A pílula anticoncepcional foi revolucionária ao dar às mulheres a escolha de não engravidar. Hoje, há métodos mais eficazes e seguros – mas menos rentáveis às farmacêuticas. A ginecologista Mariana Pércia discute seus fatores políticos e científicos
Mariana Pércia em entrevista a Alessandra Monterastelli
Nesse mês de maio, a pílula anticoncepcional completou 60 anos de uso no país. Ela é o método contraceptivo mais comum entre as brasileiras, segundo pesquisa de 2021 do Instituto Ipsos. Ainda assim, cresce a discussão e as dúvidas sobre a segurança do medicamento.
Quando foi criada na década de 1960, a pílula anticoncepcional quebrou paradigmas conservadores ligados ao controle sobre o corpo feminino. O historiador Luiz Antonio Teixeira, professor do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), contou à Folha como a contracepção era vista como imoral em uma sociedade que instituiu a procriação como o único papel das mulheres. A pílula permitiu a escolha de ter ou não filhos.
Existe, porém, outro lado nessa história. Em entrevista para o Outra Saúde, a ginecologista e especialista em direitos reprodutivos Mariana Pércia, integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e especialista pela Unifesp nas áreas de violência contra a mulher e direitos reprodutivos, relatou como a pílula foi rapidamente absorvida pela indústria farmacêutica, que a distribuiu em larga escala em países do sul global – enquanto a Europa aguardava o resultado do experimento. A pílula chegou ao Brasil em 1962 e à Europa em 1968.
Como a maioria dos medicamentos, os anticoncepcionais causam efeitos colaterais: náuseas, vômitos, dor de cabeça, dores e inchaço são os mais comuns. Hoje, sabe-se que a pílula aumenta o risco de trombose e doenças cardiovasculares, ainda que esses riscos continuem baixos. “Os efeitos precisam ser analisados em conjunto com o histórico pessoal e familiar de cada paciente. Os riscos e benefícios precisam ser esclarecidos para que a escolha seja feita de maneira responsável com o corpo das mulheres”, argumenta Pércia. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o risco geral de trombose entre as mulheres em idade reprodutiva é de 5 casos em 10 mil, número que sobe para até 20 em 10 mil que usam pílula.
O risco de trombose depende também de outros fatores, como tabagismo, cirurgias anteriores, hipertensão ou diabetes. A avaliação deve ser feita junto a um profissional de saúde.
A pílula anticoncepcional revolucionou a vida das mulheres, possibilitando escolher se teriam filhos ou não. Você pode falar um pouco sobre isso?
A pílula anticoncepcional foi pensada por Margarete Singer, uma americana defensora dos direitos reprodutivos das mulheres desde 1916, época em que os métodos contraceptivos eram crime nos Estados Unidos. A pílula foi idealizada com o sonho de que a mulher pudesse ter controle sobre a reprodução e ter a possibilidade de separar sexo e gravidez, exercendo liberdade sexual. A pílula chegou ao mercado em 1960, em 1962 já estava disponível no Brasil.
Se por um lado é verdade que enquanto símbolo a pílula representou uma conquista para a liberdade sexual, é verdade também que este símbolo foi transformado em produto, cooptado pela indústria farmacêutica sem a devida preocupação com a saúde das mulheres. A pílula comercializada em 1962 no Brasil era a Evoid, com doses hormonais cerca de 10 vezes mais altas do que as doses usadas hoje. Essas doses altas foram comprovadamente associadas ao aumento do risco de trombose nos membros inferiores e Acidente Vascular Cerebral. Enquanto o método foi disseminado em populações de países como o Brasil, essa mesma medicação teve seu acesso dificultado na Europa, já que não havia dados suficientes para comprovar sua segurança.
A luta pelo acesso a métodos contraceptivos não deve estar dissociada da luta pelo acesso à informação e pelo incentivo à escolha desses métodos de maneira esclarecida. Caso contrário, corremos o risco de ceder a interesses que não tem relação com direitos reprodutivos.
Existe um movimento hoje de abandono do uso do anticoncepcional devido a sintomas adversos e fatores de risco, considerados baixos, de trombose e AVC. São de fato baixos? Existem outros motivos para o abandono da pílula?
Os fatores de risco associados às pílulas mudaram em proporção ao longo da história, e isso aconteceu não como um movimento natural, mas como resultado da luta das mulheres. Como eu disse, na década de 1960, as dosagens hormonais de estrogênio eram cerca de 10 vezes mais altas e o tipo de progesterona usada nas pílulas era diferente. Hoje existem estrogênios mais seguros em relação aos riscos.
Porém os riscos seguem existindo. As chances de trombose pelo uso de pílulas combinadas é cerca de 0,06%, isto é, afeta de 6 a 12 mulheres em 10 mil. É pouco, mas ainda significa que, em comparação a uma mulher que não usa pílula, a que usa terá o dobro de chance de desenvolver trombose. Esse é um risco que aumenta a depender de outros fatores, como tabagismo, cirurgias que geram imobilizações da paciente, viagens longas, hipertensão, diabetes, enxaqueca com aura e uma série de outros fatores que precisam ser avaliados em conjunto com um profissional de saúde para realizar uma indicação de método contraceptivo adequado e deixar claro quais são os riscos de cada escolha.
Acredito que, além da divulgação desses riscos através de redes sociais e outros meios, as mulheres passaram a tomar consciência de que muitas medicações são propostas a elas sem que elas tenham ciência da escolha que poderiam fazer. Além disso, existe um movimento de entendimento de que muitos diagnósticos são feitos de maneira pouco criteriosa – como ocorre com frequência no caso de ovário policístico, por exemplo – sem respaldo na literatura científica, o que leva as mulheres a se submeterem a tratamentos com poucas evidências. Somado a tudo isso, existe a possibilidade do uso de outros métodos contraceptivos não hormonais, que têm ganhado mais espaço.
Muito se fala sobre a possibilidade da pílula anticoncepcional para homens. Você acredita que será bem-vinda ao mercado assim como as pílulas femininas?
Várias tentativas frustradas já foram feitas nessa direção e muitas pesquisas nesse sentido foram paralisadas por obterem efeitos colaterais parecidos com aqueles que as mulheres vivenciam hoje com a pílula. Parece que esses efeitos não são tolerados pela sociedade quando um homem deve se submeter a eles. Acredito que isso tem relação com o fato de que é o corpo das mulheres que, historicamente, é aquele controlado e submetido a múltiplos experimentos por ser considerado um corpo de menor valor social. Acredito que só haverá um avanço de incorporação no mercado de um método contraceptivo para homens após muita pressão no movimento feminista. A camisinha peniana já é um método contraceptivo para homens cis e a adesão a ela têm sido cada vez mais baixa: apenas 5% das pessoas a usam em todas as suas relações sexuais, enquanto a pilula é usada como método em cerca de 27% das relações. Julgo que essa diferença tenha a ver com a ideia de que a contracepção é uma responsabilidade da mulher, enquanto o prazer sem responsabilidade é para o homem.
Muitas mulheres têm preferido o uso do DIU. Você acha que é uma boa alternativa à pílula? No caso do DIU hormonal, os riscos são menores? Como é a distribuição do equipamento hoje no SUS?
O Diu está entre os métodos mais eficazes de contracepção, com um índice de eficácia semelhante a esterilização cirúrgica e cerca de 30 vezes superior à pílula. Por outro lado, apenas 1,9% da população opta por este método. As barreiras começam da propagação de notícias falsas e terminam na falta de acesso, de aparelhos e de profissionais capacitados para a inserção do dispositivo. O DIU não hormonal, disponível no SUS, é um método barato: estima-se que uma mulher vá gastar em torno de 5 mil reais com 10 anos de pílula, enquanto um DIU que dura 10 anos de contracepção efetiva custa cerca de 150 reais. Não há interesse da indústria farmacêutica em fomentar a disseminação de informação sobre o DIU – que ele é, por exemplo, um método mais seguro e com menos riscos à saúde da mulher.
Todo método, no entanto, necessita de uma avaliação para saber se a pessoa se adequa a ele. Uma pessoa que tenha um fluxo menstrual aumentado e sofra com cólicas mensais, provavelmente não é uma boa candidata a um DIU de Cobre, mas pode ser uma ótima candidata a um DIU hormonal.
O SUS disponibiliza o DIU de cobre, mas existem muitas barreiras no acesso. É urgente que a população conheça seus direitos e exija o acesso avançado a esses métodos. O Brasil ainda é um país onde 55% das gestações não são planejadas e milhares de mulheres morrem anualmente em decorrência do aborto inseguro. É parte do nosso direito reprodutivo escolher quando, com quem, se e como ter ou não filhos, e é dever do estado garantir esse direito, com responsabilidade pela saúde da mulher e com garantia de autonomia. (Originalmentes em Outras Palavras)
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!