Professor sugere: nem neoliberalismo, com seu “mercado” ineficiente, nem desenvolvimentismo, com aposta num empresário nacional que não existe. Solução virá “de baixo”, com dinheiro na mão do pobre e subjetividades insurgentes
Pessimismo tem sido algo que não é muito difícil alimentar. Como não ser catastrofista em um cenário que não comporta outra descrição que não a catástrofe? Vivemos numa situação em que a realidade é tão tragicômica que as próprias tragédia e comédia ficaram sem recursos.
Então vou me dar o luxo do otimismo. Otimismo que Lula possa vencer e, vencendo, possa governar. Surge então uma pergunta: será que Lula conseguirá repetir a experiência da década de 2000, quando o Brasil parecia que ia decolar?
Por que o liberalismo não funciona no Brasil?
Com um longo e bem financiado trabalho de base, o liberalismo brasileiro conseguiu crescer substancialmente nos últimos 10 anos. Longe da vertente mais intelectual, como de um José Guilherme Merquior, ou mais jurídico-política, como de Rui Barbosa ou Raymundo Faoro, o liberalismo à brasileira ganhou institutos e think tanks que passaram a campanhas sistemáticas contra a intervenção do Estado na economia, alegando que o Brasil continha uma carga tributária muito pesada e via a iniciativa privada sofrendo em função da elefantíase estatal.
Após 2014, houve uma capilarização desse pensamento. Com a crise do governo Dilma, apoiada na pressão da oposição que viu na eleição acirrada uma oportunidade de desestabilização, uma governante perdida praticando erros em série, a conta de 2008 chegando tardiamente depois de uma injeção que manteve o paciente vivo por um tempo e, finalmente, o desenvolvimento de novas táticas de protesto 2.0 pelos movimentos de 2013 (basta ver a “coincidência” sonora entre MBL e MPL), os liberais finalmente conseguiram se tornar força política relevante — apoiados em militância de Youtube, barulho na imprensa louca para derrubar o PT e uma juventude com vontade de renovar as ideias do país.
Ainda me lembro quando vi pela primeira vez um estudante de uma universidade privada cujo corpo discente tinha características bem populares, na maioria composto de batalhadores emergentes pelas políticas de inclusão universitária do lulismo, carregando seu calhamaço de mais de 500 páginas de Ludwig von Mises em pleno 2015. O livro de Camila Rocha, Menos Marx, Mais Mises, é sem dúvida o melhor trabalho a respeito.
Para este liberalismo, ainda confluía uma base social trabalhadora que via no empreendedorismo um caminho para a riqueza, e passou a se identificar mais com a camada de cima que com a de baixo (o que Maria Rita Kehl chama “bovarismo”). Como Tatiana Roque e eu sustentamos em texto recente, o discurso da direita não exigia culpas nem dilemas estruturais: ele simplesmente se encaixava na forma de subjetividade que se desenvolvia como uma luva, produzindo uma posição mais bem resolvida que as contradições da militância revolucionária costuma carregar.
A resposta a isso foi, sobretudo, o programa “Ponte para o Futuro”, do PMDB, também conhecido como a Carta do Impeachment. Na contramão da política da Mãe do PAC, o programa tinha verniz fortemente liberal, pregando privatizações, austeridade e apostando no setor privado como fonte de crescimento.
Mais tarde, foi a turma de Paulo Guedes que encarnou os ideais, contendo uma versão tão radical do discurso que flertava com o que chamam de “anarcocapitalismo” — um discurso que não apenas é completamente avesso à intervenção estatal na economia, como inclusive busca encontrar uma moralidade intrínseca na competição capitalista a partir da absolutização da propriedade privada como direito-matriz dos demais. Essa rede funciona ao lado de influencers, agências de rating e plataformas que envolvem recomendações de investimento, em geral indicando a direção do mercado “livre” como única alternativa e vinculando-a a ganhos financeiros na bolsa, do Tesouro Direto ou nas criptomoedas.
A noção de “liberdade”, hoje tão cara à extrema direita, em parte confunde-se com essa propriedade absoluta.
Mas a economia não decolou, Paulo Guedes é vendedor de terrenos na Lua e hoje mais de 65% dos brasileiros veem a economia como preocupação principal e no caminho errado. O que acontece?
Basicamente, se tomarmos — o que não é muito fácil — esse discurso de boa-fé, podemos ver que ele pressupõe a eterna comparação idealizada com os Estados Unidos. Comparação não só cultivada por economistas, mas também por antropólogos, advogados e cientistas políticos. Ela põe, de um lado, os avançados e perfeitos EUA, com Estado enxuto, meritocracia plena e crescimento puxado pela iniciativa privada, enquanto o Brasil seria um país lento, de governo inchado, sobrecarregado de burocracia e legislação. A aposta, então, é que com a austeridade fiscal o setor privado voltaria a investir e alavancar um crescimento mais sustentável, baseado no empoderamento da sociedade civil, a cultura do empreendedorismo e maior liberdade econômica.
Só que se trata de uma mera idealização sem qualquer lastro real.
Na prática, o empresário brasileiro não pensa assim. Embora ele subscreva a narrativa como um todo — afinal, redução de burocracia e impostos, desregulamentação trabalhista e previdenciária são oportunidades —, na prática a teoria é outra, como diz o Celso Rocha de Barros. Poderíamos perguntar em contraponto: quanto o setor privado investe em pesquisa, por exemplo, algo essencial se considerarmos que as principais empresas do mundo estão na área de tecnologia?
Segundo a idealização liberal, os cortes nos órgãos de fomento poderiam ser compensados com investimento do setor privado, formando conglomerados econômicos que envolveriam pesquisa universitária, novas patentes e grandes empresas nacionais. Onde isto está acontecendo? Onde estão as fundações que financiam pesquisas e cultura, que sustentam universidades com autonomia? Chega a ser cômico. Como a pandemia mostrou, é nas universidades e instituições públicas, como Butantã e Fiocruz, que se produz conhecimento científico relevante capaz de inovar.
Para contar uma anedota, em algum lugar do Brasil uma pesquisadora de universidade pública foi consultada sobre um projeto que uma grande rede de supermercados gostaria de desenvolver em parceria. Após calcular os custos, a pesquisadora ofereceu um orçamento de R$ 50 mil para desenvolver o projeto. A resposta foi: “muito caro!”, seguindo-se a negativa. Imaginem o que representam R$ 50 mil no faturamento de uma rede de supermercados. Essa grana para o empresário brasileiro é muito, basicamente porque qualquer dinheiro é muito: a mentalidade é curto-prazista, por isso mesmo zerada em inovação. Ou seja, o mercado brasileiro, na prática, é ineficiente para gerar as posições que ele próprio defende na teoria.
Por que isso acontece? Basicamente, a mentalidade do mercado brasileiro é baseada no benefício de exploração, isto é, o verdadeiro lucro vem da redução de custo, e não do investimento no negócio. Assim, quanto mais precarizado o trabalho, quanto mais reduzido o tributo, quanto mais desregulamentados os custos de saúde e meio ambiente, melhor. Nosso mercado tem mentalidade escravista, e isso ficou mais que evidenciado nas centenas de milhares de episódios de humilhação social que vimos durante das duas últimas décadas diante dos emergentes. E que se diga, para não trabalhar com idealizações, que o sonho de muitos é ascender para pisar na cabeça alheia. Dito de forma bem grossa e tosca, isso explica um pouquinho a passagem do lulismo para o bolsonarismo.
Enquanto nos idealizados EUA as empresas investem forte nas universidades e na pesquisa, o setor privado brasileiro está especulando na Bolsa de Valores em torno a variações e crises causadas pelo nosso ambiente político-social turbulento. O que, aliás, foi o que aconteceu com os investimentos que supostamente deveriam ocorrer diante do governo Dilma, todos eles devidamente embolsados sem que houvesse contrapartida social às isenções governamentais, como a própria Dilma reconhece.
Então a saída é pelo Estado?
Eis que então voltamos ao velho dilema Estado-Mercado, e nos restaria dizer que, diante da completa ineficiência do mercado brasileiro, viciado no modelo da exploração e do ganho fácil, quase completamente avesso a qualquer investimento de longo prazo como pesquisa e inovação e responsabilidade social e ambiental, o Estado seria o caminho. Era a posição de Dilma, aliás. Lembro quando, no primeiro mandato, era criticada, respondia: “no Brasil as coisas somente acontecem assim”, isto é, com o BNDES emprestando fortunas para que as grandes mastodontes brasileiras se mexessem e realizassem obras de infraestrutura movimentando a economia.
A realidade atual não nos deixa de dar um pouco de razão para Dilma: de fato, as coisas somente acontecem assim no Brasil, haja vista o que estamos vivendo agora.
O problema é que também sabemos como as coisas acontecem no Brasil: passando por cima dos mais vulneráveis, como os povos indígenas e ribeirinhos diante do Belo Monte, ou as populações removidas para realização de obras da Copa do Mundo, em geral — inclusive sob governo de esquerda — e passando por cima de normas ambientais, sociais e sobretudo democráticas. E, além disso, fortalecendo oligarquias locais, que levam para si os frutos das obras (espécie de malufismo estrutural brasileiro), atravessadores da corrupção (como os partidos do Centrão) e grandes empresas vampiras dos recursos públicos (como as empreiteiras).
No capitalismo de laços brasileiro as coisas estão longe do ideal.
Diante disso, alguns políticos como Ciro Gomes, por exemplo, tentam restaurar o verdadeiro desenvolvimentismo, alegando que são imunes à corrupção, excelentes gestores e que têm uma verdadeira plataforma de renovação industrial. Ainda e sempre é a disputa pelo legado de Getúlio, JK, Jango, até Geisel, o sonho dos 50 anos em 5, do Brasil como “país do futuro” que poderia se firmar como grande potência mundial se fosse purificado da corrupção política, dos empresários de rapina, do capital internacional imperialista. Grandes empresas estatais em locais estratégicos poderiam alavancar esse ciclo. Uma nova indústria capaz de tirar o Brasil do papel de exportador de commodities, com seu extrativismo elementar que — desde Caio Prado Jr. — é tomado como um capitalismo primitivo, que ainda não está no mesmo patamar conquistado pelas economias que agregam valor aos produtos.
Mas a pergunta aqui é mais ou menos a mesma que ao liberalismo: não estaria pressupondo outra sociedade, outros empresários, outros gestores? Porque as tentativas, como as do último Lula e de Dilma, naufragaram. Na verdade, o que vemos em geral é uma repetição de formação de pequenos conglomerados Estado-empresa que abastecem redes de corrupção geral, encarecem as obras, desconsideram as minorias políticas envolvidas e esmagam os movimentos sociais que se insurgem.
Sim, 2013 foi sobre isso para quem acompanhou de perto.
O que fazer, então?
Não sei se Lula será capaz de fazer algo interessante caso se eleja, mas espero que sim. E espero que ele se baseie no seu próprio exemplo.
Durante o primeiro mandato, as críticas da esquerda ao governo eram drásticas. Houve até quem proclamasse seu fim, sua ruína. Submissão ao neoliberalismo era um diagnóstico quase universal, recheado de decepção à moda europeia, como se o governo Lula fosse uma frustração a la Jospin, Zapatero, Schröder. Mais um governo tecnocrático guiado pela hegemonia do social-liberalismo da “terceira via”, de Clinton e Blair, anódino e incapaz de enfrentar o capitalismo.
Mas não foi bem assim.
Bolsa-família, aumento do salário mínimo, crédito consignado, cotas nas universidades, PROUNI, isenção na linha branca de eletrodomésticos e pontos de cultura foram algumas das políticas sociais que provocaram efeitos sinergéticos inesperados oriundos das políticas públicas.
De repente, começa a surgir o que Tatiana Roque chamava de um movimento de baixo para cima, não pautado pela heterodoxia econômica ou quebra do tripé que serviu de base para a estabilização tucana, mas por uma avalanche de movimentação capaz de dinamizar a economia baseada no consumo dos pobres emergentes. Por cima, no plano da geopolítica e da macroeconomia, tudo parecia mais ou menos igual. Mas por baixo, no plano micropolítico, tudo mudava. Novas subjetividades, pautadas por uma espécie de “novo sonho brasileiro”, emergiam. Eram as negras e os negros agora protagonistas na produção de conhecimento nas universidades, as mulheres que administravam os benefícios sociais familiares recebidos diretamente por elas para evitar o dispêndio, a primeira geração infantil que fazia cursos de inglês e a primeira televisão de 40 polegadas adquirida por uma família de origem pobre.
Muitos atribuíram isso ao boom das commodities, tornando assim a narrativa desenvolvimentista coerente. Esta interpretação tinha duas finalidades: mostrar a insustentabilidade da manutenção do arranjo lulista, baseado em uma circunstância conjuntural que elevou o preço da matéria-prima e assim, baseado em políticas sociais, pôde “distribuir o bolo” para além de fazê-lo crescer; e apontar para um futuro que necessariamente pressupunha, como fase 2, a passagem para a aliança entre burguesia industrial e trabalhadores emergentes numa espécie de New Deal brasileiro. (Obviamente, deu tudo errado, mas foi o que Dilma tentou fazer do jeito dela…)
O problema é que o próprio governo Bolsonaro, recentemente, passou por um boom de commodities, e nada aconteceu. Ainda tinha juros baixo, câmbio alto, enfim, todas as características que supostamente induziriam o crescimento. Aparentemente, não foi por isso que Lula vingou — embora não queira dizer que o fato foi irrelevante.
Mas houve outra interpretação, essa capitaneada por todo pessoal que lê em chave biopolítica — como Tatiana Roque, Ivana Bentes, Giuseppe Cocco, Bruno Cava, Alexandre Mendes, Jean Tible, entre outros — que colocava o movimento de baixo para cima, a multidão, como elemento mais importante que as questões macroeconômicas e geopolíticas. Era uma nova configuração do trabalho, surgida com nova composição de classe, que estava em jogo. Não mais a conciliação fordista entre burguesia industrial e operariado fabril, e nem a versão mais radical da tomada dos meios de produção socialistas, mas, por dentro e contra, a formação de novas subjetividades capazes de tumultuar a organização escravista, racista e colonial brasileira.
Em termos menos marcados pela teoria, gostaria de destacar o que me parece ser o acerto fundamental desta posição: a de que o mercado interno é que aqueceu o lulismo. Ou seja, não foi o boom das commodities, nem o PAC, que produziu o vulcão que foi o país durante a primeira década do século XXI. Foram os pobres. O mercado interno. Foi a profusão de efeitos inesperados e incontroláveis oriundos da liberação de energia social represada pelas exigências de sobrevivência que costumavam cair sobre a população pobre que possibilitou o crescimento brasileiro. E creio que esta receita, que não é desenvolvimentista nem liberal, Lula sabe que existe. E talvez ele vá aplicar, pelo que tenho ouvido nas entrevistas. O pobre brasileiro precisa de grana. Com grana, pode começar a liberar suas potencialidades e é este povo que irá construir, de baixo para cima, um país melhor.
Há muita coisa ainda por resolver nisso.
O consumismo está longe de ser um modo neutro de subjetivação, e quem estuda o “bolsonarismo popular” sabe que o buraco é bem lá embaixo. Além disso, crescimento por crescimento já não é cabível em um mundo finito cujas possibilidades ecológicas exigem o contrário. Os povos indígenas, por exemplo, estão presentes na cena política cada vez mais para marcar posição em torno disso — que é a condição de possibilidade da sua autonomia cosmopolítica e da sobrevivência de todos, indígenas ou não. Tudo isso exigirá algo que o lulismo não soube oferecer no seu primeiro ciclo. Mas quem sabe agora?
Esta alavancagem poderia não apenas passar pelo consumo. Como dissemos Tatiana e eu no texto já mencionado, é preciso reconciliar a esquerda e a classe média, ou vamos permanecer no dilema de permanentemente estar criando os futuros antagonistas da transformação social. Uma das valências da adesão popular ao liberalismo — mesmo que sob formas mais soltas, sem tanta dogmática — é o encaixe entre o discurso e as práticas de ascensão social. O empreendedorismo está entre elas.
O que poderia oferecer uma esquerda ao empreendedorismo? Certamente não um recuo nas leis trabalhistas. Mas poderia, sim, oferecer simplificação e justiça tributária, desburocratização radical com redução da papelada e consolidação do marco legal, estímulo ao pequeno negócio nos moldes que ocuparam, na primeira década, os créditos consignados e os empréstimos de bancos públicos, em especial quando ligados a áreas estratégicas como tecnologia, saúde, educação e meio ambiente.
Lula também deveria ver, e penso que Ciro já andou dando uns pitacos nesse sentido, o potencial da cultura brasileira como indústria criativa também. Os pontos de cultura foram revolucionários no aspecto — e caberia aqui, sem dúvida, envolver-se em ativismos e campanhas para desfazer o trabalho reacionário da direita em torno à Lei Rouanet e a “mamata”, mostrando que é com investimento público que o artista tem autonomia para criar e que não vivemos apenas de dinheiro, mas também de prazer e novas experiências. A posição cosmopolítica estratégica do Brasil pode trazer a cena internacional para cá.
…
De qualquer modo, vejo com otimismo um novo governo Lula, basicamente porque acho que Lula tem a fórmula criada por ele próprio que funcionou: fortalecer o mercado interno, alavancando de baixo para cima por meio de políticas sociais, entre elas a que penso talvez possa ser a mais disruptiva de todas: a renda básica cidadã.
São algumas ideias que me passaram pela cabeça nos últimos tempos. (Por Moysés Pinto Neto)