Brasil não é o mesmo de 20 anos atrás. Novas identidades emergiram, fascismo está à espreita e economia degringola. Ao invés de abrir novo ciclo de inclusão por consumo, será preciso apostar em políticas de bem-estar social urbano e na juventude
Desde que saiu da prisão política em que foi mantido por 580 dias, Lula levou adiante uma empreitada colossal, à altura das mais épicas jornadas de superação. Em novembro de 2019, quando o ex-presidente foi liberto, poucos diriam que seria possível trilhar o caminho que ele percorreu em três anos. Beneficiado por uma decisão do STF que permitia a réus responderem em liberdade até a última instância de julgamento, Lula saiu da prisão, mas estava com os direitos políticos cassados pela lei da Ficha Limpa. A quantidade de processos a que respondia indicava que seria difícil ele voltar a se candidatar. O PT estava isolado e carecia de renovação.
A sequência de fatos que veio em seguida fez jus a histórias como as de Getúlio Vargas e Nelson Mandela, líderes políticos cuja passagem pela prisão foi sucedida pela volta por cima, reconciliação com antigos adversários e grandeza nas decisões. Na esteira da Vaza Jato, investigação jornalística liderada pelo The Intercept BR que explicitou as relações indecorosas entre juízes e promotores na operação Lava Jato, Lula foi acumulando vitórias no STF. Primeiro, a anulação das sentenças dadas em Curitiba. Em seguida, a declaração de suspeição de Sergio Moro nos processos em que julgou o ex-presidente, o que devolveu a ele os direitos políticos. Por fim, Lula teve os bens desbloqueados pela Justiça.
No final de 2021, começou a circular a informação de que Geraldo Alckmin poderia compor a chapa do ex-presidente, como vice. A aliança de adversários históricos, embora promissora na perspectiva do enfrentamento ao bolsonarismo, parecia pouco factível. Afinal, os anos anteriores foram marcados pelo bate-cabeça do campo democrático. O sociólogo Celso Rocha de Barros, um entusiasta de primeira hora da chapa Lula – Alckmin, ponderou que “talvez nós, como país, não tenhamos mais o nível de inteligência coletiva, senso de responsabilidade e caráter necessários para fazer algo assim”. Pois a coisa avançou. Alckmin retirou sua pré-candidatura ao governo de São Paulo, migrou para o PSB e integrou a chapa presidencial.
Lula empreendeu um consistente movimento de aproximação de antigos adversários e ex-aliados. E foi costurando uma ampla frente de oposição ao bolsonarismo. Começou se encontrando com FHC e outros tucanos históricos. Restabeleceu pontes com líderes do PMDB que haviam votado pelo Impeachment de Dilma Rousseff. Fez encontros com movimentos sociais e novas lideranças da esquerda. Às vésperas da campanha eleitoral, Lula conseguiu atrair André Janones, do Avante, que abriu mão da candidatura presidencial e ajudou a turbinar a campanha petista nas redes. Em seguida, se reaproximou de Marina Silva, antiga aliada com quem estava rompido havia uma década. Vieram também Cristovam Buarque, Henrique Meirelles, os economistas do Plano Real e vários políticos de fora do espectro da esquerda.
Nunca antes na história desse país um candidato à reeleição havia perdido a disputa presidencial. Jair Bolsonaro perdeu. Por mais que o governo do extremista tenha sido destrutivo em todas as esferas, esse não era um resultado óbvio. Primeiro, porque os Bolsonaro são hábeis comunicadores, têm uma musculatura extraordinária nas redes sociais e sabem manter uma grande base engajada. Segundo, porque contavam com o apoio de diversas denominações evangélicas, que fizeram da reeleição do aliado uma verdadeira cruzada. Por fim, porque o governo federal protagonizou o maior esquema de derrame orçamentário com objetivos eleitorais de que se tem notícia, injetando bilhões no orçamento secreto, no Auxílio Brasil, em programas de apoio setorizados e na redução de preço dos combustíveis. A oposição vencer nesse contexto não foi um feito pequeno.
Veio ainda o desafio de aplacar a sanha golpista do presidente e seu séquito de lunáticos armados. A ampla coalizão que se montou em torno da candidatura de Lula foi chave para que o país evitasse o rumo do caos. O campo democrático brasileiro agiu à altura do momento político, diferentemente do que ocorrera em 2018. Se tudo correr como previsto, Lula tomará posse em 1º de janeiro de 2023 como presidente da República do Brasil pela terceira vez. E seu governo terá uma tarefa ainda mais árdua do que a que foi empreendida até aqui.
Nos últimos três anos, Lula e o PT fizeram bem aquilo que dominam: articulações, negociações, campanha. A partir do ano que vem, terão o desafio de reconstruir um país destroçado, dialogar com um Congresso cujo fisiologismo tradicional se radicalizou à direita e dar direção para um governo formado por uma coalizão heterodoxa. Tudo isso demandará, ainda, superar os limites da primeira versão do lulismo.
Quando Lula assumiu a Presidência da República, em 2003, o índice de Gini no Brasil estava em 0,583. O índice mede a diferença de ganhos entre pobres e ricos nas sociedades – varia de zero a 1 e, quanto mais baixo, menos desigual é o país. O valor obtido no Brasil indica se tratar de uma das sociedades mais desiguais do mundo. Nos anos 1950, o índice era um pouco menor. Durante a ditadura civil-militar, que acentuou a concentração de renda, ele subiu para a casa dos 0,6, e oscilou em torno desse patamar por três décadas. Foi no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) que o Gini começou a cair no país, ainda que de forma modesta.
Os governos petistas, aproveitando-se de um momento favorável no mercado internacional, foram capazes de produzir a maior queda histórica continuada do Gini no Brasil. Em 2015, o índice chegou a 0,514. Embora este ainda fosse um valor alto, a queda foi significativa, que indica expressiva redução de pobreza no período. No centro dela estiveram as políticas levadas a cabo pelo lulismo, como o Bolsa Família, o aumento real continuado do salário mínimo e o crescimento econômico impulsionado por aumento de investimentos públicos e expansão do crédito.
Além de reduzir a pobreza, essas políticas contribuíram para ativar o mercado interno, permitindo que uma população historicamente excluída acessasse itens básicos. As raízes da desigualdade brasileira geraram uma massa miserável incapaz de participar das atividades econômicas. As políticas do lulismo foram a primeira ocasião em que uma parte relevante dessa massa moveu-se uma casa adiante. E o movimento foi significativo. A classe E, composta pelos mais pobres, representava 28,1% da população brasileira em 2003, e caiu para 10,9% em 2012. As classes D e E juntas abarcavam 96,2 milhões de pessoas em 2003, e caíram para 63,5 milhões em 2011. Como resultado, a classe C cresceu de 65,8 milhões para 105,5 milhões de pessoas no período.[1]
Esse grande incremento da classe C criou o espaço para uma nova fase do lulismo. Nela, o governo enfrentou a crise econômica mundial de 2008 com medidas contracíclicas, com ênfase no estímulo às indústrias automobilística e da construção civil. Os estágios anteriores, que retiraram milhões de pessoas dos estratos mais baixos, foram cruciais para que fosse “possível apresentar aos capitalistas a perspectiva de vender carros e casas para uma classe C ampliada no Brasil”, como argumentou o cientista político André Singer. Da perspectiva da atividade econômica, o arranjo foi um sucesso. Quanto mais gente ascendia, mais aumentava a demanda pelo consumo, o que fazia crescer as vendas e a produção na indústria. Entre 2006 e 2010, o PIB do país cresceu, em média, 4,5% ao ano, a maior taxa sustentada em muitas décadas.
Tornou-se conhecida no Brasil – de forma distorcida por ideólogos de extrema direita – a formulação de hegemonia do filósofo Antonio Gramsci, que se utiliza de dois conceitos que remetem à tradição do pensamento marxista: infraestrutura e superestrutura. O primeiro diz respeito às bases econômicas e produtivas da sociedade; o segundo, às concepções de mundo que prevalecem. Para o pensador italiano, a hegemonia se estabelece pela capacidade que um bloco de poder tem de articular as condições materiais da sociedade com a cultura, a moral e as ideias que regem os modos de vida.
Pois bem, o lulismo não transformou apenas a infraestrutura da sociedade brasileira, mas também sua superestrutura. Até porque um aspecto alimenta o outro. O período de crescimento econômico com inclusão alterou as concepções de mundo da sociedade. Mais e mais pessoas migraram da pobreza extrema para estratos intermediários, e passaram a aspirar um futuro distinto para seus filhos. As privações absolutas foram deixando de ser o centro das preocupações. As novas gerações colocariam outras demandas na mesa, e elas seriam conformadas pelo mundo no qual essa juventude passava a viver. Um mundo que passava por uma mudança acelerada.
Em novembro de 1994, uma reportagem no Jornal do Brasil contabilizava 28 websites hospedados no país. Os que tinham acesso à rede para visualizar essas páginas eram uma parte ínfima da população. Pouco mais de uma década depois, em 2006, o Brasil tinha o segundo maior número de acessos ao YouTube em todo o mundo, cerca de 21 milhões de usuários ativos no MSN e uma das maiores comunidades do Orkut de que se tinha notícia. Em 2012, já havia 94 milhões de usuários de internet no país.
A primeira década do século XXI foi de entusiasmo com as possibilidades abertas pelas tecnologias da informação e comunicação. Emergia a cultura de blogs; em seguida viria a das redes sociais. O modelo de broadcasting, da mídia tradicional, começava a ser desafiado pela comunicação em rede. Ao invés de um canal difusor e uma plateia passiva, um emaranhado de atores que são emissores, distribuidores e receptores das mensagens. Discursos contra-hegemônicos dos mais diversos ganharam espaço na sociedade. Cada vez mais grupos passaram a se organizar pela Internet. Junto a isso, vieram as políticas de educação e cultura do lulismo.
Quando Fernando Haddad chegou à secretaria executiva do Ministério da Educação, em 2004, apresentou ao ministro Tarso Genro a proposta de incluir 400 mil alunos no ensino superior sem custos para o governo. As universidades privadas não cumpriam uma regra, estabelecida na Constituição de 1988, que as obrigava a oferecer bolsas em troca das isenções de que desfrutavam. A proposta de Haddad era fazer cumprir a lei e regulamentar a concessão das bolsas, com foco na inclusão de estudantes de baixa renda. Assim nasceu o ProUni, programa que produziu um salto no acesso à educação. Em cinco anos, de 2005 a 2010, o programa atendeu 750 mil bolsistas.. Quase metade das bolsas foi ofertada para pessoas pardas ou negras. A inclusão seria impulsionada, ainda, pela ampliação do Fies, programa de crédito para a educação.
Junto à ampliação do acesso à educação privada, o governo passou a expandir as universidades federais, pelo programa Reuni. Foram criados novos campi em regiões desassistidas, e universidades já estabelecidas abriram cursos noturnos, atendendo a alunos de renda mais baixa. O país saltou de 45 universidades federais em 2003 para 59 em 2010, e dobrou o número de vagas no período. Tudo isso levou ao crescimento significativo do acesso à graduação. Em 2003, ocorreram no país pouco menos de 4 milhões de matrículas no ensino superior. Dez anos depois, esse número já ultrapassava 7 milhões. O setor privado aumentou percentualmente sua participação, passando de cerca de 70% das vagas, em 2003, para quase 75%, em 2013.[2]
Com isso, a desigualdade sociorracial na educação caiu. Em 2003, a taxa de escolaridade de pessoas brancas era quatro vezes maior que a de pessoas negras; em 2009, essa relação caiu para 2,6 vezes.[3] Tudo isso dava consequência às aspirações de mudança que a inclusão econômica fomentava. Famílias de origem pobre que chegavam à classe C passavam a ver seus filhos ingressarem nas faculdades. Ainda que houvesse ressalvas sobre a qualidade das faculdades privadas, a promessa de ascensão do lulismo parecia se concretizar.
De forma complementar, veio a democratização do acesso à cultura. Em seu discurso de posse como ministro, em 2003, Gilberto Gil apontou o desafio de “tirar o Ministério da Cultura da distância em que ele se encontra do dia a dia dos brasileiros” e fazer com que ele estivesse “presente em todos os recantos de nosso país”. Até aquele momento, as políticas culturais estavam bastante restritas ao financiamento pela Lei Rouanet e eram acessadas principalmente por setores da elite e da classe média. Assim que assumiu o ministério, Gil convidou o sociólogo Juca Ferreira para comandar a Secretaria Executiva da pasta. Não há exagero em dizer que a dupla liderou uma revolução nas políticas culturais no Brasil.
Uma das ações mais expressivas foi a dos Pontos de Cultura, inserida dentro do programa Cultura Viva. A política apoiava grupos atuantes nos territórios, de forma distribuída e partindo de uma concepção ampla de cultura. Em 2004, quando a proposta foi concebida, foi firmado convênio com 72 grupos. Em 2010, já eram mais de 2.500 Pontos de Cultura espalhados pelo país, com projetos dos mais diversos. Eles recebiam um recurso mensal do governo para realizarem suas atividades, tinham apoio para compra de equipamentos e participavam de redes de intercâmbio.
O período assistiu ao surgimento de políticas de fomento em diversas áreas. Abrigadas no Ministério da Cultura, em suas autarquias, ou ainda em governos estaduais ou prefeituras, essas políticas ampliaram em muito o acesso à produção e consumo de cultura. Muitas delas atendiam a projetos pequenos ou fora dos principais eixos, permitindo que segmentos historicamente excluídos passassem a acessar recursos. Tudo isso significou uma quantidade expressiva de agentes aprovando projetos, realizando espetáculos, exposições, seminários, festivais, publicações, encontros. Difícil mensurar o quanto essa pujança cultural reverberou no tecido social, transformando visões de mundo e fomentando perspectivas alternativas.
Aqueles anos assistiram também ao aumento significativo da mobilidade internacional. Graças à estabilização econômica, a taxas de câmbio favoráveis e à ampliação de programas de intercâmbio, cada vez mais gente passou a viajar para fora do país. O programa Ciências sem Fronteiras, iniciado em 2011, ampliou essa mobilidade para a graduação. Quando aportavam em países com histórico de estado de bem-estar social, os jovens brasileiros viviam um choque de mundos. Habituados a uma sociedade marcada pela alta desigualdade e pelo déficit de cidadania, por cidades segregadas, entregues ao trânsito motorizado e com espaços públicos abandonados, passavam a vivenciar outras formas de vida: sociedades mais igualitárias, com serviços públicos de qualidade, com uso intenso e razoavelmente democrático dos espaços públicos, com sistemas de transporte público efetivos. Essas experiências eram compartilhadas com os colegas – mesmo os que não viajavam, bebiam de alguma maneira das referências.
O impacto desse conjunto de mudanças não é trivial. De repente, havia no país uma geração que crescera em ambiente democrático, que se informava e construía conexões pela internet, que tinha acesso à produção e ao consumo de cultura, que ampliava sua presença no ensino superior, que se conectava com experiências de vida de outros países, que assistia à redução da pobreza e à elevação das expectativas. Uma geração empoderada, com maior potencial crítico e imaginativo, e atravessada por um desejo aspiracional de mudança e pela promessa de ascensão social.
Em pouco tempo essa nova geração entraria em choque com o modelo de desenvolvimento hegemônico no Brasil. E perceberia que ele tinha teto baixo. Durante o primeiro governo presidido por Dilma Rousseff, as limitações começaram a ficar nítidas. O lulismo fizera a sociedade brasileira subir alguns degraus, em uma escala inédita na história do país. Mas em seguida a subida estancou, como se um alçapão se fechasse sobre a cabeça dos que ascendiam. E a vida nos degraus intermediários não se mostrava à altura das expectativas.
A redistribuição de renda durante os governos petistas ocorreu sem que o andar de cima fosse afetado. Isso só foi possível devido ao crescimento econômico do período – ainda assim, o processo teve seus perdedores. Como mostra o economista Marc Morgan, a metade mais pobre da população brasileira aumentou sua participação na renda total de 11% para 12% entre 2001 e 2015, enquanto os 10% mais ricos subiram de 54% para 55% – dentro dessa faixa, o 1% mais rico viu sua parcela da renda crescer de 25% para 28%. Já o meio da pirâmide, onde está 40% da população, viu sua participação na renda decair de 34% para 32%. Em uma estrutura econômica desigual como a brasileira, esse miolo que perdeu renda é, comparativamente a outros países, pobre.
Essa foi a primeira contradição do lulismo: ao mesmo tempo em que uma ampla parcela da população migrava para estratos intermediários, estes eram estrangulados por um modelo de inclusão sem luta de classes. Para que, ao mesmo tempo, os mais ricos e os mais pobres ampliassem seus ganhos, alguém teria que perder. Paradoxalmente, os que chegavam a esse “miolo espremido” eram justamente os beneficiados pelas políticas de inclusão social. Enquanto o crescimento econômico se manteve, a perda percentual dos setores intermediários não incomodou. Quando a economia desacelerou, o aperto apareceu.
E esse lugar apertado não era exatamente confortável. A forma de vida da elite brasileira nunca foi desenhada para que todos coubessem nela. Como argumentei no artigo Vivendas do Alvorada, faixas relevantes dos estratos mais altos do país optaram, desde muito, por soluções privatistas cuja universalização significaria a nulidade de seus objetivos, ou até mesmo efeitos contrários aos desejados. Trata-se de um modelo de sociedade que não é baseado na ideia de direitos, mas de privilégios – em que a boa vida dos mais ricos não é democratizável. Isso é estruturado pela organização territorial e pelas formas de deslocamento.
A forma de vida privatista que se intensificou no Brasil desde a ditadura teve como engrenagem central o veículo particular. Sem automóveis, as classes altas não poderiam morar em condomínios, frequentar shoppings, viver uma vida apartada e sem contato com os espaços públicos. O modelo nunca mirou um alcance universal. Não se tratou – como se poderia argumentar ter sido o caso em algumas cidades norte-americanas – de adaptar as cidades para a vida suburbana e rodoviária, mas de produzir um tipo de organização em que coexistem duas formas de vida, com separações e interseções bem definidas: de um lado, as elites e a vida privatista dos condomínios, shoppings, clubes e serviços particulares, articulada em torno do carro; de outro, a maioria pobre que frequenta os espaços e serviços públicos deixados em segundo plano, e que faz uso dos transportes públicos e da mobilidade ativa.
Esse modelo não foi inventado pelo lulismo. Remete à arraigada segregação nacional, levada às alturas ao final da ditadura. Mas o período de crescimento dos governos petistas deu a ele uma aceleração inédita, a partir da premissa de que não se tratava de formas de vida opostas, mas de etapas de ascensão social. Nessa perspectiva, aqueles que foram historicamente relegados à forma de vida dos pobres passaram a ter a oportunidade de ascender para a dos ricos – o que se dava a partir da migração para os serviços privados. Frente ao transporte coletivo de péssima qualidade, compravam-se carros e motocicletas a prestações; frente à morosidade no avanço da educação pública, optava-se pela escola particular; as dificuldades com o SUS incentivavam a contratação de planos de saúde; a carência de espaços públicos de recreação e lazer induziam ao uso de opções privadas.
Eis a segunda contradição do lulismo: a ascensão social não era acompanhada de políticas de bem-estar social urbanas. A superação das privações básicas elevava as pessoas de patamar, mas o pacote de serviços privados que era necessário contratar dificilmente cabia no bolso dos que ascendiam. Esses gastos pesavam sobremaneira para os que chegavam à classe C, que alguns chamavam de “nova classe média”. O resultado foi o alto endividamento das famílias e a frustração progressiva das expectativas. Além disso, a massificação de soluções exclusivistas gera impactos sobre todo o tecido social. O espraiamento das cidades pelos novos condomínios tornava as distâncias mais longas. A proliferação de automóveis aumentava a degradação dos centros e a poluição, e impactava o transporte coletivo. A vida cotidiana nas cidades não entregava a melhora prometida.
Se o patamar em que estava a classe C era incômodo, o próximo degrau foi se tornando alto demais. Embora tenha havido migração para as classes A e B, ela não chegou a 25% do total de pessoas que ingressaram na C entre 2003 e 2011. Isso criou um conflito para milhões de jovens que passaram a acessar o ensino superior. Com o diploma em mãos, a maior parte deles não encontrava emprego à altura das expectativas. Como resume o economista Márcio Pochmann, que presidiu o Ipea no segundo governo Lula, 94% das vagas de emprego formal criadas entre 2004 e 2010 foram de até 1,5 salário mínimo. Boa parte delas estava no setor de serviços, na área de telemarketing e outras atividades marcadas pela precarização.
Desde a abertura comercial iniciada no governo Collor, o Brasil passou por uma forte desindustrialização. A participação da indústria de transformação no PIB caiu de cerca de 25% no início dos anos 1990 para aproximadamente 12% em 2013. A queda fez diminuir os empregos de maior produtividade e remuneração. Um olhar atento para esse processo, no entanto, permite notar que a desindustrialização foi seletiva, o que fica evidente no caso do setor automotivo. Desde o Regime Automotivo promulgado por FHC, em 1995, as políticas industriais beneficiaram apenas um elo da cadeia – o das montadoras. Estas foram favorecidas por políticas protecionistas e subsídios diversos. No entanto, as montadoras respondem por cerca de 5% dos empregos da cadeia automotiva. O setor de autopeças, mais intensivo em mão de obra, foi deixado ao relento e passou a ser substituído por importações.
No segundo governo Lula, foi iniciado aquele que seria o maior boom automotivo da história do Brasil. Entre 20067 e 2012, o licenciamento de veículos novos saltou de 1,9 milhão de unidades anuais para mais de 3,8 milhões. Esse crescimento foi impulsionado pelas desonerações de IPI às montadoras, que alcançaram 10,5 bilhões de reais entre 2009 e 2013. Isso sem contar os benefícios dados pelos estados, a partir da chamada “guerra fiscal”. O período foi de alta lucratividade para as montadoras, que em 2008 enviaram o maior volume de recursos a suas matrizes na série histórica. Entre 2005 e 2013, essas remessas superaram em quase 20 bilhões de dólares os investimentos realizados no Brasil. Estudos apontam que a margem de lucro praticada no Brasil era, em média, três vezes maior que aquela que as empresas possuíam em outros países.[4]
Em resumo, um dos principais motores do desenvolvimento na segunda fase do lulismo tinha pés de barro. As volumosas desonerações oferecidas às montadoras minavam recursos que poderiam ser investidos nos serviços públicos. Elas propiciaram aumento das vendas, da lucratividade e das remessas às matrizes, mas não dos empregos – estes se mantiveram relativamente estáveis entre 1990 e 2010. De outro lado, o crescimento das frotas produziu degradação na vida urbana e afetou o transporte público. Com as ruas congestionadas, o tempo de deslocamento nos ônibus foi às alturas. Isso aumentou os custos, pressionando as tarifas para cima. A ausência de políticas para o transporte público ativou a bomba-relógio que explodiria em seguida.
Poucos entenderam quando eclodiram as manifestações de 2013, mas os elementos que estavam por trás delas eram reais e palpáveis. Os jovens recém-ingressos na classe C, que haviam ampliado suas aspirações pelas políticas de inclusão do lulismo, começavam a enxergar o teto baixo, o patamar incômodo e a porta de saída apertada. Os governos petistas tinham contribuído para que o filho do pedreiro e da empregada doméstica chegassem à universidade, mas não apresentavam políticas para que eles pudessem viver com qualidade no novo patamar, quanto menos almejar a continuidade da ascensão.
O lulismo foi marcado pela acomodação de tendências conflitantes. Junto à elevação do patamar da sociedade e à transformação dos valores da juventude, ocorreu o incremento do conservadorismo popular, conectado à disseminação das igrejas evangélicas. A partir de certo momento, uma tendência passou a alimentar a outra, por oposição. Uma nova geração saía do armário e assumia as relações homossexuais na esfera pública – coisa que, até o final do século XX, era bastante restrita no país. Mulheres passavam a enfrentar cada vez mais o sistema de opressão patriarcal. Esse novo universo de valores tornou-se rapidamente alvo do campo conservador, num tipo de reação que a escritora norte-americana Susan Faludi chamou de backlash.
A população evangélica no Brasil vem crescendo de forma continuada há algumas décadas. O catolicismo popular, que foi muito presente durante a ditadura militar e a redemocratização, foi perdendo lugar para a teologia neopentecostal. Diversos pesquisadores têm se debruçado sobre as razões e características desse processo. Aqui, vale destacar um ponto: como a manutenção da precariedade das periferias urbanas cria lacunas que são preenchidas pelas igrejas. A igreja católica ocupava esse vácuo pelo viés da solidariedade, por meio das comunidades eclesiais de base e das pastorais. Com a progressiva redução da presença da igreja católica nas periferias, as denominações evangélicas têm ocupado o espaço com outros valores.
Eis aí outro descompasso do lulismo. Nos anos 1990, os governos municipais petistas foram exemplares na produção de políticas públicas que visavam à melhoria das periferias das cidades. Os orçamentos participativos, que ficaram mundialmente conhecidos e foram implementados em diversas cidades, fortaleciam a cidadania e remediaram, ainda que de forma parcial, a precariedade dos bairros. A chegada do PT ao governo federal não foi acompanhada de uma política consistente para os graves problemas das cidades. As políticas urbanas concebidas na primeira gestão do Ministério das Cidades não foram priorizadas pelo governo. A partir do final do primeiro governo Lula, a pasta foi entregue a um partido reacionário e as políticas ficaram à mercê das empreiteiras.
A disseminação das igrejas evangélicas foi acompanhada do crescimento da “bancada da bíblia”. Pensadas como projetos de poder, algumas denominações criaram braços na mídia e na política. A eleição de parlamentares fundamentalistas foi crescendo ano a ano. E os conflitos com a outra vertente de mudança social não tardaram a emergir. Poucos se lembram, mas um dos personagens mais atacados nas ruas de junho de 2013 foi o deputado Marco Feliciano, que havia alguns meses ocupara a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e encampara um projeto de lei que previa a “cura gay”. O embate entre a bancada da bíblia e uma juventude progressista nos costumes pautaria a política nacional no período seguinte.
Outras tendências conservadoras foram abrigadas sob o guarda-chuva do lulismo. Uma delas foi a normalização daquilo que o filósofo Marcos Nobre chamou de pemedebismo – o arranjo em que um grupo fisiológico e conservador está permanentemente no poder, seja qual for a matiz do governo, e opera por um sistema de travas nos bastidores. Na década de 1990, o modelo tinha oposição do PT, que denunciava esquemas de corrupção e reivindicava a ética na política. Com a adesão do governo Lula ao pemedebismo, o sistema ficou sem polo opositor. A blindagem do sistema político e a reprodução de seus vícios oligárquicos levou à fúria anticorrupção que acabou desembocando na Operação Lava Jato.
O período lulista assistiu também a um salto de relevância do agronegócio no país. A desindustrialização no Sudeste foi acompanhada do crescimento da produção de commodities, e da consolidação de um setor agrícola forte no Centro-Oeste. Retornando ao debate marxista, o crescimento do agro não produziu apenas uma mudança na base econômica, mas na superestrutura – fortaleceu um conjunto de valores e concepções de mundo diametralmente opostos àqueles que brotavam nos centros urbanos. De um lado, maquinário agrícola, agrotóxicos, desmatamento, automóveis enormes, sertanejo, valores conservadores; de outro, proteção ambiental, vida urbana cosmopolita, feminismo, direitos LGBTQIA+, descriminalização das drogas etc.
Por fim, a elite econômica que encheu os bolsos durante os governos petistas passou a se incomodar com as mudanças sociais. Seus espaços privilegiados passaram a ser invadidos por gente pobre. Reclamava-se que aeroportos estavam parecendo rodoviárias e que uma estação de metrô em Higienópolis iria atrair “gente diferenciada”. Quando alguns jovens, em sua maior parte negros, passaram a fazer passeios em grupo pelos shoppings centers das cidades, foi um escândalo. A elite ficou perplexa com a petulância daqueles que ousavam sair do lugar estabelecido na ordem vigente e alterar a experiência de suas áreas vips. Os rolezinhos explicitaram que o buraco da inclusão era mais embaixo. As portas dos shoppings se fecharam, deixando claro que a forma de vida privatista brasileira não era para todos.
As clivagens eleitorais de 2022 permitem apontar algumas pistas sobre os desafios do próximo governo. A segmentação por classe, gênero, raça, religiosidade, faixa etária e território ilumina as resultantes das tendências que se chocaram no Brasil desde o início da década passada. À parte a grande rejeição de Bolsonaro entre mulheres, fruto da postura misógina, agressiva e violenta do candidato derrotado, as demais clivagens dizem respeito a questões relacionadas ao Brasil que se transformou a partir dos governos petistas.
Na base da pirâmide, Lula ganhou a eleição de goleada… Nos estratos de renda intermediários, entretanto, Bolsonaro pontuou melhor. Inclui-se neles a baixa classe média que elevou de patamar nos anos petistas.. A categoria “classes ingratas”, usada no debate internacional para a classe média-baixa que abraçou a extrema direita, pouco ajuda nesse caso. Interessa mais entender quais são as aspirações desses segmentos e como abordá-las por uma perspectiva progressista, como tem defendido a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado.
As principais promessas da campanha de Lula em 2022 foram voltadas para a base da pirâmide. Tirar o país novamente do mapa da fome, aumentar o emprego, a renda e o acesso à saúde. Essas políticas são fundamentais, mas não é possível repetir a fórmula de vinte anos atrás. Dificilmente haverá um cenário econômico favorável para uma nova etapa de inclusão sem luta de classes. Será necessário tirar dos mais ricos para elevar o patamar dos mais pobres. Uma reforma tributária que corrija a injusta tributação brasileira talvez seja o primeiro passo. Para fazê-la, o novo governo terá que encarar a insatisfação das camadasprivilegiadas, que perderão renda. Se não a fizer, corre o risco de não entregar as melhorias que promete aos mais pobres.
Ainda que seja bem-sucedido em produzir um novo ciclo de inclusão, o governo precisará se dedicar ao passo seguinte. O conjunto de políticas que poderia estruturar um estado de bem-estar social urbano não teve destaque na campanha, embora esteja presente em formulações de setores do PT. Se o próximo ciclo lulista reduzir a pobreza e gerar uma nova migração massiva para estratos intermediários, como será a vida desses que subirem um degrau? Como criar um modelo de ascensão que caiba no orçamento desses setores, estruturado em torno da ideia de direitos, da vida urbana compartilhada e do amplo acesso a serviços públicos?
Outro público em que Lula se destacou na última eleição foi o dos jovens. Na maior parte das pesquisas, ele venceu com boa margem entre aqueles com menos de 24 anos. Esse segmento foi também aquele em que Ciro Gomes pontuou melhor.. Há uma parcela significativa da juventude do país com valores progressistas , e que aposta mais uma vez no PT como alternativa eleitoral. As aspirações dessa juventude foram expressas nas manifestações de 2013 – educação e saúde “padrão FIFA”, transporte público com tarifa baixa e qualidade alta, enfrentamento à corrupção, democratização do Estado –, na primavera feminista e nas ocupações estudantis da última década.
Do outro lado, Bolsonaro teve sua maior força entre o eleitorado evangélico e nos estados do Sul e do Centro-Oeste. O extremista congregou em sua candidatura os eleitores que estão na base das chamadas bancadas do boi, da bala e da bíblia. Durante os governos Lula e Dilma, esses grupos foram acomodados, de uma forma ou de outra, na ampla coalizão governista. Os representantes do agro lideraram o Ministério da Agricultura e produziram políticas favoráveis a seus negócios. Partidos e redes de televisão de grupos neopentecostais foram importantes aliados do governo. Com o fim do ciclo lulista, os setores conservadores não pestanejaram antes de aderirem à direita radical e autoritária.
A acomodação de tendências tão conflitantes parece não ser uma opção no próximo ciclo. O país está em uma nova polarização, e o bolsonarismo fará uma oposição estridente, visando voltar ao poder em 2026. Claro que o próximo governo precisará de um armistício com lideranças evangélicas, representantes do agro e da elite econômica, mas é preciso olhar para isso como uma etapa provisória de um projeto de longo prazo. Um projeto que vise a uma transformação maior da sociedade e que priorize valores progressistas. Isso demandará estruturar políticas que melhorem efetivamente a vida dos setores intermediários dos centros urbanos e criem aspirações coletivas de futuro conectadas a esse público.
O bolsonarismo não é somente um fenômeno ligado ao ressentimento, mas também ao desejo. Esse projeto reacionário foi capaz de dar coesão às tendências conservadoras, apontando para um futuro. Um futuro ilusório e inviável, mas é o que hoje está sobre a mesa. Enfraquecê-lo demandará produzir perspectivas de futuro reais que vão além do retorno aos anos de ouro do primeiro lulismo. Isso só pode se dar por um processo incremental de mudança social, em que as tendências progressistas são fortalecidas a partir de escolhas políticas. O desafio é enorme e parece difícil de ser executado. Mas quem olhava para o Lula que saía da prisão naquele novembro de 2019 dificilmente imaginaria que ele venceria a corrida de obstáculos necessária para assumir a Presidência três anos depois.
Originalmente na Piauí
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