Três casos expõem dilemas do trabalho de crianças e adolescentes em plataformas. Por trás da fama prometida, há superexposição, esgotamento e danos psicológicos. É hora de o Youtube — que lucra com as violações — ser responsabilizado
Um estudo realizado pela empresa Harris Poll, a pedido da fábrica de brinquedos Lego, entrevistou, no ano de 2019, 3 mil crianças norte-americanas e britânicas a respeito da profissão que desejavam seguir, sendo que três a cada dez responderam youtubers ou vlogueiras, seguidas pelas profissões de professor, atleta e músico – ficando por último a de astronauta. O número de crianças que escolheram a profissão de youtubers ou vlogueiras é bem expressivo considerando o universo amostral e, sem dúvida, decorre do crescimento latente das plataformas digitais, mais especificamente o Youtube.
O Youtube, registrado em 2005 por Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, foi criado com a finalidade de partilhar vídeos. Em menos de um ano, a plataforma alcançou um número de oito milhões de visualizações por dia, de modo que, no ano de 2006, despertou o interesse da Google, tendo sido comprada por esta empresa pelo valor de $1.65 bilhões.
A plataforma chegou ao Brasil em junho de 2007 e, atualmente, está presente em oitenta e oito países, disponível em setenta e seis idiomas. Considerado um site de cultura coparticipativa, o Youtube promove uma interação entre o produtor de conteúdo, mais conhecido como youtuber, e o espectador, que detém o poder de influir no conteúdo disponibilizado.
A profissão de youtuber tem atraído um número cada vez maior de pessoas interessadas nas promessas advindas desta atividade, como a possibilidade de se expressar publicamente, definir seus próprios horários e ter fama e riqueza, sem sair de casa. O impacto do Youtube não se limitou ao surgimento de uma nova classe profissional – os youtubers – mas atraiu também crianças e adolescentes. A participação e protagonismo deste público infantil na plataforma se tornou um verdadeiro fenômeno social.
Com intuito de problematizar a participação de crianças e adolescentes na plataforma, apresentam-se três casos emblemáticos. O primeiro deles, de Isabel, foi escolhido para a análise por ter sido o primeiro a ganhar destaque na mídia por denúncias de trabalho infantil; o de Valentina, para demonstrar a inserção precoce de crianças de tenra idade nas plataformas digitais; e o dos irmãos Maria Clara e João Pedro pela quantidade de material produzido para o Youtube, pois que estão no topo de visualizações há mais de três anos.
Isabel Peres Magdalena, produtora de conteúdo no canal “Bel”, começou a gravar vídeos quando tinha apenas cinco anos no canal de sua mãe “Penteados para Meninas” e, com o sucesso, passou a ter seu próprio canal. Toda a família da youtuber Isabel se dedica à publicação de vídeos, de modo que o Youtube gera o sustento familiar. Atualmente, o canal “Bel” conta com mais de 7,5 milhão de inscritos, ocupando o 117º lugar no ranking de canais brasileiros, segundo a plataforma Social Blade.
No ano de 2020, a hashtag “Salvem Bel para Meninas” esteve em alta nas mídias sociais, quando internautas, celebridades e influenciadores se indignaram com o evidente constrangimento de Bel ao gravar vídeos para a plataforma. Apesar do caso de Isabel ter sido o primeiro canal a ganhar destaque na mídia por denúncia de trabalho infantil, ele não é o único a evidenciar a exploração de crianças e adolescentes no Youtube.
No mesmo contexto se insere a história de Valentina Pontes, que começou a participar de vídeos quando tinha apenas dois anos. Seus pais notaram o “talento” da pequena com as câmeras e começaram a gravar brincadeiras em família para o canal. A partir da primeira aparição de Valentina, em menos de dois meses, o canal atingiu um milhão de inscritos. Atualmente, a youtuber tem nove anos e o canal intitulado “Erlania e Valentina Pontes”, com participação da mãe, conta com 22,4 milhões de inscritos. Os pais contam que em quase oito anos de canal, a família de Valentina comprou carro e casa própria, além de arcar com as despesas essenciais.
Por fim, Maria Clara e João Pedro são dois irmãos que, com seu canal “Maria Clara & JP”, ocupam o primeiro lugar no Youtube brasileiro há três anos seguidos. Os irmãos possuem 30,6 milhões de inscritos no Youtube, conforme estimativa da Social Blade referente ao mês de janeiro de 2022, e iniciaram a publicação de vídeos no Youtube Kids em 2015, quando a mãe das crianças percebeu que Maria Clara, de quatro anos na época, era muito desinibida em frente às câmeras. Rapidamente, João Pedro também se interessou em participar do canal. Em menos de três anos, os youtubers se tornaram um fenômeno na rede.
No canal “Maria Clara & JP” os irmãos compartilham suas rotinas, brincadeiras, histórias e músicas autorais. Eles publicam uma média de oito a nove vídeos por mês, com duração aproximada de dez minutos, que chegam a atingir 150 milhões de visualizações. Esta grande quantidade de publicações evidencia que os youtubers se dedicam semanal, e mesmo diariamente, à publicação de conteúdo a ser publicado no Youtube.
Apesar da grande repercussão social dessa atividade, não há dispositivos, na legislação brasileira, direcionados à proteção da criança e do adolescente no trabalho como youtubers. Segundo decisão do STF na ADI 5326, cabe aos Juízos da Vara da Infância e da Adolescência estabelecer os limites para que a autorização para o trabalho infantil artístico seja concedida, embora ainda haja grande controvérsia sobre qual o juízo competente para essa autorização. Contudo, na atividade dos youtubers, diante da facilidade na inserção de conteúdos na plataforma e, ainda, pela dificuldade de fiscalização do exercício deste trabalho artístico, uma vez que as atividades se realizam nos domicílios dos trabalhadores e não dentro de empresas, o trabalho artístico de crianças e adolescentes, na prática, não passa pelo crivo do Poder Público.
Os riscos da atividade de youtubers para as crianças e adolescentes estão relacionados à problemas na interação familiar e social, baixo desempenho na escola, cansaço, cobrança excessiva e menos tempo para a vivência de um lazer em ambiente não competitivo. Por trás do glamour, há uma série de renúncias que potencialmente podem gerar danos físicos, psicológicos e emocionais a estes trabalhadores infantis.
Além disso, essas crianças e adolescentes podem sofrer superexploração, uma vez que a publicação de suas vidas é uma forma de diversão para outras milhares de pessoas. Por isso, a importância de promover a reflexão a respeito da atividade dos youtubers mirins ser considerada trabalho para todos os fins de direito e, portanto, demandar regulamentação. Para tanto, a responsabilização do Youtube pelo trabalho dessas crianças e adolescentes é medida que se impõe. Afinal, é a plataforma que define as regras da atividade, os critérios para que haja rentabilidade, a frequência e periodicidade dos vídeos, o número de inscritos, o conteúdo potencialmente lucrativo e aqueles contrários à “política” da plataforma.
Torna-se fundamental analisar a responsabilidade do Youtube, inclusive sua posição de titular da atividade que se aproveita do trabalho infantil, e mesmo uma plausível condição de empregador, com vistas a assegurar o pleno desenvolvimento e melhor interesse das crianças e adolescentes que se dedicam à atividade, como está previsto na nossa Carta Constitucional e na Convenção da ONU sobre os direitos das crianças e adolescentes, e Convenções 138 e 182 da OIT, todas ratificadas pelo Brasil. Arcabouço jurídico no qual se inclui o direito ao não trabalho das crianças e adolescentes.
Diante disso, sensato perceber que as crianças e adolescentes que hoje trabalham produzindo vídeos estão, literalmente, entrando pelo tubo (Youtube) no canal do trabalho infantil. Apesar de parecer lucrativo e vantajoso, como são pessoas em desenvolvimento, estas crianças e adolescentes poderão sofrer consequências nefastas por realizar trabalho precoce, com potencial de gerar danos psicológicos que podem perdurar para o resto de suas vidas, razão pela qual esta espécie de trabalho infantil demanda tutela do Estado e atenção da Academia.
Por Agnes Luiza Soares Gonçalves e Ana Carolina Paes Leme
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