto está em uma lista da moratória da soja que reúne fornecedores acusados de desmatamento ilegal, divulgada a empresas do setor para ajudar os comerciantes a evitar a compra da ‘soja pirata’. A relação é compilada anualmente por um grupo de trabalho formado por órgãos da indústria e pelo Greenpeace, que foi fundamental para estabelecer a moratória em 2006.
Apesar disso, o Bureau apurou que a soja produzida por Perinoto entrou nas cadeias de abastecimento de pelo menos duas grandes empresas: Fiagril e Aliança, que compraram quantidades significativas de Perinoto em 2019.
Imagem do satélite Copernicus Sentinel-2 captada em 30 de julho de 2020 mostra queimadas nas fazendas de Perinoto, em Marcelândia (MT)
No caso de Perinoto, suas gigantescas fazendas formam uma teia complexa de registros de terras, com áreas contíguas divididas em três propriedades separadas, que ficam a menos de 20km uma da outra. As fazendas estão registradas em nome de Alexandra Perinoto e de seus três filhos, com uma propriedade subdividida em mais de vinte “lotes”. Como nem todas as fazendas da sojeira estão embargadas, a soja é plantada em uma área “suja”, mas eventualmente pode ser vendida pela fazenda “limpa”. Um dos mecanismos usados por desmatadores para burlar a moratória, conhecido como “triangulação da soja”, ou “lavagem da soja”.
Investigação da Repórter Brasil mostra ainda que os nomes das propriedades da família Perinoto foram alterados, o que ajuda a ocultar a origem da soja e sua ligação com áreas de cultivo com danos ambientais.
Procurada por email e por telefone, Alexandra Perinoto se recusou a responder as perguntas. “Não tenho nada a declarar. O que você publicar vai ter que provar”, disse a fazendeira por telefone.
A Aliança não negou ter comprado o grão de Perinoto e afirmou que passa, regularmente, por auditoria independente. “Não há fatos ou decisões oficiais que mencionem, conectem ou de qualquer outra forma se refiram à Aliança em quaisquer violações ambientais”. A empresa disse ainda que lida com “incontáveis agricultores e produtores no Brasil” e que “negócios fora do controle da Aliança permanecem sob a responsabilidade exclusiva de um determinado agricultor/produtor”.
A Fiagril disse que “não adquiriu soja de áreas proibidas devido a danos ambientais”, mas não negou ter comprado da desmatadora. E acrescentou que “em fevereiro de 2021, após auditoria da safra 2019/20, a Fiagril recebeu declaração oficial assinada pela Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetal (Abiove) e Greenpeace atestando o cumprimento integral da moratória da soja”.
O Greenpeace disse, no entanto, que a afirmação da Fiagril é imprecisa, já que a auditoria da safra 2019/2020 foi “incompleta e inconclusiva” e solicitou mais informações aos comerciantes. “As conclusões desta investigação ligando a Fiagril à soja potencialmente ilegal são extremamente preocupantes e iremos garantir que sejam investigadas e que sejam tomadas as medidas adequadas”, afirmou a organização.
O Greenpeace reconheceu que o sistema de monitoramento da moratória “não é perfeito” e que está “pressionando por melhorias, incluindo maior transparência e escrutínio adequado de fornecedores indiretos e estratégias para evitar a triangulação da soja”.
Da floresta desmatada para o mundo
O consórcio investigativo analisou documentos de transporte e dados de comércio internacional e averiguou que a Fiagril e a Aliança exportaram pelo menos 2,5 milhões de toneladas de soja brasileira desde agosto de 2015.
Registros obtidos pelo Bureau mostram que a Bunge comprou soja da Fiagril, enquanto a Cargill e Cofco adquiriram da Aliança. As revendas para as três gigantes ocorreram após as duas empresas terem negociado o grão com Perinoto em 2019, segundo documentos obtidos pelo Bureau.
No caso da Bunge, documentos mostram que Perinoto vendeu soja de Marcelândia para as operações da Fiagril na cidade vizinha de Sinop, em abril e junho de 2019. A Fiagril também enviou o grão de Sinop para a Bunge na Espanha.
Sobrevoo revela clareiras abertas em meio à floresta, no Mato Grosso, para a plantação do grão (Foto: Paulo Pereira/Greenpeace)
Postagens nas redes sociais sugerem que a família Perinoto continuou a fornecer para Fiagril no ano passado, mesmo após ter tido uma área de uma de suas fazendas embargadas pelo Ibama por desmatamento ilegal.
A Fiagril foi comprada em 2016 pela empresa chinesa Hunan Dakang Pasture Farming e recebe apoio financeiro do governo chinês, com um empréstimo rotativo de US$ 300 milhões em três anos aprovado em 2019.
Já a Aliança é propriedade do conglomerado agroindustrial russo Sodrugestvo, que começou a atuar no Brasil há 12 anos e que tem como missão “gerar valor de forma sustentável na cadeia produtiva do agronegócio, sendo uma das melhores empresas do segmento.”
A Bunge informou que não compra soja da Aliança desde 2017 e que a Fiagril não fornecia soja de Marcelândia. “Como signatária da Moratória da Soja na Amazônia, as compras da Fiagril são auditadas por entidades independentes”, disse a empresa sobre uma de suas fornecedoras. Acesse aqui a íntegra dos outros lados (em inglês).
A Cargill disse que não comprou soja “diretamente” de Perinoto, mas mesmo assim afirmou que irá investigar Fiagril e Aliança do Cerrado. “Temos mantido firmemente a Moratória da Soja Brasileira na Amazônia desde 2006. Vamos investigar Fiagril e Aliança do Cerrado de acordo com nosso processo de reclamação da soja.”
Cofco afirmou que realiza auditorias internas mensais, “bem como auditorias externas anuais sobre o cumprimento da Moratória por parte dos fornecedores. A auditoria de 2019 confirmou que todos os nossos fornecedores cumpriram os requisitos da Moratória na temporada passada.
Lacunas da moratória
O sistema de monitoramento da moratória da soja possui brechas. Uma delas se refere ao fato de a moratória considerar somente a propriedade rural onde o desmatamento ocorreu, ignorando, por exemplo, fazendas vizinhas do mesmo proprietário.
Especialistas e ativistas dizem que esta situação deixa a porta aberta para a chamada “lavagem de soja” ou “triangulação” – quando um agricultor tem várias fazendas e tenta lavar soja “pirata” por meio de fazendas “limpas” – e onde colheitas de diferentes origens podem se misturar.
No ano passado, o bioma Pantanal perdeu mais de 20% da sua área por conta dos incêndios (Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace)
Ainda que a moratória proíba a compra de soja cultivada diretamente em terras desmatadas, as empresas são livres para continuar a negociar com os agricultores que foram pegos derrubando ilegalmente a floresta se o grão se originar de outras terras, que não tenham embargos ou sanções.
Sistemas complexos de registro de terras no estado de Mato Grosso facilitam a brecha, permitindo que agricultores dividam suas fazendas em várias propriedades. Um estudo de 2016, coordenado por Holly Gibbs e Lisa Rausch, da Universidade de Wisconsin, em 2016, mostrou que os produtores de Mato Grosso que cultivam soja em vários lotes frequentemente forneciam aos compradores a documentação de uma única propriedade, dificultando a rastreabilidade.
Gibbs enfatizou que a moratória foi uma “virada de jogo”, levando a níveis muito baixos de desmatamento para a plantação de soja, e que ela constatou na pesquisa que o uso desse tipo de brecha é raro. No entanto, a pesquisadora disse ao Bureau que a lacuna poderia ser mais significativa sob o governo de Bolsonaro. “Por isso há mensagens fortes de países consumidores e investidores sobre a importância da moratória são necessárias”, disse.
O presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove), André Nassar, afirmou ao Unearthed que cabe aos compradores decidirem se compram soja de um produtor que tem uma propriedade embargada, pois isso é uma decisão individual e que não está prevista na moratória. “A governança da moratória tem várias camadas para garantir que a soja de fazendas fora das conformidades não entrem na cadeia de abastecimento”, afirma.
Uma dessas medidas é comprar com base em cálculos da produtividade da fazenda para minimizar o risco de triangulação. No entanto, o coordenador de cadeias agropecuárias do Imaflora, Lisandro Inakake, explica que essa estratégia não garante que um produtor não esteja triangulando a soja. O mais seguro, segundo ele, seria adotar voluntariamente uma distância mínima de 200 quilômetros entre uma propriedade com embargo e uma propriedade limpa.
Izabella Teixeira, que foi ministra do meio ambiente do Brasil quando a Moratória da Soja foi prorrogada indefinidamente em 2016, disse que as descobertas mostram a necessidade de continuar adaptando e aprimorando o acordo. “É absolutamente possível produzir soja na Amazônia sem [ela] vir do desmatamento ilegal”, disse ela.
Por André Campos e Daniel Camargos, na Repórter Brasil
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