Facção conta a própria história em nova série. Sem “especialistas”, série de Joel Zito Araújo escuta pessoas cujas vidas são afetadas diretamente pela organização
Contando cronologicamente a história do Primeiro Comando da Capital (PCC) do seu início em 1993 até os dias atuais, a série PCC: Poder Secreto estreiou nesta quinta-feira (26) na HBOmax e promete trazer uma perspectiva inédita a respeito da maior facção do país.
A série, produzida ao longo de três anos, foi filmada dentro e fora de presídios no Brasil e no Paraguai – Divulgação
Filmada no Brasil e no Paraguai, a originalidade da série documental de quatro episódios de 45 minutos está no fato de não ter entrevistas com pesquisadores do tema. “O que apresentamos ao público é a visão do próprio PCC sobre a sua história”, resume o cineasta Joel Zito Araújo.
Além dos integrantes da facção, a série priorizou escutar pessoas que, mesmo não sendo do PCC, têm suas vidas atravessadas por sua atuação. Entre elas, moradoras das periferias, sobreviventes do sistema prisional e agentes do Estado que trabalham no chamado “combate à criminalidade”.
Baseada no livro Irmãos: Uma História do PCC, feito a partir de duas décadas de pesquisa etnográfica do sociólogo Gabriel Feltran, a série conta com investigação de Daniel Hirata, William Neves e Thais Nunes. Entre grupos e artistas que compõem a trilha sonora, estão Racionais MC’s, 509-E, Evandro Babá e MC Orelha.
Com coprodução da Warner Bros, Discovery, Boutique Filmes e Max Original, PCC: Poder Secreto foi produzida por Gustavo Mello e Adriana Gaspar, com roteiro de Guilherme César e Diogo Leite da Silva e roteiro de edição de Lia Kulakauskas.
O que o público pode esperar da série, a tentativa – impedida pela Justiça – de entrevistar um dos seus integrantes mais conhecidos, Marcola, e as novidades sobre o atual funcionamento do PCC são alguns dos temas da conversa do site Brasil de Fato com o diretor da série.
Joel Zito Araújo – que dirigiu também O Pai da Rita, ficção com Ailton Graça que está agora nos cinemas – tem um extenso trabalho audiovisual abordando questões como racismo, desigualdades sociais e história do Brasil. Entre seus filmes, estão A Negação do Brasil (2000), Meu Amigo Fela (2019), As Filhas do Vento (2004) e Raça (2012).
Nascido na cidade mineira de Nanuque em 1954, Joel Zito de Araújo é diretor, roteirista, escritor e pesquisador / Divulgação
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: O que te fez querer fazer uma série sobre o PCC?
Joel Zito Araújo: Essa série foi uma iniciativa do Gustavo Mello, da Boutique Filmes. Ele me apresentou o livro do Gabriel Feltran, achei sensacional. Em todos os meus trabalhos, busco compreender o Brasil a partir de um olhar sobre a nossa composição populacional, a presença negra e indígena. Nós, que somos maioria, fomos historicamente negados e renegados.
Quando recebi essa proposta, ao considerar que a maior parte das pessoas que estão encarceradas ou que vivem nas periferias, cenários fundamentais da história do PCC, são negras, pensei “quero fazer isso: quero entender essa dimensão que não estava nos meus trabalhos anteriores”. Vi como uma oportunidade de compreender melhor o Brasil.
Entrando um pouco nessa aventura difícil, sem dar spoiler, lógico, você pode contar o que o público pode esperar dessa série?
Tivemos consciência, desde o início, da existência de outros materiais sobre o PCC. Nesse desafio de trazer uma visão original, vimos que a novidade seria trazer para o público algo diferente das visões policiais e jornalísticas. Essas últimas, aliás, em sua maior parte abraçam a visão policial.
A originalidade que a gente traz são dois lados que acho que nunca foram contemplados. Apresentamos a visão do próprio PCC sobre a sua história. E também a das pessoas que estão nas comunidades, algumas que passaram pelas prisões, que não são PCC, mas que foram atravessadas pela facção e/ou pela presença policial nas periferias da cidade. Que como todos nós sabemos, é na sua maior parte violenta, de desrespeito aos direitos dos segmentos mais pobres da população, especialmente do segmento negro. Sabemos muito bem que existe um extermínio da juventude negra e que isso é uma grande tragédia.
Um spoiler eu vou dar: um dos poderes secretos do PCC é que ele soube aproveitar do grande equívoco que é essa política de combate à criminalidade. Essa política que… não basta encarcerar um pobre, sabe? Ele tem que viver o inferno na cadeia.
O PCC surgiu exatamente por conta desse equívoco, se alimenta disso e se expande e se fortalece cada vez mais exatamente por conta desse equívoco.
E Joel, como a gente já comentou aqui, o livro do Gabriel Feltran é a base da pesquisa da série e…
O livro e a presença do Gabriel. Ele foi fundamental. Não poderia deixar de render homenagem a esse cara que se tornou meu grande amigo. Um pesquisador seríssimo, comprometido e que desde o começo do início da adaptação, se colocou do lado, assessorou, estabeleceu pontes para a gente chegar aos irmãos do PCC, às pessoas que vivem na periferia e que foram atravessadas pelo PCC, ele transferiu para mim a sua respeitabilidade, para as pessoas me aceitarem como quem estava dirigindo a série, as entrevistando. Então o Gabriel é um elemento fundamental. Não é que simplesmente compramos o livro dele e adaptamos, não. Ele esteve do início ao fim do processo, grande figura. Recomendo muitíssimo que as pessoas que não leram, que leiam o livro dele.
Uma das coisas que me chamou atenção no livro foi essa forma de encarar o PCC não como uma empresa nem como uma organização militar, mas com um funcionamento similar ao de uma sociedade secreta ou uma irmandade. O Feltran faz uma comparação com a maçonaria, inclusive. Esse aspecto é abordado pelas pessoas entrevistadas na série?
Sim, a série confirma essa hipótese. Eu pude ver. A gente passou quatro meses filmando nas comunidades, no Brasil e no Paraguai. Pesquisando muito, tem muito material de arquivo.
Uma das forças do PCC também é o fato ser uma organização descentralizada. Tanto do ponto de vista econômico como da tomada de decisões.
Eu preciso até checar isso com o Gabriel, mas me parece que o PCC também tem algo de franquia no seu funcionamento. A pessoa abraça a irmandade, que tem uma ideologia muito forte, um proceder, um estatuto que tem que ser respeitado. Mas as pessoas vão tocando seus negócios. A cada ação que um membro do PCC faz, ele não liga lá para a sintonia final, para perguntar se pode fazer isso ou aquilo.
O Marcola [Marcos Herbas Camacho] é comumente retratado pela imprensa como o grande chefão do PCC, às vezes mais nos termos de um modelo de máfia do que nessa perspectiva descentralizada. Ao filmar a série, vocês identificaram que ele tem uma posição de comando ou não?
A gente procurou entrevistar o Marcola. Mas não foi possível. Não por discordância dele, pelo contrário, ele estava interessado. Mas não autorizaram.
O Marcola não é o grande chefão: ele é uma grande referência. Mas o PCC, a sua sintonia final são duas dezenas de pessoas. Homens, talvez mulheres também. O PCC é uma organização descentralizada mesmo. Não tem a estrutura da máfia, não tem um grande chefão.
O livro do Feltran foi publicado em 2018. De lá para cá muita coisa aconteceu. Bolsonaro, pandemia, esses assaltos cinematográficos que tomam pequenas cidades do interior – que vêm sendo chamados de “o novo cangaço”, o Marcola foi transferido de Brasília para Porto Velho. Só para citar alguns exemplos. O que a série traz a respeito do PCC hoje, a partir dos acontecimentos dos últimos anos?
Acho que a grande novidade nos últimos quatro, cinco anos é que o PCC atingiu o estágio de ser uma grande organização de tráfico internacional de drogas. A gente aborda isso no quarto episódio. O PCC virou a principal organização fornecedora de drogas para a Europa e para a África. Isso enriqueceu muitas pessoas e trouxe muitos conflitos internos.
Gerou inclusive na periferia uma certa ideia de abandono do PCC. O PCC tinha um pouco de Robin Hood nas periferias. O PCC da atualidade é muito diferente daquele que apareceu nos anos 1990 e veio até o início dos anos 2000.
De fato, se escuta essa história de “a quebrada está mais largada”, ou seja, que o PCC estaria menos atuante na gestão das relações e dos conflitos no cotidiano das periferias, né?
Exato.
Agora… Considerando essa dinâmica descentralizada do PCC, as pessoas envolvidas no tráfico internacional de drogas não são necessariamente as mesmas que estão na biqueira da esquina, certo? Então por que a expansão internacional do PCC acarretaria nessa coisa de os “irmãos” estarem menos atuantes na gestão das relações nas periferias brasileiras?
Eu sou um cineasta que passei três anos mergulhado nisso. E sempre que a gente sai de um mergulho como esse, a gente sai com uma falsa sensação de sermos pequenos especialistas no assunto [risos]. Mas é falsa. Especialistas são aqueles como Gabriel, que estão há mais de 20 anos se dedicando ao assunto. Então talvez seja melhor que algumas perguntas sejam direcionadas a ele.
Mas uma das propostas da série é só entrevistar pessoas diretamente envolvidas na história. De evitar os especialistas. Isso também acho que é uma das originalidades do trabalho.
O que observamos é que no passado as grandes autoridades do mundo criminal eram os assaltantes de banco, hoje não é mais. Hoje são os grandes narcotraficantes. Esses do PCC são, em sua maioria jovens das comunidades que, de pequenas biqueiras, cresceram. Começaram a gerar grandes fortunas, criar e gerir negócios para lavar dinheiro.
Uma característica interessante do PCC é que as empresas de lavagem consideradas ideais não são as de fachada. São empresas reais. Então isso também foi deslocando esse jovem do PCC de pé de chinelo que está numa biqueira, para aquele outro que tinha, digamos, mais habilidade para se envolver no grande tráfico de drogas. Isso foi criando uma diferenciação grande.
O público vai ver na série, espero que veja. É aquela coisa: satisfação garantida ou o dinheiro de volta!
Voz do Pará com entrevista do Brasil de Fato